CapÃtulo 2
Tereza bebia seu café calmamente quando seu celular apitou. “Estou com saudades, como você está?” dizia a mensagem de Elis. “Oi, meu amor. Estou bem, e você?” respondeu Tereza. Com cuidado, pousou o celular ao lado da xícara de café e bebeu mais um gole. “Ah, esse cheiro...” pensou.
Tereza nunca fora muito fã de café, porém Elis conhecia tanto sobre o assunto e era tão apaixonada que Tereza acabou se tornando apreciadora. Segurava a xícara inspirando profundamente o cheiro de café, fechava os olhos e voltava no tempo, sentia o sol e o calor daquela terra mágica onde haviam se conhecido, sentia o toque suave de Elis, seus olhos atentos a tudo sempre; arrepiava-se e sorria enquanto o aroma invadia suas narinas, lembrando-a das manhãs onde acordava bem cedo com Elis e explorava os arredores em Mikonos, não sem antes beber um bom café.
“Não existe um problema no mundo que um bom café não resolva” dizia Elis.
Mas existia.
E Tereza, pousando novamente a xícara no seu pires, sentiu uma nuvem cinzenta invadir seu coração.
Precisara de toda coragem do mundo para assumir-se homossexu*l*, aos dezenove anos. Muito cedo havia saído de sua cidade e ido morar na capital com sua tia, para que pudesse estudar e, claro, ajudar um pouco nas tarefas de casa, só um pouco. A promessa “de manhã você vai para o colégio e a tarde pode estudar” transformou-se em de manhã ir ao colégio e a tarde limpar e arrumar a casa, cuidar da faxina, lavar e passar roupas, cuidar do primo pequeno, cozinhar, eventualmente cortar a grama do jardim... enfim, todas as tarefas domésticas foram se empilhando nas obrigações diárias de Tereza.
Ainda no ensino médio conhecera Ariane, por quem se apaixonara perdidamente desde o primeiro dia, seu primeiro amor correspondido. Em seu diário, seu único amigo fiel e leal, deixou escritos seus poemas, cartas e declarações de amor, até o dia em que sua tia leu e expulsou-a de casa, sob os gritos de “sapatão”, “saboeira”, “vagabunda”, além de outros adjetivos desabonadores. No meio de uma tarde de calor, Tereza e sua malinha estavam na rua, e como o único local que conhecia era a escola, escondeu-se na Biblioteca, onde ficou durante alguns dias, até ser descoberta pelo professor de física, que a acolheu na casa onde morava com sua esposa e mais três filhos adotivos. Permaneceu com eles até concluir o ensino médio, de onde saiu, com grande apoio de sua nova família na cidade, uma mulher lutadora e assumidamente gay. Resolveu criar um abrigo para LGBT´s que haviam sofrido exclusão das suas famílias (coisa muito mais normal do que jamais pensara), e hoje, muitos anos depois, Tereza era referência em se tratando de igualdade de direitos, luta e conquistas, na sua cidade. Era a ela que recorriam as assistentes sociais quando verificavam maus tratos nas famílias de jovens gays, e seu telefone tocava muito mais do que gostaria.
E então conhecera Elis, a pessoa mais presa às normas sociais que conhecera na vida, a mais refém da moralidade hipócrita social, a mais sufocada dentro do seu armário; e agora, acompanhando a vida e o sofrimento de Tereza, relembrava-se de quando fora expulsa; revisitava aquela dor.
Levantou seus olhos e viu uma imagem que refletia Elis: uma mulher sozinha, em uma rua vazia e cinza, sob seu guarda chuva colorido, dando passos pequenos para não se molhar. Aquela imagem era muito a sua Elis, sozinha dando seus passinhos curtos, esperando as férias em algum país distante para ser feliz, não tendo coragem de se molhar na chuva que poderia representar sua libertação. Ficou desejando que em algum momento a visse brincando de “Singing in the rain”, pisando em poças, largando o guarda chuva, molhando-se, deixando a chuva molhar seu rosto e seu corpo, libertar sua alma. Elis guardava em si uma mulher que nem conhecia, e por quem Tereza agora estava apaixonada e revivendo a dor e o sufocamento diário de uma vida de mentira.
“Estou bem também, bebendo um café e pensando em você, vou passar uma semana inteira na sua cidade, a partir da semana que vem” era a resposta no visor do celuar.
Um arrepio tomou conta de Tereza, que respondeu rapidamente: “Também estou fazendo a mesma coisa, e mal posso esperar pela semana que você vier!” porém, já sabia que o único plano seria encontrarem-se às escondidas, nada de locais públicos ou eventos, nada de apresentar aos amigos, nada de nada... e bebendo um novo gole de café percebeu que havia uma decisão a tomar, uma decisão que poderia pôr fim a algo que nem havia iniciado. Eis um dos problemas que o café poderia amenizar, mas não resolver.
Fim do capítulo
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mcassolwriter
Em: 14/05/2018
Clássico jeito da Mana escrever, fazer a gente pensar e querer gritar com as personagens, vou criar a campanha já
#saidoarmárioElis #enrustidanaoévida
Resposta do autor:
Hahahaha bora!!
Obrigada, mestra! :o*
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Silvia J
Em: 14/05/2018
Adoro a forma como a Mana aborda questões complicadas e transversais â sociedade, sem superficialidades sobre a homofobia e o conflito. Sempre tão alerta para o que nos faz sofrer e sempre tão positiva nos seus finais.
Resposta do autor:
Muito feliz com teu feedback Silvia!!
Gratidão. :o)
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