Capítulo Unico
Maria Luiza desceu do ônibus na parada "termini" - final - em Vieste. Descer os dois últimos degraus do ônibus à calçada foi o tempo necessário para que ela se arrependesse de ter tido a brilhante idéia de visitar a prima que há tempos morava na Itália.
Chegar até Vieste, uma pequena cidade na ponta leste da Puglia, foi quase uma peregrinação. Dois trens, dois ônibus e onze horas depois de sair de Roma, lá estava Malu, no meio do nada, no escuro da noite que já caia forte como a chuva torrencial.
Somente cinco outras pessoas também desceram do coletivo. Malu os viu pelo canto do olho antes de procurar algum lugar para se proteger da chuva e secar as mãos para pegar o endereço da prima. Quando levantou a cabeça para pedir informação, ja não havia mais ninguém à volta.
Um sentimento desolador assolou Malu. Estar perdida em uma cidade estranha à noite com água batendo e sem falar uma palavra de italiano até pode parecer um desafio transponível agora.Estar nessa situação em 1982 era muito diferente.
Tente abrir um mapa no breu e na chuva para entender a angústia de Malu, sem poder ligar ou mandar mensagem, sem ter como pedir ajuda, sem saber como perguntar. E muito pior, se por mímicas e mostrando o endereço conseguir perguntar, o pânico absoluto de não entender a resposta.
Ela olhou à sua volta sem saber o que fazer, a vontade de chorar era quase tão imensa quanto seu cansaço. O desespero quase tão paralisante quanto o prospecto de andar a esmo na chuva. Malu olhou para o chão, os paralelepípedos perfeitamente alinhados da ruela medieval a irritaram ainda mais. Estar cercada por tamanha beleza arquitetônica sem poder apreciá-la era enfurecedor para a recém formada arquiteta. "Que bela bosta!" pensou antes de sentar no chão e pôr a mochila entre suas pernas, resignando-se a ter que esperar a chuva parar.
O clec clec de saltos melodicamente extraindo barulhos das pedras surpreendeu Malu de sua lamúria de autocomiseração. Dentre as sombras brilhava um guarda-chuva vermelho que a suave luz dos postes lambia majestosamente.
A figura de uma mulher esguia vestindo um sobretudo preto contrastando com as botas vermelhas mimetizando a cor do guarda-chuva surgiu do vão entre os prédios. Malu ficou em pé e gritou afobada
"Moça, moça! Espera!”
Assustada, a mulher deu um passo para trás e agarrou-se ao cabo de madeira.
Malu deu um passo à frente, saindo debaixo do abrigo que o toldo da loja lhe oferecia
“Desculpa, não quis lhe assustar” Malu levantou as mãos em um gesto apologético.
A figura feminina caminhou em direção à Malu e parou à dois passos de distância, fitou seus olhos por meio segundo, e aproximou-se os últimos centímetros que as separavam, gentilmente oferecendo à Malu refúgio embaixo de seu guarda-chuva.
“Lei non parla l’italiano?”
A voz querúbica atingiu os tímpanos de Malu ao mesmo tempo em que o perfume com notas de almíscar , sândalo e baunilha invadiu suas narinas. A combinação de aromas arrojados fez Malu lembrar o cheiro de seus amigos homens o que prontamente a fez prestar atenção na figura que se desenhava a sua frente. A mulher enigmática tinha o cabelo raspado ao lado direito da cabeça e a longa franja caía sobre o lado direito de seu rosto. A pele alva contrastava com a escuridão carbônica de seus olhos e cabelos negros e o sorriso avassalador que fez Malu esquecer que estava perdida e aflita.
“Lei ha bisogno di aiuto?” Ela perguntou delicadamente, e mesmo sem entender a questão, Malu sabia que tudo ficaria bem.
Ela tentou responder com seu italiano macarrônico digno de novela das oito
“Non parlo Italiano. Soy brasileira”
“Ah! Brasiliana!” A Italiana sorriu ainda mais. “Cosa è successo?” Ela perguntou, inclinando a cabeça um pouco para a esquerda parecendo estar gostando da proximidade forçada que o perímetro do guarda-chuva causava.
Malu gesticulou para que as duas andassem em direção à sua mochila, e pegando o endereço escrito em sua caderneta
“Esse endereço?”
“Hum, Via Tiberio Decianni, è un po 'lontano e in questo momento non c'è più bus” A italiana respondeu sacudindo a cabeça negativamente para o desespero gramatical de Malu que não compreendeu a resposta, mas entendeu que seria uma missão difícil chegar ao seu destino.
O desalento era nítido nos seus olhos e a italiana se aproximou um pouco mais, tocando seu ombro
“Calmati, non stare così, non ti lascerò qui da sola.”
Malu arqueou as sobrancelhas e tentou mais uma vez se fazer entender que não entendia
“Non capisco…”
“Vieni con me a casa mia” A italiana falou apontando para o próprio peito.
“Casa mia?” Malu repetiu, entendendo o convite e sorrindo com alívio de alguém sendo salva pela generosidade de uma estranha. Ela concordou com a cabeça e virou-se para apanhar sua mochila quando o barulho e a luz de um carro vindo em sua direção fez com que as duas se entreolhassem. O letreiro brilhando TAXI acima do carro fez as duas rirem.
A Italiana acenou para o taxista que baixando a janela, repetiu o endereço e as instruções dadas pela italiana. “Via Tiberio Decianni”
Malu entrou no carro e disse “grazie, grazie” pegando a mão da bela italiana e num momento de excitação beijou a pele macia da mão que lhe fora estendida em socorro.
A italiana sorriu tanto que seus olhos tornaram-se pequenos e disse num suspiro
“Hum peccato, vorrei che fosse venuta con me, brasiliana misteriosa” E fechando a porta do carro com Malu dentro, virou-se em direção ao beco de onde tinha saído, desaparecendo na noite com seu guarda-chuva escarlate.
Malu memorizou a frase derradeira, e quando aprendeu que o significado era
“que pena eu gostaria que tivesse vindo comigo, brasileira misteriosa” andou incansavelmente pelas ruas de Vieste pelas duas semanas em que lá esteve se amaldiçoando por não saber o idioma e por nunca mais ter chovido.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]