“Sempre que me levanto pela manhã e abandono as cobertas quentes, a cama macia e o travesseiro hospedeiro, sinto que não sei ao certo o porquê ter mais um dia. Sempre me pergunto se não deveria ter te procurado ou ter atendido ao último telefonema. O que meu orgulho está me causando? 

Aquela última conversa ainda está engasgada, preciso de café para desenroscá-la e liberar a garganta para falar. Aquilo que me disse desce quadrado e machucando. Acordar, olhar essa janela, essa cidade, essa vida que parece não me pertencer me faz lembrar das manhãs que eu acordava com você me beijando o rosto. 

Aos poucos meu dia começa a acontecer e eu começo a te esquecer. Aos poucos acontece o que sempre acontecia quando estava com você, meu trabalho me absorve e eu esqueço do mundo, esqueço de você. A vida profissional ganhando mais uma batalha e eu estou começando a entender que vou perder guerra.

O fim do dia acontece e a volta para casa, para o quarto, faz com que a janela me encare novamente. Como posso achar que uma janela pode estar me encarando? Pergunto-me sempre que entro no quarto. Talvez eu entenda o que ela sente, ela filmou nossos dias como se fosse uma câmera secreta. Ela guarda todos nossos momentos, assim como eu também guardo, mas não quero admitir. Odeio admitir que sinto sua falta. 

Um banho deveria me relaxar, mas esse me deixou cansada. Saber que você me escondeu no armário e continuou com seu teatro heterossexual me desgasta. Eu fui imatura em colocar minha vida profissional acima de você, admito, mas nunca tive medo de assumir meus sentimentos. Falo com o espelho como se falasse com você, mas do que adianta desabafar comigo mesma. Amanhã é seu grande dia, seu enforcamento. Casamento é a palavra certa. Mas se tudo o que me disse é verdade, seria mesmo um enforcamento. Uma sentença de morte para nós, para você.

Eu não vou entregar essa carta à você, mas precisava escrever, pois falar na frente do espelho não é o suficiente para minha loucura. Minhas noites sem sua presença são frias, apesar do calor infernal que faz nessa cidade.

Sempre que volto para o quarto e não vejo você esborrachada na cama, me dá vontade de entrar em contato, mas o orgulho me silencia, me estrangula e me obriga a ficar sem você. Sou covarde? Talvez!

Meu crime é te amar e meu castigo é saber que seu casamento vai mesmo acontecer. 

Seu medo do preconceito nos afastou, como você mesma disse, fui apenas um passatempo. Não sou lésbica, foi o que me disse. Você não é lésbica, não é bissexual, não é heterossexual. É apenas uma covarde se escondendo atrás do preconceito, do medo de me assumir, do medo de ser feliz. Você é mais covarde do que eu. 

Seja feliz com seu preconceito que serei parceira inseparável do meu orgulho.”

Li e reli aquela carta inúmeras vezes, estava na metade de uma garrafa de uísque, a raiva já estava em mim há muitos goles atrás. Olhei-me no espelho, maquiagem borrada, vestido branco, véu e grinalda. O que eu estava fazendo da minha vida? Perguntei-me inúmeras vezes, mas não sabia responder. Alguém bateu na porta do quarto e entrou me entregando o buquê. Ainda não entendo a coragem que você precisou para me mandar essa carta, quero você comigo e escolhi o caminho errado. Alguém estava me maquiando novamente, não consigo estar presente, não quero estar. Levantei e tentei me livrar do vestido, me sufocava e apertava, assim como a sua falta. Com uma tesoura cortei o vestido e me livrando de mãos que me impediam, me vesti com uma calça e uma camiseta e sai correndo de dentro de casa. 

Na porta do seu apartamento, apertei a campainha inúmeras vezes, bati na porta, te chamei e nada. Com a barulheira que eu fiz, uma vizinha saiu no corredor e me disse que você havia se mudado sem deixar o novo endereço. 

Você se foi e eu nem ao menos pude dizer o que queria. Não pude dizer que te queria. Não pude dizer que sou covarde. Não pude.

Fim do capítulo