Capítulo 1
É A COTOVIA OU O ROUXINOL?
- É a Cotovia? – A menina se ergue apoiada em um dos cotovelos olhando pela janela.
- Já vai? O dia ainda está longe. Não foi a Cotovia, apenas o Rouxinol que canta todas as noites nos galhos do pé de Romã. – Julia sussurra também olhando através da janela.
- É a Cotovia que anuncia a chegada da manhã, não foi o Rouxinol. Olha, querida, para aquelas estrias invejosas que cortam as nuvens do Nascente. – Romy segura Julia pelo queixo e aponta o horizonte de nuvens rosadas.
Gargalhadas. Tentavam reproduzir um diálogo da famigerada peça de Shakespeare: Romeu e Julieta.
Foi tudo tão rápido! Como geralmente são as paixões avassaladoras. Quando foi o primeiro olhar? Quando notou seus detalhes? Os pequenos gestos? Quando seu cheiro invadiu suas narinas pela primeira vez?
Tinham a mesma idade, mal saídas da adolescência. Andavam pelos mesmos corredores da faculdade. Uma Letras, Outra Artes Cênicas. Romy e Julia. Mundos diferentes que se convergiam em caminhos semelhantes.
Romy amava as letras, os livros, os sonhos...Julia amava o drama, as palavras, o palco.
Uma observadora, introspectiva...Outra Encantadora, efusiva!
Romy era de família humilde, e cedo percebeu que sua única chance de mudar o ciclo vicioso que mantinha sua família presa a um destino de pobreza e privações era através dos livros que tanto amava. Seguiu seu destino e estava indo muito bem ao encontro de suas oportunidades. A bolsa integral que a permitiu estar naquela faculdade já era a maior de todas as suas conquistas até então.
Julia teve o privilégio de poder seguir sua vocação para as Artes Cênicas. A família podia prover seus estudos e as experiências necessárias para exercer, mesmo antes de se formar, o seu amado ofício.
Elas já haviam se visto algumas vezes por aqueles corredores. Rapidamente, sem dar tempo para pensar.
Romy tinha o hábito de começar a olhar as pessoas pelos pés, ir subindo devagar até chegar aos olhos, onde tudo se completava. Tentava imaginar toda uma vida em apenas alguns segundos.
Julia era flecha! Olhava diretamente, francamente, buscando respostas imediatas para as mil perguntas que sua mente fazia ao tentar adivinhar a personalidade de alguém.
Mas ainda não tinham se permitido esse olhar direto tempo o suficiente. Era sempre rápido, fugaz, medroso.
Romy olhava de lado, por baixo e quando chegava aos olhos, fugia.
Julia tentava agarrar aquele olhar, se voltava, acompanhava e perdia...os olhos negros iam embora sempre rápido demais...não dava tempo!
Era fim de ano e encerramento das aulas. A apresentação de Romeu e Julieta seria naquela noite. Julia era a mocinha romântica da trama. Romy a expectadora encantada. Conhecia cada sílaba daquele roteiro, amava Shakespeare e já havia lido grande parte de suas histórias, mas ouvir as frases de Julieta da boca da moça de cabelos cor de trigo era hipnotizante.
Atração é força magnética (a física deve explicar) e como não poderia deixar de ser, Julia sentiu em si o olhar encantado. Perdeu-se um pouco no texto, mas conseguiu se recuperar e terminou magistralmente sua cena morta de Amor. O punhal quase escapou, pois os dedos tremiam. Não pela cena, mas pelo olhar daquela velha desconhecida.
Na coxia o burburinho era grande, atores, professores, amigos, família, todos riam e se cumprimentavam pelo sucesso da apresentação.
Julia distraída buscava um alguém que não vinha, não estava ali. O estômago roeu, era fome ou decepção?!
Todos se foram, Julia terminou de limpar a maquiagem. Não tinha pressa. Não tinha ânimo. O apartamento estava vazio, os Pais haviam viajado de férias, teria várias semanas apenas para si. Ler os textos dos seus autores preferidos, ensaiar, ver filmes, vídeos de peças. Apesar de sociável, adorava estar só.
Foi a última a deixar o teatro. Ao pisar na calçada viu a sombra chegar devagar.
- Oi. – a voz de Romy era um fio, baixa, trêmula.
- Olá! – Julia era surpresa, palpitação.
- Amei as falas de Julieta ditas por você! – coração aos pulos de Romy.
- Amei o seu olhar! – Voz quente de Julia.
Sem sair daqueles olhos, Romy segura o dedo mindinho da moça aloirada a sua frente. Precisava tocá-la, mas tinha receio.
Julia umedeceu os lábios, fechou os olhos e pensou: “Minha estranha tão íntima!” – diz com a voz baixa:
- Quer ir comigo?
- Quero! - A resposta veio rápida e certa. Peito estourando.
O apartamento era amplo, mas a visitante nem percebeu, não tirava os olhos de suas mãos entrelaçadas aos dedos longos de pele clara, faziam um contraste lindo com seu tom canela.
Péssima anfitriã! Nem ofereceu um copo de água a jovem trêmula. Estancou de repente e se olharam profundamente. O reconhecimento foi imediato! O pensamento foi o mesmo para ambas: “É ela!”
As mãos que não haviam se soltado desde aquele singelo toque no mindinho lá na porta do Teatro, se afastaram lentamente e começaram a percorrer outros caminhos. Os lábios precisavam da umidade, do hálito, do gosto alheio. Não havia raciocínio, apenas instinto, puro sentir.
As bocas se tocaram como se sempre tivessem feito aquilo. Os gemidos invadiram o ar e cada pausa para respirar era seguida de longos suspiros de uma saudade antiga, de algo nunca antes vivido.
Como elas se amaram daquela forma? Nunca haviam feito antes!
Como se deram tanto prazer? De que forma os gritos de gozo rasgaram a noite se nunca antes haviam sido arrancados de suas entranhas?
Não sabiam! Viviam cada segundo infinitamente!
As horas não foram sentidas, somente os toques. O canto de um pássaro entra pela janela aberta que descortina a cidade sob uma luz quase fúcsia.
Era a Cotovia que alegremente anunciava o dia ou o Rouxinol que ainda lamentava o fim da noite?
Elas brincam, riem, olham-se nuas e o desejo renasce. A alegria do encontro preenche seus corações.
O final da história de Romy e Julia não teve veneno nem punhal. Mas o inicio foi de encantamento e arte emoldurados pela bela paisagem da janela do quarto.
Fim do capítulo
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Cristiane Schwinden
Em: 19/05/2018
Daí sim! Esse final alternativo é bem melhor!
Amei seu texto de cabo a rabo, uma gostosura só!
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Mariaravel
Em: 12/05/2018
Gostei da delicadeza da sua história...
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dannivaladares
Em: 12/05/2018
Marcya,
Sua sensibilidade, seu romantismo, sua delicade e suavidade, são sua essência e dão um brilho tão lindo aos seus texto.
Adorei.
Abraço forte.
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cidinhamanu
Em: 07/05/2018
Hey Márcya, tudo bem? Muito bom tê-la aqui!
Adorei a história e mesmo sendo um desafio, merecia ser continuada!!
Bjusss querida!
Cidinha.
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Manuelle Oliveira
Em: 07/05/2018
Feliz com sua volta. Agradeço por nos presentear romances apaixonantes. bjos
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brunafinzicontini
Em: 07/05/2018
Linda história, Marcya! De uma grande sensibilidade, delicadeza e fina sensualidade! Um poema de amor...
Estava com saudade de você! Sempre à espera das inesquecíveis "Cartas Esquecidas".
Um abraço,
Bruna
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