Capítulo 1
O cheiro de café invadia o apartamento com seu aroma de aconchego e paz, enquanto Elis passava os olhos sobre seu tablet vendo as principais notícias do dia. Curiosamente, a manchete de uma morte ocupava um canto e passava quase despercebida entre as notícias de política e futebol. Edson, travesti que havia sofrido tortura seguida de morte, cujo corpo havia sido encontrado por um mendigo, na principal praça da cidade.
Elis levantou seus olhos e viu a janela, e à sua frente a confortável cama king size do seu hotel cinco estrelas. Havia pedido seu café no quarto, evitava a confusão do refeitório sempre que podia, com os outros hóspedes conversando animadamente e sempre alguns olhos fitando-a sozinha em alguma mesa de canto. Quanta coisa se passava lá fora, enquanto ali o cheiro de café e o silêncio das alturas denotava um mundo perfeito!
Edson não veria o sol nascer naquele dia. Edson certamente se apresentava com outro nome, que a curta notícia nem trazia. Poderia ser qualquer nome, mas certamente um nome feminino. A notícia informava que Edson trabalhava em um ponto de prostituição que funcionava nas madrugadas, ali mesmo na praça principal, e também dizia que Edson tinha passagens pela polícia por furto e outros crimes e estava em liberdade condicional. Sua morte realmente parecia ter a importância do tamanho que as poucas linhas ocupavam na página.
Levantando-se, Elis aproximou-se da janela. Como uma morte poderia ser tão desimportante? Edson era travesti, e em raríssimos casos alguém como Edson poderia seguir outro caminho, que não fosse o crime ou a prostituição, que também era vista como crime. Jamais alguém seguiria um caminho tão difícil por opção, se tivesse outras escolhas.
Elis era supervisora geral de uma grande empresa, este havia sido seu primeiro emprego na vida, e seguiu todo o caminho até chegar onde estava, sem comprometer-se em sua vida pessoal em momento algum. Sua vida era estudar e trabalhar. Porém, havia dois meses, conhecera Tereza, mulher de cores vivas, como costumava dizer. Alegre, falante, lésbica assumida, frequentadora de debates e embates sobre a causa LGBT e pela primeira vez sentiu-se presa dentro do seu mundo heterossexual de mentira. Elis sempre soube que era gay, quando saía do país nas suas viagens de férias, ousava ter suas aventuras, porém sabia que seu desenvolvimento dentro da empresa – que já era difícil por ser mulher – seria praticamente impossível se assumisse sua homossexualidade. Seus planos de sair do armário ficavam aguardando pacientemente pela sua aposentadoria; porém, agora, esta parecia mais longe do que nunca. Conhecer Tereza havia catapultado seu sonho para o momento atual, uma urgência que invadia seus pensamentos.
“Droga!” pensou. “Se seu inglês não fosse tão bom, jamais pensaria que era brasileira quando a conheci na Grécia. Mas como eu iria imaginar que aquela linda mulher negra, vestindo uma canga com a bandeira da África do Sul, era do Rio de Janeiro?” e relembrou-se de quando a vira pela primeira vez, contrastando com a paisagem de casas branquíssimas e telhados azuis, um sorriso hipnotizante e o pedido de que tirasse uma foto sua, pois estava sozinha. Naquele momento, já não tinha mais volta, estava completamente apaixonada.
Tereza não saía do seu pensamento em momento algum desde aquelas férias. Uma semana inteira passando o tempo todo juntas, conhecendo lugares, comidas, passeando e descobrindo-se sozinhas, sem preocupação alguma. A liberdade de Tereza deixava Elis ainda mais apaixonada. E ela queria muito poder desfrutar da mesma liberdade, gritar para o mundo todo o seu amor, caminhar pelas ruas com Tereza como em Mykonos, de mãos dadas, abraçadas, beijá-la quando sentisse vontade. Porém, fora daquela janela, a intolerância e a violência não davam espaço ao amor. Elis sabia que havia uma escolha a ser feita. Sua segurança material, apoio familiar, sua segurança pessoal, ou esse amor que fazia sua vida completa? Tereza não a pressionava para que assumissem seu amor, porém, Elis não conseguia mais conviver consigo mesma pela metade.
Viu, no vidro da janela, sua imagem refletida. Podia ver a si, de um lado do vidro, dentro do seu ambiente seguro e confortável e a si do outro lado do vidro, onde a vida acontecia, onde as notícias nem sempre eram boas, mas onde estava a vida real. Estendeu a mão em direção à sua imagem de fora, e ela também estendeu sua mão. Encontraram-se, de palmas abertas e dedos estendidos, no vidro que as separava.
Elis sentiu sua própria presença como se fosse outra pessoa e olhando profundamente em seus próprios olhos, percebeu que na realidade esse grande amor que ansiava viver nem era por Tereza: era por si.
Fim do capítulo
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mcassolwriter
Em: 08/05/2018
A Mana consegue em menos de mil palavras nos fazer questionar a crueldade do mundo e as amarras que nos mesmas nos colocamos. Otimo! Louca pelo capitulo 2
Resposta do autor:
Obrigada, amore! Seguimos desamarrando-nos, né? Bjs.
RosanePatell
Em: 08/05/2018
Muito bom! Porque nos faz refletir sobre esta dificíl descisão de nos libertar-nos das amarras que a sociedade ''correta'' nos impõe.
Resposta do autor:
É exatamente isso, Rosane! A moralidade hipócrita é cruel e limitadora.
Bjks.
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cidinhamanu
Em: 07/05/2018
Sera uma nova vida para Elis.
Ela vai ter que começar a viver, se aceitar, amar-se para poder amar o próximo.
Resposta do autor:
Será sim! O fato de perceber que a vida pode ser mais completa, é sempre um avanço!
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Cristiane Schwinden
Em: 06/05/2018
Presenciamos o início de um desabrochar! (e quem sabe fuga do armário...)
Amei esse final poético.
Resposta do autor:
Muito obrigada Cristiane!!
Significa muito pra mim! ????????
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