Derrube suas paredes, essa é uma cidade de pontes.
-Oi – Júlia cumprimentou a colega que acabara de chegar de uma corrida e se jogara no sofá.
- Oi – Valéria respondeu sem tirar os olhos da tela do celular.
- Tudo bem com você? – Júlia perguntou acanhadamente. – Como foi a corrida?
Valéria bloqueou o celular e encarou a menina com desconfiança.
- Aconteceu alguma coisa e eu não estou sabendo? – Perguntou com urgência. – Alguém da minha família morreu e pediram para você me contar?
- Não, ninguém morreu. Eu só queria conversar um pouco – Júlia apressou-se em se explicar sem jeito. – Por que pediriam para eu te contar se alguém da sua família tivesse morrido?
- Porque você é a minha colega de apartamento e a única pessoa do meu país – Valéria disse como se fosse óbvio. - Provavelmente escolheriam você para me dar a notícia.
- Faz sentido – Júlia refletiu mordiscando o canto direito do lábio inferior. – Você é sempre tão fúnebre ou está esperando uma notícia ruim?
- Eu não sou fúnebre – Valéria rebateu revirando os olhos. - Essa é a primeira vez fora da quadra que você me fala alguma coisa além de “oi”, o que queria que eu pensasse?
- Tem razão – Júlia admitiu envergonhada. – O meu nível de interação social está um pouco abaixo do normal, mas não quis te assustar. Desculpe-me, sou uma idiota.
- Tudo bem – Valéria levantou-se e balançou os ombros despreocupada enquanto abria a porta da geladeira e procurava alguma coisa. – Achei que fosse extremamente tímida ou que não ia muito com a minha cara. Acontece bastante.
- Não é nada pessoal, é só que eu ainda não consegui me adaptar aqui e sinto saudades de casa o tempo inteiro – Júlia confessou jogando-se no sofá que Valéria acabara de desocupar. – Ergui essas paredes ao meu redor na esperança de não ter que lidar com tudo o que está acontecendo. Criei um lugar seguro onde eu pudesse esperar o tempo passar e finalmente voltar para casa, mas agora essas paredes estão me sufocando e a saudade vai me enlouquecer. Sou muito idiota.
- Não passou pela sua cabeça que eu sou o mais perto de casa que você tem aqui? – Valéria deu um longo gole em uma garrafa de suco que encontrara escondida atrás de alguns suplementos de Júlia.
- Eu já mencionei que sou idiota?
- Você não é idiota, é jovem. Em alguns casos são sinônimos, mas o seu não parece ser. É sua primeira temporada fora?
- Sim, foi um longo caminho até aqui e agora tudo parece tão intenso, acho que acabei perdendo a cabeça. Eu preciso me adaptar antes que esse estresse afete meu jogo. Sonhei tanto com esse momento, mas ele não está sendo como eu esperava.
- Não se cobre tanto, o primeiro mês é sempre mais difícil. O time está criando uma interação maior e você vai ganhar confiança que precisa para se sentir bem. E ocupar sua mente fora da quadra é o melhor jeito de lidar com a saudade. Mas não se desespere, vai ficando mais fácil com o tempo.
- Eu espero que sim. Há quanto tempo você joga fora? – Júlia perguntou puxando assunto.
- Essa é o meu quinto ano. Joguei uma temporada na Itália e as três últimas aqui mesmo em Istambul, pelo Vakifbank .
- Uau! – Júlia impressionou-se - Vakifbank é um clube espetacular, por que saiu de lá?
Valéria virou o resto do suco e pensou um pouco antes de responder.
-Eu não quero me gabar, mas eu sou uma ótima oposta. E poderia continuar no Vakifbank e buscar pelo meu quarto título seguido no clube – Valéria falava enquanto Júlia tentava entender o que havia de errado nisso. – Só que essa previsibilidade não me motiva mais. Estou cansada de ser apenas uma ótima oposta em um clube com jogadoras ótimas. Quero estar em um time que me motive a ser parte do crescimento dele. E tudo bem se eu não for ótima, contanto que meu time seja.
- Você está dizendo que saiu de um time depois de ser tricampeã porque não se sentia motivada o bastante? – Júlia perguntou com uma sobrancelha arqueada.
- Não me entenda mal, eu adoro ganhar. Estamos treinando juntas há uns dias e você deve ter percebido que eu jogo para isso. Mas o que eu busco não são apenas as vitórias, minha realização não é só levantar uma taça no final do campeonato. O que completa minha felicidade é a trajetória de ser parte de algo até a conquista final, me divertir a cada ponto, ser desafiada e desafiar, fazer parte de um time que cresce junto.
- E você está conseguindo isso agora? – Júlia perguntou sem entender muito bem o rumo filosófico e espiritual que a conversa havia tomado.
- Bom, apesar da levantadora do meu time me ignorar completamente dentro de casa – Valéria fuzilou Júlia que revirou os olhos e deu um sorriso. - Em quadra ela consegue me passar bolas que fazem com que cada ponto seja um passo na minha trajetória. Então sim, estou feliz no Eczacıbaşı e você também tem tudo para ser. Derrube suas paredes, essa é uma cidade de pontes.
- Obrigada por ser legal comigo – Júlia agradeceu sincera. – E me desculpa por ter sido idiota com você esses dias.
- Esquece isso – Valéria voltou a abrir a geladeira sem ter certeza do que estava procurando. – Droga, preciso ir ao mercado.
- Eu vou com você- Júlia levantou do sofá com um pulo.
- Essa sua súbita empolgação está me assustando um pouco.
- Eu preciso de ajuda para comprar comida – Júlia disparou exasperada. – Juro que vou passar mal se tiver que comer qualquer coisa páprica mais uma vez.
- Meu Deus, garota. Você necessita mesmo de uma intervenção – Valéria se esticou para pegar sua bolsa em cima do balcão. – Vamos.
Enquanto voltavam do mercado cheias de sacolas, Valéria mostrava os lugares próximos e dava algumas dicas para Júlia se desenrolar pela cidade.
- Esse é um bairro ótimo, é seguro, perto do centro e o mais importante é que não é tão tradicional quanto os do lado norte.
- O que isso significa?
- Você pode levar uma vida quase normal, trabalhar, se divertir, andar pelas ruas sozinha, mas sempre tenha cuidado, a Turquia é um país extremamente machista e patriarcal os homens aqui usam qualquer comportamento seu como justificativa para te assediar.
- Estou acostumada com isso, também sou de um país machista e patriarcal, lembra?
- Mesmo assim tenha cuidado, evite ir a certos bairros e cidades sozinhas - Valéria trocou as sacolas de mão para pega a chave do portão em seu bolso e encarou Júlia – apesar do machismo ser o mesmo, a cultura e a religião não são.
- Você está me deixando assustada – Júlia pegou uma das sacolas de Valéria para que ela destrancasse o portão.
-Não fique, Istambul é maravilhosa, você vai encontrar seus lugares favoritos, se divertir, experimentar comidas deliciosas, bebidas incríveis e quem sabe até descolar um marido – Valéria disse dando uma piscadela.
- Eu não quero um marido – Júlia tratou de deixar claro que aquilo estava totalmente fora dos seus planos – nem aqui e nem no Brasil.
- Estou só brincando, eu sei que você é lésbica.
- Como você sabe?
- Gosto de acompanhar as fofocas dos times brasileiros – Valéria respondeu balançando os ombros – você esteve nelas por um bom tempo quando se assumiu.
- Estive? – Júlia perguntou surpresa.
- Sim, diziam que você era a novinha terror das veteranas da Superliga, elas brigavam nos vestiários pela sua atenção e uma delas foi parar no hospital depois que você terminou um lance com ela. É uma bela reputação.
- Definitivamente isso é bem mais legal do que foi a minha vida quando me assumi – Júlia disse boquiaberta - eu não fazia ideia, isso é absurdo.
- Histórias sobre o que rola nos vestiários são as mais interessantes, mas não se esqueça de que são apenas fofocas – Valeria disse maternalmente – você tem um futuro brilhante, não deixe que fofocas ou paredes te impeçam de chegar a qualquer lugar. Você está aqui, viva isso.
-Você foi oficialmente promovida como minha conselheira. Por que eu te ignorei esse tempo todo mesmo? – Júlia perguntou sentindo ir se dissipando a angustia que instalara no seu peito desde que saíra do Brasil. Fazer uma amiga a fizera recordar que aquele ainda era o seu sonho e que por mais que ela desejasse com todas as suas forças voltar imediatamente para Alex, não poderia fazer isso sem antes realizá-lo.
- Porque você é idiota – Valéria disse e arrancou a primeira gargalhada de Júlia em solo turco.
Fim do capítulo
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Gabi2020
Em: 06/08/2020
Olá!
O blog ainda existe, porém não está atualizado, segue o link e divirta-se:
http://babadosdamonicapp.blogspot.com/
Se não souber a que o apelido se refere, pode perguntar, alguns ainda sei... Kkkkk...
Beijos
Resposta do autor:
Eiiiitaa! hahah
obrigada! Vou dar uma olhada pra ver se reconheço alguma coisa rs
Gabi2020
Em: 06/08/2020
Goatei da Valéria , vai dar uma leveza na Júlia, sempre tão tensa.
E Valéria tem razão, os bastidores do vôlei são um caso à parte! Kkkkk...
Não sei se você algum dia leu um blog chamado: Babados da Mônica, não sei se ele existe ainda, mas ali tinha muitas histórias sobre esses bastidores, porém, para entender, você tinha que estar por dentro de tudo e saber as gírias e apelidos a quem se referiam, pois a pessoa tratava as jogadoras por apelidos, tipo, Russa, Hero, Juninho Play e por aí vai! Kkkkkkk.... Na época tinha tempo e passava o dia lendo.
Resposta do autor:
hahah eu ouvi falar desse blog, mas não cheguei a ler, mas imagino o que role altas paradas insanas #queria kkkk
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NovaAqui
Em: 26/02/2018
Agora vai ficar mais leve para Júlia. Valéria vai ajudar muito
Espero que você não inventa nada ruim com ela.
Abraços fraternos procês aí!
Resposta do autor:
hahaha vc está traumatizada? Mas pode deixar, vou cuidar dela!
Obrigada por comentar =)
Abraços ;*
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