Capítulo 7
SURPRESAS!
O sol entrava pela fresta da cortina e tingia de amarelo parte do chão de madeira nobre do quarto. Iara abriu os olhos devagar para não sentir a dor da luz invadindo-os. Espreguiçou-se e sentiu a cabeça pesar. Tinha vontade de passar o dia todo naquela cama, mas sabia que tinha que ser mulher de Lorenzo, pelo menos no seu funeral! Olhou para o lado da cama, a fim de ver que horas eram, quando percebe Constance deitada na “long chaise” em frente! Não entendeu o que ela fazia ali, porque tinha passado a noite no seu quarto deitada de frente pra sua cama?! A última coisa que lembrava era do médico dizendo que ela não poderia viajar depois do enterro, pelo menos nos próximos três dias. Exame de sangue...anemia...enfim, tudo era meio confuso na sua mente...mas mais confuso ainda era ver Constance ali, como a vigiar seu sono!
“Essa mulher é doida mesmo! Claro que ela está preocupada com o bem estar do bebê e,
como ele ainda está dentro de mim, tem que cuidar da minha saúde por tabela! Mas dormir no meu quarto olhando pra minha cara já é demais!”
Iara começou a tentar se levantar da cama quando Constance acorda de repente, meio que no susto, e já vai na direção dela amparando-a pelos braços...
- Ei, espera aí...não tô morrendo...consigo me levantar sozinha! Não me diga que passou a noite aí nesse divã?
Ainda sonolenta, mas bastante ágil pra alguém com problemas crônicos na perna, Constance a conduziu até o banheiro dizendo...
- Sim e posso te garantir que é bem confortável!
- Mas porque passou a noite aqui? Não precisava...
- Precisava sim, e se você se sentisse mal e precisasse de ajuda durante a noite? Poderia não conseguir chamar alguém! Era necessário que eu ficasse!
Iara decidiu não contra-argumentar já havia percebido que Constance era boa em convencer as pessoas com sua vozinha suave, mas firme! Deixou-se levar até o banheiro e, mesmo sem querer admitir, sentiu o quanto era bom ser cuidada por alguém!
Quando saiu do banheiro, Constance estava com um de seus vestidos na mão! Incrível, como ela podia ter adivinhado que havia separado justamente aquele para o funeral?! E como se tivesse ouvido sua pergunta, Constance diz...
- Desculpe ter aberto seu armário e pego este vestido, espero que tenha acertado na escolha!
- Sim...acertou! Era esse mesmo que eu havia separado!
- Então me deixe ajudá-la a se vestir.
E aproximou-se de Iara para ajudá-la a se despir. Esta por sua vez, se esquivou demonstrando um embaraço incomum a ela...
- Pode deixar que me visto sozinha!
Constance sorri do embaraço da mulher a sua frente e não dando margem para argumentos tolos, arriou as alças da camisola de Iara sem dar tempo que ela reagisse, deixando-a só de calcinha...
- Aqui sempre foi uma casa de mulheres, a nudez nunca me envergonhou! E quem você acha que te pôs essa camisola ontem à noite?!
Iara sentia vontade de cavar um buraco no chão e lá se esconder até que esquecessem dela. Também nunca teve problemas com sua nudez nem com a alheia. Era sobrevivente de um abrigo para meninas e durante toda a vida não teve privacidade para o banho, mas ficar nua na frente de Constance era algo que a fazia se sentir desprotegida, frágil, exposta! Aquela mulher tinha o poder de fazê-la se sentir uma garotinha estúpida!
Cobrindo os seios com as mãos, falou num tom nervoso e de olhos baixos...
- Pode deixar que eu coloco o vestido! Se quer me ajudar, pegue o par de sapatos pretos de verniz que estão separados no armário.
Constance continuou com um leve sorriso no rosto, como se Iara fosse uma criança boba, e pegou os sapatos pedidos. Quando se virou, Iara já estava vestida e de costas para ela pedindo que levantasse o zíper do vestido também negro. Ficou olhando em volta do quarto como a procurar por algo e perguntou...
- Onde está seu estojo de maquiagem e sua escova? Quer os cabelos presos ou vai deixá-los soltos assim mesmo?
Iara estava surpresa! Constance parecia não querer deixar que ela fizesse esforço algum, nem mesmo se aprontar para descer! Tentou argumentar...
- Não precisa se preocupar, eu mesma faço isso, já estou acostum....
- Ah, achei! Está tudo aqui no banheiro! Sente-se que vou fazer uma leve maquiagem em você! Não sou de usar maquiagem, mas sempre fiz nas mulheres aqui de casa...
E começou a maquilar levemente Iara, depois escovou seus cabelos e os prendeu num belo coque no alto da cabeça. Iara olhou-se no espelho e teve que admitir que estava ótima! Sóbria sem perder a elegância! Deixando escapar um sorriso, comentou...
- Ficou muito bom!
- Sim ficou!
Iara percebeu que Constance a encarava com os olhos brilhando mais que o normal, pareciam lágrimas represadas e de fato eram, pois uma delas rolou acidentalmente pelo rosto. Tentando disfarçar, Constance começou a recolher os apetrechos e guardá-los. Depois, já recomposta, virou-se para Iara e disse...
- Agora eu vou tomar um banho e me arrumar pra encontrá-los na Capela.
Não se contendo Iara perguntou...
- Essa lágrima foi por seu pai?
Constance a olhou profundamente por longos segundos e respondeu com um leve sorriso triste...
- Não! Foi a lembrança de momentos felizes!
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O funeral foi acompanhado por mais de 200 pessoas, parecia que a metade daquele pequeno Vilarejo tinha decidido comparecer ao enterro de um de seus filhos mais ilustres, e mais ingratos também, pois Lorenzo não visitava a Vila há muitos anos e não parecia fazer questão de lembrar de suas origens ou cultivar amor por aquele lugar.
Ainda assim as pessoas faziam questão de participar daquele evento que consideravam um grande acontecimento, como se assim pudessem se sentir tão importantes quanto imaginavam ser o homem que enterravam.
Havia Repórteres por toda a parte, jornais, revistas e até mesmo redes de TV faziam a cobertura do funeral do grande empresário Europeu, já se especulando sobre o destino das empresas e da fortuna que havia deixado. Além disso, várias notas maliciosas já haviam sido publicadas falando sobre as amantes que Lorenzo e o amigo levavam no pequeno avião e que morreram com eles.
Iara passou a maior parte do tempo sentada com Jordi e Constance ao seu lado. A imagem de viúva grávida e desamparada só fazia aumentar o falatório sobre a pouca idade da mulher de Lorenzo e de como seria dividida a tão falada herança. Especulavam se a filha e a madrasta se davam bem ou estavam apenas representando para os presentes. E até mesmo a saúde fragilizada de Iara já havia chegado ao conhecimento de todos, que aumentavam a importância e a gravidade da doença.
Iara e Constance não falaram com os repórteres, apenas agradeceram a presença de todos e se retiraram para a casa principal logo que terminou a cerimônia. Jordi e os amigos de Constance decidiram ficar até que todos se dispersassem para que não incomodassem mais as duas.
Apesar do vento frio, o sol se manteve a pino toda a manhã e tarde, o que tornou tudo ainda mais cansativo para Iara. Constance percebendo seu abatimento se aproximou dela e disse a amparando pelo braço:
- Vamos para o seu quarto...você precisa descansar! Também tenho que te dar a injeção que o médico mandou!
Iara tinha pavor de agulhas e fez um muxoxo choroso...
- Ah, não! Preciso mesmo tomar essa injeção?! Não tem pílulas pra substituir?! Porque tinha que ser injeção?!
Constance a segurou pela mão e enquanto subiam as escadas explicava calmamente o que o médico havia dito. Iara não sabia explicar, mas começou a sentir um enorme conforto e bem estar em ser cuidada por Constance com tanto zelo e carinho, coisa que estava acostumada somente com Jordi. Só ele tinha intimidade para chegar tão próximo a ela daquela forma, mas por alguma razão sentia-se mais calma e à vontade para aceitar os cuidados de Constance.
- Quer que eu prepare a banheira pra você relaxar um pouco dessa movimentação toda?
- Sim, acho que um bom banho morno me faria muito bem agora, mas por que não chama Emma para fazer isso?! Você também precisa descansar...
- Não! Faço questão de preparar seu banho e vou ficar aqui no quarto até terminar, depois aplico a injeção e espero você adormecer para ir para o meu quarto. Deixe que faça isso, senão vou ficar intranquila!
O modo como Constance falava era tão doce e convincente que não havia jeito de recusar. Iara sorriu conformada e deixou que ela fizesse tudo ao seu modo. Não conseguia deixar de pensar se ela era sempre tão convincente assim, alguém difícil de contrariar pela forma suave e carinhosa com que pedia as coisas. Carinhosa, mas decidida, o que tornava tudo ainda mais difícil de dizer não!
“Se for assim, já vi que vai ser complicado ir embora daqui! Tenho que dizer logo a ela que não quero ficar e ir embora assim que o médico me liberar! Quanto mais demorar, pior vai ser!”
Estava quase dormindo na banheira quando Constance entrou trazendo sua camisola nas mãos, disse com um sorriso acolhedor...
- Venha, vou ajudar a se vestir. Não pode dormir aí, pois ainda não aprendeu a respirar debaixo d’água!
Mesmo envergonhada, Iara saiu da banheira e aceitou que ela enxugasse seu corpo e a vestisse. Parecia não ter forças para negar qualquer coisa àquela mulher!
No pânico da injeção Iara virou o rosto tremendo para não ver a agulha entrar em sua carne, mas a leveza e o cuidado com que Constance aplicou o medicamento fizeram com que ela se sentisse uma tonta ao perceber que tudo tinha terminado em segundos e sem dor!
Constance a colocou na cama e cobriu como se fosse uma criança. Depois deixou o quarto a meia luz e sentou na espreguiçadeira em frente à cama...
- Agora relaxe! Finja que não estou aqui.
- Vá para o seu quarto, você também precisa descansar.
- Estou bem, acredite! Não há nada melhor que ter por quem se cansar.
Uma nuvem de melancolia tomou novamente aqueles olhos que pareciam negros de tristeza! Iara sentiu o peito apertar e uma vontade enorme de poder dizer ou fazer algo que removesse a escuridão daquele olhar! Mas sabia-se incapaz naquele momento. Fechou os olhos mais para não ver que para relaxar, mas acabou adormecendo.
Não viu quando os filhos de Emma, Débora, Francesca e Laura partiram da casa no dia seguinte, e se sentiu aliviada por não ter que se despedir deles. Jordi aceitou o convite do Dr. Carlo para visitar algumas cidades da Toscana, depois que Iara o convenceu de que ficaria muito bem cuidada por Emma e Constance, e de que ele não deveria perder aquela oportunidade de agarrar de vez o seu Príncipe.
Os dias que se seguiram foram todos iguais e ao mesmo tempo cheios de agradáveis surpresas para Iara! Quando acordava já encontrava Constance no quarto pronta para ajudá-la a se vestir e ir tomar o café da manhã. Depois iam para a varanda ou davam uma volta pela Vinícola. Constance mostrava a ela todo o procedimento para se fazer um dos melhores vinhos do mundo, desde a colheita das uvas até o envelhecimento do vinho para apurar o seu “bouquet”. Depois almoçavam juntas e à tarde Constance saía para cavalgar ou acompanhar os trabalhos na produção. No final da tarde Emma preparava um belo lanche e levava até o quarto de Iara onde Constance a acompanhava comendo sempre muito pouco. Depois a ajudava com o banho. Iara já não mais sentia vergonha de se desnudar na frente dela. À noite jantavam juntas e novamente conversavam sobre assuntos amenos, nunca sobre a vida pessoal de nenhuma delas. Também não voltaram ao assunto sobre a decisão de Iara acerca da proposta feita por Constance, era como se aquele assunto tivesse sido esquecido, mas ambas sabiam que era apenas por um tempo e, como num acordo tácito, nada era dito a respeito.
Iara descobriu o quanto culta era Constance, conhecia de artes em geral, amava música e literatura, havia viajado por meio mundo e tinha curiosidade pelo diferente. Adorava ouvir Iara contar de suas aventuras no abrigo de menores e do lado tão oposto ao seu mundo. Nessas horas olhava Iara com admiração como se sentisse um enorme respeito pela vida dura que havia tido aquela mulher, sem família, sem amparo!
Ao final de quase uma semana, Iara se sentia tão próxima de Constance como se já a conhecesse há muito tempo! Próxima o suficiente para lhe contar das coisas boas e ruins que havia vivido na infância e adolescência e do desejo de mudar sua trajetória. Até então, só com Jordi sentia segurança para falar de sua vida, além do mais, ele havia acompanhado de perto boa parte daquelas experiências vividas por ela. Pela primeira vez contava a alguém coisas que só ela e Jordi sabiam, nem mesmo os “paizinhos” souberam tanto, nem mesmo Lorenzo!
No entanto, parecia haver um muro invisível durante aquelas longas conversas, uma barreira que impedia cada uma de desvendar mais que o limite que impunham. Pelo lado de Constance, o assunto sempre morria quando algo a fazia lembrar-se do acidente ou de Camille. Fechava-se como uma concha e os olhos se anuviavam numa cor de mar pré-tempestade. Ás vezes encerrava a conversa subitamente e Iara pressentia ser melhor não insistir. Pelo lado de Iara, a conversa sempre parava quando se aproximavam perigosamente de desvendar sua vida pós-orfanato, quando começou a se sustentar através das relações com os “paizinhos”. Confessar para Constance que se prostituía para conseguir realizar seus sonhos não estava nos seus planos ainda, apesar de já ter deixado claro que o casamento com Lorenzo não havia sido propriamente por amor.
O que mais a surpreendia nisso tudo era a forma como Constance ouvia com serenidade e até mesmo divertida, quando Iara contava das vezes em que enganava as monitoras e outras internas para conseguir o que queria. Mesmo suas falhas de caráter pareciam não chocar Constance ou causar nela qualquer sentimento de repreensão pelas atitudes de Iara, era como se ouvisse, divertida, uma travessura infantil.
Os exames demoraram mais que o normal e ao invés dos três dias prometidos pelo médico, só ficaram prontos no dia da missa de sétimo dia de Lorenzo. Após a cerimônia na capela, o Dr. Giani apresentou a Constance e Iara o resultado dos exames e sacramentou seu diagnóstico:
- Como eu havia previsto, trata-se de uma anemia ferropriva mesmo! As injeções de suplemento fólico devem continuar como ministrei antes pelas próximas quatro semanas, no mínimo. Trouxe comigo uma lista de alimentos a serem consumidos sem reclamação, ouviu bem Senhora Iara?! E aconselho a Senhora a permanecer aqui nesta casa. Sua gestação requer cuidados especiais para que sua saúde não seja mais afetada do que já está e, principalmente, para que seu bebê nasça sem sequelas e completamente saudável!
- Mas Doutor, eu queria que minha filha nascesse no meu País! Quero voltar antes de dar a luz! Posso contratar alguém pra cuidar de mim lá no Brasil também! Todos aqui tem sido maravilhosos comigo, mas esse não é o meu lugar, não é a minha gente! Quero que minha filha seja brasileira como eu!
Logo que disse isso, Iara sentiu vontade de morder a própria língua, olhou para Constance instintivamente para saber a reação dela, e a viu abaixar a cabeça e encolher os ombros melancolicamente. A reação física de Constance àquelas palavras fora tão imediata e impactante que Iara arrependeu-se no momento seguinte por ter sido tão impulsiva. Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, viu Constance levantar-se e com o andar arrastado e a cabeça quase enterrada no peito, sumir atrás da porta da biblioteca.
Emma, que a tudo presenciara, disse com tristeza...
- Oh, menina...como fostes dura com ela! Minha Conca não merece isso! Desculpe, não quero obrigá-la a nada e entendo sua vontade de voltar para sua terra, mas acho que ela não esperava por isso!
O Dr. Giani, sem entender exatamente o que se passava ali, completou seu diagnóstico...
- Bem, minha cara, assim como Emma posso até entender sua vontade de ter sua filha no seu País, mas não será essa a minha indicação. Não aconselho que viaje agora, pois não acho seguro um desgaste desses sem necessidade. Penso que antes de querer que sua filha seja brasileira de nascimento, deve querer que ela seja saudável e perfeita! É muito risco por pouca coisa, pois pode registrar seu bebê em qualquer consulado brasileiro aqui na Itália. Portanto, meu diagnóstico é para que fique aqui até que essa criança nasça com a segurança e os cuidados que a situação exige. Quero deixar bem claro que por mim a Senhora não sai desta casa até pelo menos um mês após dar a luz, que julgo ser o tempo necessário para que seu organismo se recupere!
Iara ouviu o médico, mas sua atenção estava para a porta da biblioteca. A imagem cabisbaixa e derrotada de Constance não saia de sua cabeça e as palavras do Doutor começaram a martelar como um mantra no seu ouvido.
Levantou-se de repente e disse...
- Obrigada por tudo, Doutor, mas preciso conversar com Constance agora!
E se dirigiu para a biblioteca.
Ao entrar na biblioteca, Iara mal conseguiu distinguir o vulto de Constance no meio das estantes e dos móveis sóbrios! O ambiente estava quase que totalmente no escuro e apenas um pequeno facho de luz vinha da fresta da pesada cortina que cobria totalmente a janela.
Fechou a porta atrás de si e tudo ficou ainda mais sombrio.
Constance estava sentada numa poltrona ao lado da janela e a pequena nesga de luz deixava ver com pouca nitidez os traços clássicos, porém tristes daquela mulher.
Não sabia exatamente o que dizer a Constance, mas sentia que tinha que se retratar, que mesmo sentindo vontade de ir embora e voltar para a sua antiga rotina, não deveria ter sido tão contundente nas suas palavras! Aliás, nem sabia mesmo se queria voltar porque tinha saudades das suas coisas ou apenas para fugir do novo, de tudo aquilo que a proposta de Constance traria de inesperado na sua vida! Tinha receio do desconhecido!
Além disso, Constance e Emma se desdobravam por atender todas as suas vontades. Tinha sido muito mal agradecida no seu comentário com o médico e precisava se desculpar com ela.
Aproximou-se de onde ela estava tentando ver com mais clareza seu rosto, mas seus olhos pareciam uma mancha negra. Não deixavam ver o que se passava no seu semblante. Iara parou na frente dela e esfregando nervosamente as mãos uma na outra tentou explicar melhor o que dissera antes na sala...
- Constance eu não quis ofender nenhum de vocês! Desculpa pelas palavras tão estúpidas, sei que vocês estão fazendo tudo o que podem pra que eu me sinta bem aqui e, acredite, estão conseguindo! Eu me sinto muito à vontade nesta casa e...
Respirou profundamente para completar com a voz meio trêmula...
- ...e me sinto também muito à vontade com você! Sua companhia nestes dias tem me feito muito bem! Por isso peço que não leve em consideração o que disse, sou muito impulsiva e acabo falando coisas sem pensar direito.
Constance permanecia no mais profundo silêncio, era como se fosse uma estátua de pedra, com o rosto voltado para algum ponto na altura da barriga de Iara. Mas como a luz era fraca, Iara não conseguia ver para onde ela olhava exatamente.
Pensou em abaixar o corpo para que seus rostos ficassem no mesmo nível, mas a barriga e o cansaço que sentia a impediam de ficar nessa posição. Aproximou-se um pouco mais e tentou tocar o ombro de Constance, mas ela se levantou de súbito e recuou até um ponto escuro num canto do cômodo. Iara não conseguia ver mais que um vulto agora e sentiu o coração disparar no peito quando ouviu a voz grave e extremamente sombria que saiu da boca de Constance...
- Já deu a sua resposta! Tem razão, você pode contratar alguém que faça tão bem ou melhor o que Emma e eu fazemos! Assim que o Doutor Giani a liberar, vou pedir que Gigio providencie o Helicóptero para levá-la de volta a Roma e possa retornar ao Brasil o mais breve possível! Não quero segurá-la aqui nem um minuto a mais que o necessário!
- Constance, eu queria que você entendesse que...
Iara tentou explicar mais uma vez que agiu por impulso, mas na verdade já havia até mesmo cogitado a idéia de ficar ali e aceitar a proposta de Constance. Os últimos dias haviam sido muito serenos e se sentia protegida com aquela família, com os cuidados de Constance. Por mais que quisesse negar pra si mesma, ali naquele lugar estava começando a se sentir mais aconchegada que em qualquer outro no mundo!
Mas Constance não a deixou continuar, e com a voz quase inaudível disse...
- Eu entendo! As pessoas são substituíveis mesmo e não falo isso te criticando, é apenas uma constatação!
- Mas eu não...
- Iara, desculpe se de algum modo a minha proposta a ofendeu! Quis apenas mostrar que não me importa essa herança, somente essa criança que vai nascer...desculpe!
A voz de Constance saia cada vez mais fraca e por fim ela decretou...
- Preciso ficar sozinha, por favor!
Iara não entendia como perdia todos os seus argumentos diante dela! Quis se desculpar, quis falar o quanto estava arrependida, que iria fazer o que o médico recomendou, mas Constance se fechou de tal modo que ela tinha receio de continuar tentando.
Mas antes de desistir resolveu apelar para o instinto de proteção dela e, com a voz mais meiga que conseguia fazer, disse...
- Tá bem...já vou sair...mas pode mais tarde me ajudar com o banho?!
Constance sequer levantou a cabeça! Continuou parada onde estava sem se mover e parecia nem respirar!
Depois de passado cerca de um minuto sem resposta, Iara decidiu sair da biblioteca e chamar Emma para que tentasse convencer aquela estranha mulher a pelo menos ouvir suas explicações.
Assim que saiu, ouviu o barulho da chave trancando a porta. Pressentiu que ninguém conseguiria conversar mais com Constance naquele dia!
Logo que chegou à sala onde ainda estavam Emma e o Dr. Giani, foi abordada pela jovem senhora querendo saber como estava Constance. Iara contou que tentou se desculpar, mas que ela não quis falar muito e nem ouvi-la e por isso achou melhor tentar mais tarde ou amanhã.
Com o semblante bastante preocupado, Emma balançou a cabeça e disse como que profetizando...
- Tomara que ela não entre naqueles momentos de catatonia, não suporto quando a vejo assim! É terrível quando ela perde a vontade para tudo, até mesmo de andar, comer, viver!
Uma lágrima caiu dos olhos abatidos de Emma e o Dr. Giani perguntou...
- Sabe que vai ter que aumentar a dose dos remédios. Tem para quanto tempo ainda?
- Acho que para uma semana nós temos, mas seria bom que o Senhor nos trouxesse mais, pelo visto começará um período daqueles!
- Então virei duas vezes por semana para acompanhar as duas.
E virando-se para Iara completou num tom severo...
- E agora mais que nunca peço que ouça minhas recomendações, Senhora! Se não for por você mesma, que seja por sua filha e por Constance, que parece querer tão bem a vocês duas! Fique aqui até depois do parto! Quando a menina nascer, lhe direi em quanto tempo poderá voltar ao Brasil!
E já estava saindo quando lembrou de um detalhe e falou...
- Ah, e se Constance não estiver em condições de continuar lhe aplicando as injeções de ferro, basta me ligar e enviarei alguém nos dias em que não puder estar aqui para isso. Boa tarde a todos!
Iara se voltou para Emma com um ar de desamparo e perguntou...
- Será que ela vai entrar em depressão por causa disso? Não quero que outra pessoa me aplique injeções...quero ela...já me acostumei!
- Desculpe lhe dizer isso, mas não sei se ela estará em condições de continuar cuidando de alguém. Não tem idéia de como são essas fases e o pior é não saber até quando vai durar!
- Ai, Emma, tô me sentindo muito culpada por isso tudo! Não tive intenção de magoá-la!
- Deixe estar, menina, amanhã saberemos como ela vai reagir! Não tente mais falar com ela hoje, não irá conseguir! Só espero que você siga as recomendações do médico e fique aqui conosco! Não quero usar os problemas psíquicos de Constance como desculpa, mas talvez se ficar poderá evitar que ela se afunde em melancolia mais uma vez!
E deixou a sala enxugando discretamente mais uma lágrima que caia.
Iara sentia uma angústia só comparada à quando entrou pela primeira vez no abrigo de menores! Era uma sensação de culpa e abandono que não sabia explicar!
Sentia vontade de bater naquela porta e insistir para que Constance a ouvisse, para que ela olhasse em seus olhos e lhe desse atenção! Que a xingasse, gritasse, qualquer coisa, menos aquela tristeza sem fim!
Mas sabia que Emma estava certa, o melhor era não insistir mais naquele dia.
Como sentia falta de Jordi naquele momento! O amigo era muito afobado, mas sabia dizer o que Iara precisava ouvir para se acalmar um pouco ou apavorá-la de vez!
Em seu quarto ficou horas olhando para o teto e pensando no que tinha se passado naquela tarde e nos dias que antecederam. Constance era sempre tão atenciosa e solícita, parecia não se cansar nunca e seu humor era sempre o mesmo: sereno, suave e generoso! Adorava a forma como ela era gentil até nos pequenos gestos, como quando a auxiliava a subir as escadas, no modo como a ajudava no banho, a vestir-se, quando a cobria na cama e sentava em frente até que adormecesse, no jeito carinhoso de olhá-la quando contava algo divertido!
O fato era que nunca tivera esse tipo de atenção de ninguém! Jordi era como um irmão que ela sempre amparou. Era carinhoso com ela, mas a própria Iara não era afeita e mimos e melosidades. Tinha um jeito muito seco no trato com as pessoas e Jordi era o único com o qual ainda conseguia ser mais gentil! Com os amantes usava de uma falsa meiguice apenas para seduzi-los e mantê-los enquanto era conveniente aos seus interesses financeiros. Com as mulheres costumava ser só sex*, o lado emocional era totalmente distante, beirando ao cinismo! Nunca havia se sentido daquele modo como Constance a fazia sentir: frágil, gostando de ser cuidada, acolhida, amparada!
“Deve ser a gravidez que deixa a gente tola, idiota!” - Pensou com irritação!
Começou a cogitar a possibilidade de Constance estar na verdade fazendo uma chantagem emocional com ela:
“Ela pode tá fazendo toda essa encenação para me forçar a ficar aqui! Fazer com que eu me sinta culpada como eu tô me sentindo! É um modo muito sutil de conseguir o que quer sem parecer que está me forçando a algo! Pois se for isso, vou te desmascarar amanhã mesmo, Constance e, logo que puder, vou embora daqui para nunca mais voltar! Nunca precisei de ninguém cuidando de mim, não vai ser agora que tenho tudo o que sempre quis que vou precisar!”
E passou o resto da tarde virando-se em pensamentos de como não ceder à suposta chantagem emocional que pensava estar Constance fazendo.
Quando já era alta noite, ouviu uma batida na porta de seu quarto e pensou que pudesse ser Constance querendo conversar. Sentou-se recostada nas almofadas, pegou um livro e fez ares de quem não estava nem um pouco preocupada com coisa alguma, atendeu aparentando indiferença na voz...
- Pode entrar...
- Cheguei, Bi! Que saudade! Como vão meus dois amores?
Jordi chegou quicando de felicidade e nem percebeu a cara de decepção que Iara fez quando viu quem era. Deu um abraço forte nela e começou a tagarelar sobre a viagem pela Toscana e o romance de contos de fada que estava vivendo com Carlo. Discursava sem vírgulas e mal respirava para emendar uma oração na outra. Estava tão feliz que só foi perceber que Iara estava com uma cara abatida e o cenho franzido quando perguntou onde estava Constance...
- Ai, não vá me dizer que vocês brigaram? Mas foi você mesma quem me disse que estavam se dando super bem, pensei até que fosse rolar algo mais e...
Aquele comentário inoportuno de Jordi irritou profundamente Iara que disparou como uma metralhadora, desabafando toda sua indignação com o modo de ser da outra mulher...
- Não seja ridículo, Jordi! Já te disse que não me interessaria por alguém como ela, cheia de mimos e frescuras, uma sentimentalóide estúpida que se enterrou viva por causa de um amor morto! E nem ela por mim! Me acha uma criança tola, me trata como se eu fosse uma menina levada que apronta por aí! Ah, mas se ela pensa que vai fazer comigo o que faz com todo mundo em volta dela, tá muito enganada! Não vou cair nessa esparrela de jeito nenhum! No fundo ela não passa de uma manipuladora que usa da suposta fragilidade pra fazer as pessoas agirem como ela quer! Comigo ela vai se ferrar! Não caio na chantagem emocional barata dela...você vai ver...vou desmascarar esse chantagista amanhã mesmo!
Jordi estava boquiaberto...
- Meu Deus! Mas o que aconteceu aqui na minha ausência? E foi de ontem pra hoje porque ontem mesmo eu falei com você ao telefone e tudo estava na mais perfeita harmonia! Percebi que você falava dela até com um tom de carinho na voz! Não entendo porque toda essa agressividade agora?! O que houve, Iara?
Iara contou para Jordi tudo o que se passara desde a visita do médico trazendo o resultado dos exames até quando subiu para o quarto, inclusive sobre a certeza que tinha de que Constance na verdade não era tão doce e generosa assim! No fundo, estava era fazendo chantagem emocional para forçar Iara a ficar na Vinícola e ter a filha lá conforme ela queria.
Jordi ouviu com paciência todas as desconfianças de Iara e ponderou...
- Acho que você está sendo precipitada! Primeiro porque deve seguir o que o médico recomendou e ficar aqui até depois do parto! E segundo que ela só quer o seu bem e o da criança. Se ela no fundo não estiver nem aí pra você, o que tem de mais?! Eu não acredito nisso, ela não é assim, mas e se for?! Se a única preocupação dela for a Beatriz?! Que mal há nisso se ela é irmã da criança e só terá ela como família?! Ela só quer o bem de vocês, mesmo que o seu bem seja por tabela!
Iara recostou nos travesseiros amuada e cansada da explosão que tivera. Não sabia explicar, mas a idéia de Constance se preocupar somente com a criança a magoava! Por incrível que parecesse era incômodo saber que ela se empenhava em cuidados e atenção somente por Iara carregar sua irmã no ventre. Então depois do parto como seria?
Soltou em voz alta um pensamento...
- Sou apenas uma barriga para ela, não há mais nada!
Jordi ficou quieto por alguns segundos pensando naquela frase, olhou para ela e percebeu algo que a própria Iara não sabia que sentia ainda e nem deveria saber por ora!
- Será, amiga?! Se fosse assim não teria sido mais fácil contratar meia dúzia pra ficar te pajeando? Por que ela pessoalmente e com as dificuldades físicas que tem, se daria a todo esse trabalho?
- Pra ganhar a minha confiança! Pra conquistar minha gratidão! Pra me tornar acostumada aos cuidados dela! E sabe pra que tudo isso? Pra me controlar mais facilmente depois, fazer com que eu me sentisse culpada, como de fato me senti quando disse que queria voltar ao Brasil pra ter minha filha! Foi só por isso...
A última frase foi dita num tom bem mais baixo, demonstrando toda a mágoa que sentia. Vendo aquela cena, Jordi aumentava suas desconfianças, resolveu provocar...
- E porque isso te chateia tanto? Logo você que é tão prática?! Se ela quer seu bem estar somente porque você está grávida da irmã dela, o que tem isso?! Você também tem os seus interesses nessa história, afinal poder administrar toda a fortuna de Lorenzo não é nada mal para alguém que sempre teve a ambição do tamanho da sua!
- É isso mesmo! Se ela acha que vai me chantagear emocionalmente, tá muito enganada! Vou desmascará-la e ainda por cima reverter a situação a meu favor. Se vou ter que ficar aqui por causa de minha saúde, então que tire todo o proveito que puder disso! Ela não sabe com quem se meteu! Acha que pode me dominar, vou mostrar a ela quem sou e o que a espera se ela quiser de fato conviver com minha filha! Vamos ver quem dá as cartas no final!
Jordi balançou a cabeça reprovando as palavras de Iara, mas sorrindo intimamente! Se não estava enganado, Iara parecia estar com medo de algo! Sempre que ficava agressiva era por receio de algo novo, de sentimentos desconhecidos! Não gostava de ser pega de surpresa, ainda mais por emoções que não conhecia, que a deixavam inquieta, com medo!
- Vou pro meu quarto! Estou exausto, mas muito feliz! Vai descer para jantar?
- Não! Vou comer algo aqui mesmo! Não quero ver mais ninguém hoje!
- Tá bem, minha querida! Se acalme e nada de estresse pra não afetar nossa bebezinha! Vou pedir que subam com algo pra você comer, durma bem!
E se retirou deixando atrás de si uma amiga cheia de sentimentos controversos! O que era aquela mulher? Afinal quem era Constance? Doce, meiga, generosa ou manipuladora, fingida, controladora? Se fosse ouvir o coração, aceitaria sem pestanejar a primeira opção, mas com a razão achava que ela poderia muito bem ser essa pessoa mesquinha que agia no intuito de dominar os outros de acordo com suas vontades!
Colocando de lado seus instintos, preferiu ouvir a voz que lhe dizia ser melhor acreditar na segunda opção. Era mais fácil aceitar alguém vil e ordinário, era com aquilo que estava acostumada e sabia lidar muito bem com pessoas assim!
Da forma como estava antes, achando que Constance era alguém fora do normal em gentileza e dedicação, era muito mais difícil manter-se sã e no controle das suas emoções! Detestava se pegar sucumbindo aos apelos dela sem conseguir resistir, isso era algo totalmente inusitado na vida de Iara!
Conjecturou...
“Amanhã vou falar com ela às claras, dizer o que pretendo dessa história e exigir que ela mostre a sua verdadeira face! De nada vai adiantar falar mansinho e achar que vai me levar na conversa! As cartas vão estar todas na mesa e o jogo começa com regras definidas!”
Fim do capítulo
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