Capítulo 4
TOSCANA - O ENCONTRO.
A Região da Toscana, na Itália, é um desses lugares no mundo que deveriam permanecer intocáveis! Ali está o berço da cultura ocidental, um dos mais importantes acervos da arte clássica da humanidade! A Região é formada por dez províncias, dentre elas estão as mais famosas cidades Italianas: Florença, Pisa, Livorno, Arezzo, Lucca, Siena, Pistoia, Grosseto, Carrara e Massa.
A Renascença e seus espíritos mais brilhantes nasceram naquelas belas paragens formadas por cidades que surgiram sob o topo de montanhas escarpadas, em vales incrustados na base desses montes ou à beira de um mar cor de cobalto que tira o fôlego de seus espectadores! No verão, a Toscana se veste de amarelo, com suas pequenas vilas e estradas ladeadas de Girassóis enormes que se voltam para o Astro-Rei como que sorrindo a pedir mais luz!
Espalhadas pelas províncias que compõem a Toscana existem em torno de 200 Vilas. Muitas delas como que paradas no tempo, com seus castelos medievais, torres que permitiam avistar o inimigo a grandes distâncias, casas que mantêm sua arquitetura ainda no século XIV ou XV, caiadas em alvenaria pura ou em pedra rústica como um pequeno castelo, e vinhedos que descem pelos montes da região até os vales, cobrindo a paisagem com cores múltiplas de suas uvas que servirão de base aos famosos “Chiantis”, “Merlots” e “Sauvignons”.
Essa profusão de cores da Toscana também vem acompanhada de cheiros e sabores que tornam uma ida àquela região uma experiência singular e inesquecível!
O helicóptero sobrevoava a pequena cidade de Montalcino, uma vila de aproximadamente 2.000 habitantes, 100 km ao sul de Siena. Instalada no topo de uma colina, com vista inenarrável para os montes Asso e Ombrone. A pequena vila era rodeada de restaurantes e das famosas casas de vinho que fazem a fama da maravilhosa gastronomia italiana.
Do alto se podia ter uma vista privilegiada daquele pequeno pedaço de história encravado nas encostas de Montalcino. Podiam-se ver os vinhedos que se espalhavam pelos montes e vales e suas casas de pedra rústica dizendo que ali o tempo era percebido de outro modo, bem diferente da agitação e do ritmo das metrópoles.
Esse foi o primeiro pensamento que Iara teve ao admirar a vista que extasiava a todos dentro da aeronave. Jordi soltava pequenas exclamações cada vez que avançavam sobre as montanhas e topavam com um castelo ou as bem cuidadas vinhas. O mar já havia ficado pra trás e agora as plantações de uva cobriam homogeneamente o solo fértil.
Começaram a descer!
O vento produzido pelas hélices do helicóptero que sobrevoava baixo a Vinícola da família Gomide, fez espalhar folhas e curiosidade entre os que esperavam em baixo. Não eram muitos, por enquanto, consistiam em empregados da tradicional Vinícola e amigos da vila próxima. A Toscana os brindava com um belo dia de sol claro, porém um pouco frio, o que emprestava ainda mais charme e encanto àquele lugar.
Iara, Jordi e o Dr. Carlo Corelli eram os personagens que saltavam do gigante de aço que havia deixado despenteados os campos verdes de parreiras e os espectadores que os assistiam. Iara usava um enorme óculos de sol que escondia as olheiras e as feições de pouco sentimento. Era melhor que ninguém pudesse ver o quanto ela não sentia tanto aquela morte!
Aproximou-se da pequena comitiva segurando o vestido largo e os cabelos em desalinho. Não tinha a menor idéia de quem pudesse ser a filha de seu marido. Havia cerca de doze pessoas para recepcioná-los e logo que ela se aproximou do grupo, um homem alto, grisalho, de meia idade, a olhou surpreso, estendeu a mão e a cumprimentou num italiano bem diferente do que Iara estava acostumada a ouvir:
- Seja bem vinda à Vinícola Gomide, espero que a Senhora tenha feito uma boa viagem! Sou Gigio, administrador da Vinícola e esta é minha esposa, Emma.
Iara cumprimentou o homem e em seguida uma mulher baixa, meio gordinha, de bochechas rosadas e também de meia idade, a segura pelo rosto e diz com ar de total surpresa:
- Meu Deus, você está esperando um filho! Como não soubemos disso! Constance vai ficar petrificada! Ainda bem que ela está no período bom!
E logo as outras pessoas se acercaram e começaram a cumprimentar Iara, dando a ela os pêsames pelo falecimento do marido. Até mesmo o Prefeito da pequena Vila estava presente para fazer sua função social e de “amigo” da família. Iara apresentou Jordi aos presentes e no meio dos cumprimentos notou que todos ficaram estáticos observando alguém que se aproximava. Olhou na direção em que eles fitavam e viu surgir por um caminho onde havia um caramanchão coberto de parreiras e ladeado por Girassóis, uma silhueta pequena e franzina, andava com certa dificuldade apoiada a uma bengala, porém o sol não permitia que Iara pudesse ver detalhes da figura que se aproximava.
Quando visualizou o grupo que havia acabado de descer do helicóptero, a mulher estancou por alguns minutos, provavelmente também tomada pela surpresa ao ver aquela inesperada barriga de sete meses de gravidez apresentar-se antes mesmo de sua dona. Então passou a caminhar pelos 20 metros que os separavam mais lentamente, como que se dando um tempo para reorganizar os pensamentos.
Iara olhava na direção da mulher tentando enxergar suas feições, pensando:
“Senhor, tomara que esta mulher não seja hostil nem faça uma cena! A última coisa que quero agora é ter algum tipo de confronto com uma doida dessas!”
Quando finalmente a distância que as separava foi coberta, surgiu diante de Iara uma mulher de aparência frágil, uns 10 cm mais baixa que ela, a pele era muito clara e contrastava com os cabelos cor de avelã, tinha as feições delicadas, um nariz reto e afilado e uma boca muito vermelha que a fazia lembrar uma cereja, talvez estivesse queimada pelo frio da região. Os cabelos estavam presos num rab* de cavalo, o corpo era magro e parecia por demais fragilizado, com ombros levemente caídos. Constance devia estar perto dos 40 anos, mas apesar do abatimento, parecia mais jovem.
Ela parou diante de Iara e esta pode olhar diretamente para sua anfitriã e dar de cara com o par de olhos mais tristes que havia visto até então. Eram verdes como os de Lorenzo, mas não aquele verde brilhante e encantador que de certa forma a havia atraído. Eram verdes opacos, meio sem vida, um verde-mar pré-tempestade! Os cílios eram longos e as sobrancelhas emolduravam harmonicamente o conjunto e, mesmo sem luz, Iara pensou nunca ter visto olhos mais bonitos na vida!
- Sinta-se em casa, Senhora...desculpe, mas seu nome é um pouco difícil de se pronunciar na minha língua...fala italiano ou francês?
A voz baixa e suave combinava perfeitamente com a aparência da mulher à sua frente, mas não com a reação de Iara, que se sobressaltou sem saber direito por quê. Talvez por não esperar tanta delicadeza no tom daquela voz. Tinha feito um trabalho mental ao longo da viagem esperando uma reação negativa da parte dela devido ao seu estado, mas não era isso que acontecia naquele momento. Com a voz sem a firmeza e segurança próprias dela, respondeu:
- Iara, é este o meu nome! É um nome indígena, em tupi, por isso a dificuldade em pronunciar. E sim, eu falo bem o italiano e entendo mal o francês, mas aqui se fala um pouco diferente!
- Sim, é diferente do italiano falado em Roma, mas não chega a ser um dialeto. Você fala muito bem, em pouco tempo se acostuma.
- Mas você é francesa não é?!
- Sim, mas morei aqui minha vida toda, por isso me sinto mais italiana que francesa! Somente nasci na França, vim para cá ainda não tinha 5 anos completos! Não irá precisar falar francês por aqui!
E deu o que parecia ser o esboço de um sorriso, mas tão levemente que Iara ficou sem saber se realmente tinha acontecido. Em seguida baixou os olhos na direção da barriga de Iara. Esta retesou o corpo esperando a reação que viria, mas o que ouviu a surpreendeu:
- Não sabia que estava grávida! Meu pai nunca comentou sobre isso! Só posso lhe dizer que além de surpresa, estou muito feliz em saber que esta família tem uma esperança de não se extinguir! Que esta criança nos traga muitas alegrias!
Iara estava estática, não sabia o que pensar daquilo tudo! Sentia que ela estava sendo absolutamente sincera, mas como havia se preparado para a reação contrária, levou certo tempo até conseguir processar o que se passava. Nesse momento, Jordi se aproximou com a mão estendida e cumprimentou a dona da casa:
- Apesar das circunstâncias, é um prazer conhecê-la Senhora Constance...sou Jordi, amigo de Iara...na verdade somos como irmãos!
Ela o cumprimentou de volta com a mão que estava livre da bengala, não sorria, mas a expressão era acolhedora...
- Seja bem vindo à minha casa!
E se dirigindo ao Dr. Corelli o cumprimentou também:
- Como vai Carlo? As providências de praxe já foram tomadas?
- Sim Constance, tudo será feito como seu Pai queria!
- Muito obrigada! Sei que posso sempre confiar em você!
E virando-se para a Senhora que havia cumprimentado Iara antes...
- Emma, mostre a casa para eles e os acomode, por favor! Eles devem estar muito cansados da viagem e precisam repousar! Vou cumprimentar as outras pessoas...
E assim se afastou deles indo em direção ao grupo que havia ficado um pouco atrás. As bagagens foram levadas pra Sede da Vinícola e, após Emma fazer uma breve apresentação dos principais cômodos daquela enorme construção, eles foram instalados em seus quartos.
No entanto, Iara não conseguia relaxar! Estava inquieta e seus pensamentos voavam de um canto ao outro quase que no mesmo ritmo em que andava pelo aposento!
De repente a porta foi aberta de supetão e Jordi entrou no quarto com aquela excitação tão característica dele:
- Meninaaaa, que gracinha a filha do homem! E que casa é essa! Parece que voltei no tempo e me jogaram num castelo de algum Duque! Acredita que o Doutor vai ficar no quarto ao lado do meu?! Tô me sentindo! Já viu o meu quarto? Olha só esse aqui! Nossa, tô encantado com esse lugar, com essa gente simpática, com esse advogado “tudibão”!
- Jordi, cala a boca e sossega esse facho um minuto, por favor! Eu tô com a cabeça a mil!
- Ué, você tá preocupada com o que? Ela recebeu a gente super bem, foi amistosa. Tá certo que não ri muito, mas e daí?! Tá com esse vinco aí na testa por quê?
Iara deu um longo suspiro e botou pra fora suas inquietações...
- Eu até senti que ela foi sincera, mas não esperava por isso! Eu vim tramando um monte de jeito de rebater qualquer coisa que ela dissesse de ruim pra mim. Vim bolando frases de efeito pra deixar ela mal, caso me destratasse. Criei a maior expectativa de que eu seria hostilizada, afinal estou esperando um novo herdeiro com quem ela terá que dividir tudo que o pai deixou e, qual não foi minha surpresa ao me deparar com alguém tão...tão...ah, sei lá...tão...
- Tão o que, Iara?
- Tão...tão...doce!
Jordi riu da forma como Iara disse aquilo! Parecia, além de surpresa, muito estranhada com a mulher que encontrou, ela estava meio que chocada!
- A mulher fez você perder o rebol*do, hein Iara?! Nunca ia imaginar encontrar alguém com uma aparência tão frágil e, como você mesma diz, doce!
- Confesso que não estava preparada pra isso e sim para um confronto! Pô, que pessoa em sã consciência fica feliz com a notícia de que vai ter que dividir sua herança com um irmão do qual nunca ouviu falar até a hora em que enxerga a barriga diante do nariz?! E pra piorar com o pai ainda embalsamado lá fora! Ora, Jordi, tem que admitir que isso não é normal! Ela realmente é doida!
Jordi toca a ponta do nariz de Iara com o indicador e diz:
- Não é normal para quem pensa como você, meu bem! Sua única é grande preocupação é grana e ela parece não ligar muito pra isso, basta ver as roupas que está usando, basta ver como ela decora este lugar: lindíssimo, mas com muita simplicidade, sem extravagâncias, sem luxos desnecessários. Ela parece ser diferente, Iara! Vai ver tem outros valores e não dá tanta importância a dinheiro assim!
- Acho isso difícil de acreditar! É muito nobre não dar importância a dinheiro quando se é rico né?!
- Mas pode ser verdade! Pode ser que ela esteja realmente feliz em ter um irmão! Alguém que, como ela mesma disse, possa trazer um pouco de alegria para a vida dela! Eu mesmo daria qualquer dinheiro no mundo pra ter um irmão de verdade...alguém do meu sangue!
E fazendo Iara sentar-se ao seu lado no divã em frente à varanda com magnífica vista das colinas, complementou...
- Pense numa coisa, ela nasceu e é até hoje muito rica! Dinheiro nunca fez falta pra ela, os valores dela são outros! Se ela gostasse de luxo e riqueza como o pai dela, certamente não estaria morando nesse lugar, que é lindo, mas no fim do mundo! Olhe em volta, ela estaria em Paris, meu amor, em Roma, em Nova York, e não aqui! Além disso, não sabemos da história direito, mas ela perdeu alguém que amava muito e não se recuperou disso até hoje! Então, Iara, talvez realmente dividir a herança com um irmão que está pra nascer não faça muita diferença em termos financeiros, mas pode fazer uma diferença enorme em termos emocionais! Ela parece ser uma mulher muito triste, mas não mesquinha!
Iara olhava Jordi, mas não via seu rosto, apenas tentava assimilar suas palavras pra ver se conseguia entender seus próprios pensamentos...
“Talvez ele tivesse razão! Lorenzo havia deixado tanto dinheiro que dividi-lo ao meio não faria muita diferença assim pra uma pessoa que vivia isolada naquele recanto medieval perdido nas montanhas da Toscana. Realmente o modo simples com que se vestia, o jeito afável, mas reservado, parecia não se importar muito com o glamour e o estilo de vida que o pai levava.”
Virou-se pra Jordi, quase que pensando em voz alta...
- Mas ela deve pedir um exame de DNA pra ter certeza que o filho que estou esperando é do pai dela! Ninguém é tão bobo que acredite apenas na palavra de uma estranha! Eu vou adorar que ela peça!
- Pois eu não me surpreenderia se ela não pedisse!
- Por que não?
- Não sei exatamente...ela me pareceu tão despojada de tudo isso que a gente dá tanta importância...sei lá...eu confesso que quando a vi quase comecei a rir sem parar, se o momento não fosse tão trágico!
- Rir de quê? Não vi nada engraçado nela! Só porque ela manca?
- Não, sua tonta! Claro que eu não riria do defeito físico dela, né Iara! Eu achei engraçado toda a nossa preocupação em encontrar uma mulher sofisticada, elegante, com ar arrogante como essas ricas que a gente vê por aí. Ou então uma doida cheia de tiques nervosos correndo atrás da gente e, no entanto, deparo com uma mulher de aparência singela, com os ombros caídos e um olhar tão triste que dá vontade da gente abraçar e tentar confortar as dores dela!
- Engraçado, eu pensei a mesma coisa!
- Ai, amiga, ela parece tão sofrida!
- É, parece mesmo! O que será que aconteceu na vida dela?
- Não sei, mas acho que logo saberemos! Cidade pequena todo mundo sabe de tudo, além disso, a empregada vai tratar logo de colocar a gente a par, do jeito que parece ser falastrona!
E começaram a conversar sobre as primeiras impressões sobre a casa e os empregados que moravam na Vinícola.
Umas duas horas após a chegada deles à Vinícola, Jordi e Iara ainda relaxavam e conversavam na varanda do quarto quando alguém bate à porta e entra devagar:
- Com licença, Dona Iara. Constance espera vocês na sala de refeições para o almoço, aposto como estão com fome depois da viagem de Andorra até aqui!
Emma sorria com simpatia e lembrava muito aquelas tias bonachonas que adoram fazer quitutes nas festas de família.
Iara e Jordi a acompanharam até a sala de jantar. O lugar, assim como todo o restante da casa era amplo e arejado. A casa era toda em blocos de pedra gigantes, que davam um ar medieval à construção, porém era cercada por varandas e com enormes janelas e portais de vidro, que permitiam a luz chegar a todo ambiente de forma harmônica e aconchegante. Os quartos eram grandes e possuíam varandas que permitiam visualizar as plantações que se estendiam a perder de vista. Todos possuíam banheiro privativo e eram decorados de forma singela e agradável. Havia um extenso corredor que ligava os quartos e no meio dele uma escada larga de mármore di Carrara ladeada por corrimões dourados dando acesso ao andar inferior. Este era composto por três salas grandes que se dividam entre si através de colunas que realçavam o pé direito de mais de 6 metros de altura, formando com o andar superior um mezanino que se podia ver de baixo. A biblioteca ficava num cômodo grande, contíguo às salas, todo forrado em madeira, com prateleiras que iam do teto alto ao chão, cobertas de livros bem cuidados. Tinha sofás largos e confortáveis e uma mesa de madeira escura que de tão grande se podia até deitar sobre ela. De frente pra esta mesa podia ser vista uma lareira que tornava o ambiente ainda mais aconchegante, ali era o lugar preferido de Constance, tinha dito Emma. Havia ainda a parte da cozinha que lembrava muito as cozinhas rústicas das tradicionais fazendas cafeeiras brasileiras, porém combinada com o que há de mais moderno em utensílios domésticos.
Definitivamente aquela era a residência mais elegantemente simples que já havia estado. Tudo era decorado com objetos de muito bom gosto, porém sóbrios. Nada era extravagante ou “over”, o que dizia muito sobre a personalidade de sua Dona. Realmente era um lugar acolhedor!
Chegaram à sala de jantar e a longa mesa de banquete estava apetitosamente arrumada com as mais diversas iguarias tipicamente italianas, deixando no ar um aroma delicioso de comida bem feita, e imediatamente abrindo o apetite voraz da nossa grávida.
Ao lado da mesa, Constance os esperava com o ar ainda abatido, porém com as bochechas mais rosadas, devido ao sol que havia pegado do lado de fora.
Jordi com seus olhos de gula indisfarçada imediatamente se manifestou:
- Minha nossa, que mesa tentadora! Acho que finalmente vou conseguir ganhar um pouco de peso nessa terra! Como alguém consegue ser magro por aqui?!
Logo se deu conta da gafe cometida, pois Constance abaixou os olhos e sentou-se mostrando os lugares aos visitantes. Virou-se para Emma, em seguida, e gentilmente falou:
- Venha comer conosco, Emma. Deve estar também cansada com todos esses preparativos desde ontem. Sente-se e relaxe agora, vamos conhecer um pouco mais nossos hóspedes.
Iara notou que Constance tratava Emma com um carinho especial, como se fosse um membro da família, e não como uma empregada da casa. Podia-se notar ali uma relação de afeto e amizade como entre parentes que se gostam muito. A Senhora logo se sentou e começou a servi-los perguntando:
- Estão bem instalados nos seus quartos? Gostaram deles ou preferem escolher outro?
Jordi foi o primeiro a responder:
- Está tudo perfeito, Senhora. Nunca estive em uma casa tão aconchegante! E esta comida está simplesmente divina!
Disse enfiando na boca uma generosa garfada do guisado de coelho que havia sido posto no seu prato. E iniciaram um diálogo animado sobre as belezas da região e as comidas deliciosas que Emma adorava preparar.
Iara notou que o lugar na cabeceira da mesa havia ficado vazio e Constance sentou-se à direita dele, com o olhar baixo e perdido dentro do prato à sua frente. Ela não participava da conversa e parecia estar completamente alheia às pessoas à sua volta. Emma estava de frente para ela e Iara ao lado de Emma, Jordi ao lado de Constance e o Dr. Carlo ao lado dele. Neste momento chega Gigio e também se senta à mesa para comer, ao lado da mulher. Eles trocam um olhar cúmplice que logo foi percebido pelos convidados. Era como se comentassem com os olhos sobre o silêncio de Constance. Em seguida Emma fala com ela:
- Minha querida, quer um pouco de pizza frita? Sei que adora essa de berinjela, fiz especialmente pra você!
Constance pareceu acordar da catatonia em que se encontrava e novamente, com aquele arremedo de sorriso nos lábios, disse num tom baixo, quase inaudível:
- Estou sem fome...guarde que como mais tarde.
E voltou os olhos para o prato vazio.
Emma a olhou preocupada e novamente trocou uma mensagem silenciosa através do olhar com o marido. Voltou-se pra nós e continuou a falar sem parar sobre a vida na Vinícola e de como ajudara a criar Constance desde que ela havia ido morar ali com os avós aos 4 anos de idade. Iara notou que ela parecia querer entretê-los e não dar espaço para que eles tentassem conversar com Constance, como se tivesse receio de quebrar o momento introspectivo dela, de perturbar seus pensamentos. Jordi e Iara compreenderam perfeitamente e conversavam com o casal e o advogado sem interferir no silêncio de Constance.
O papo descontraído durante o almoço mostrou aos convidados muito da vida local. A simplicidade e ao mesmo tempo a tradição secular no cultivo das uvas. A forma como a Vinícola era administrada e cada detalhe da produção do tradicional Chianti. Além disso, eles ficaram sabendo que o casal morava em uma casa nos arredores da Sede e tinha dois filhos homens já casados, um morava em Siena e outro em Roma.
O casal parecia adorar a vida naquele lugar e tinham uma relação de família com Constance. Emma falava dela como se ela fosse ainda uma garotinha e a mimava com cuidados típicos de mãe. O Dr. Carlo também era da região da Toscana, mas tinha nascido em Arezzo, mais ao nordeste e já trabalhava para a família desde a juventude. Assim que se formou, Constance o empregara para tomar conta da parte jurídica da Vinícola, pois apesar de inexperiente, ela confiava nele. E já se passavam 10 anos, estava agora com 34 anos!
Claro que Emma não cuidava da limpeza do pequeno castelo sozinha, era ajudada por duas empregadas da Vinícola que também moravam em casas de colono dentro da propriedade, cujos maridos trabalhavam na produção dos vinhos. Por isso, ela se dedicava mais à cozinha, sua especialidade, e a cuidar das coisas de Constance.
Já estavam terminando o delicioso café expresso quando Constance levantou de súbito e disse meio que aérea:
- Vou me deitar um pouco...estou com dor de cabeça.
E virando-se para Iara e Jordi, completou:
- A casa é de vocês. Fiquem à vontade. Nos encontraremos mais tarde.
E se foi.
Pela primeira vez Emma ficou quieta e não conseguiu disfarçar a preocupação que tinha com aquela mulher. A seguiu com os olhos e depois falou com o marido num tom de desabafo, parecendo esquecer que havia gente estranha com eles na mesa:
- Não sei mais o que fazer, Gigio! Ela definha cada dia mais! Quase não come e nem mesmo andar á cavalo ela quer! Lembra como adorava cavalgar pelo Vinhedo? Examinava cada uva, acompanhava de perto a produção, cuidava de tudo com tanta alegria! E agora a morte do Pai pode piorar essa letargia! Mesmo ele sendo tão ausente, ela pelo menos sabia que não estava só no mundo, mas agora o que mais posso fazer?! Me sinto tão impotente vendo ela desse jeito! Me corta o coração!
A voz trazia toda a preocupação e o desespero de sua incapacidade em mudar o ânimo de Constance. Gigio respondeu:
- Você faz o que pode! Não se culpe! Tudo que está ao nosso alcance é feito pra melhorar a vida dela! Quem tem que reagir é ela mesma, não podemos fazer mais nada! Com licença...
E saiu do recinto com o semblante arrasado!
Ninguém parecia ter coragem de quebrar o silêncio que se instalou por alguns minutos. Emma balançava a cabeça desanimada e algumas lágrimas já molhavam sua face rosada. Dr. Carlo mantinha-se quieto, com o semblante sério e muito triste também.
Iara estava morrendo de vontade de perguntar sobre toda a história que cercava aquela família, mas respeitou o momento de tristeza da mulher ao seu lado. Olhava para Jordi como que perguntando o que fazer e recebia em troca o mesmo olhar.
Após alguns minutos, a Senhora se recompôs e começou a contar num desabafo:
- Desculpem, eu realmente não deveria causar esse constrangimento a vocês, mas me dói muito ver que a cada dia ela piora ao invés de melhorar! Não sei mais o que fazer e quem sabe você pode me ajudar, Iara!
- Eu? Ajudar como?
- Ficando um pouco aqui além do tempo que pretendia. Ontem ela achou que estava só no mundo, agora ela sabe que não! Há você e essa criança que vai chegar! Acho que se ela tiver vocês pela casa talvez possa ajudar a melhorar o ânimo dela. Quase ninguém vem aqui, somente Francesca e Laura, de vez em quando e o Dr. Carlo uma vez ao mês.
- Quem são elas?
Perguntou Jordi
- Francesca é amiga de infância de Constance e Laura é a...como vou explicar melhor...bem...a companheira dela! Elas dividem a mesma casa, é isso!
Na mesma hora Jordi e Iara trocaram olhares de entendimento com o que Emma tentava explicar meio sem jeito. Iara não contém sua curiosidade e pergunta:
- Mas o que houve com Constance? Porque ela ficou desse jeito se você mesma diz que ela não era assim? Qual o problema com a perna dela?
Emma pareceu ficar muito envergonhada. Percebia-se que ela não encontrava um jeito de começar a contar aquela história e Jordi resolveu interferir pra ajudar:
- Soubemos por amigos de Lorenzo que ela tinha caído em depressão após a morte do marido ou namorado, foi isso?
Emma abaixou a cabeça e enrubesceu. Olhou para o Dr. Carlo e este assentiu com a cabeça como a dar força a ela para prosseguir. Aos poucos pareceu criar coragem e começou sua dissertação dos fatos:
- Constance não era casada, não da forma tradicional que todos conhecemos, e a pessoa pela qual ela era apaixonada não era um homem, mas uma mulher! E sim, foi por causa da morte dela que minha Conca ficou neste estado, sem vontade de viver!
Iara e Jordi se entreolharam e pareciam mais que surpresos. Na verdade Iara sentia um tremendo desconforto em saber que Constance era homossexu*l* como ela e Jordi, mas não conseguia explicar por que se sentia assim. Pensou num comentário que Jordi havia feito há meses sobre ela ser parecida com eles: solitária e agora também Gay! Começou a sentir um mal estar, porém a curiosidade era maior e queria saber tudo. Emma continuou após um longo suspiro:
- Eu não estaria expondo minha querida Constance assim pra vocês se a situação não fosse especial. Ela sempre foi discretíssima na sua vida pessoal e social e peço a vocês que mantenham o que vão ouvir aqui! Só vou contar essa história porque sei que Iara já pertence a esta família. E graças aos céus esta criança é a grande esperança de trazer um pouco de vida ao coração da minha menina!
Jordi segurou as mãos da velha Senhora como que para dar coragem a ela e afirmar seu pacto de silêncio com o que estava prestes a ouvir:
- Fique tranqüila, Dona Emma. Somos pessoas muito reservadas também em nossas vidas e entendemos perfeitamente porque a Senhora quer proteger tanto Constance. Iara concorda comigo e nada do que ouvirmos aqui sairá desta sala! Prometemos, não é Iara?
E olhou pra amiga praticamente a intimando a concordar. Iara não estava se sentindo muito bem, mas sorriu levemente e deu à mulher a segurança de que podia continuar com suas confidências:
- Claro que prometemos, pode continuar Emma.
Emma começou a falar pausado, bem diferente da forma habitual, parecia estar escolhendo as palavras certas:
- Bem, eu criei Constance praticamente desde que os pais dela se separaram e Anne, a mãe dela, decidiu vir morar aqui na Vinícola com os pais de Lorenzo. Ela já estava doente quando veio para cá e em pouco mais de um ano se foi, deixando a pequena aos cuidados dos avós. Acho que ela sabia que a menina só poderia contar com eles mesmo, porque Lorenzo sempre foi muito ausente. Após a morte de Anne, os pais de Lorenzo tentaram suprir de todas as formas a falta da mãe e também do pai. Ela cresceu aqui nessas terras, brincando por entre essas videiras, com meus filhos, com Francesca. Era tão feliz na sua inocência infantil, que apesar de vez ou outra perguntar pelo pai, parecia não ser afetada pela ausência dele.
Emma tomou fôlego e continuou sua explanação:
- Ela se transformou numa moça inteligente, cheia de energia e muito alegre. A vinícola era a vida dela e, por causa disso, ela decidiu ir estudar em Siena para administrar melhor o negócio de vinhos e fazer crescer a produção. Um dia, quando veio passar o final de semana com os avós, trouxe uma moça com ela. Estudavam juntas, foram morar juntas, não se desgrudavam e, em pouco tempo, começamos a perceber que havia mais que amizade entre elas! Os avós não gostaram muito, mas com o tempo acabaram se acostumando, Constance era o ser mais importante na vida deles! A “amizade” com a tal moça durou cerca de dois anos e depois outras “amigas” se sucederam e também se foram. Essa escolha da minha menina nunca foi um problema pra mim nem pra minha família. Amávamos nossa Conca do mesmo modo de sempre e apenas torcíamos para que ela um dia encontrasse alguém para sossegar seu coração.
Emma ficou com o olhar brilhante e um sorriso despontou nos seus lábios ao continuar:
- E finalmente esse dia chegou! Constance começou a pesquisar um novo tipo de uva para diversificar a produção e fabricar também espumantes, então contratou uma Botânica para auxiliar nas pesquisas que já vinha realizando. E foi assim que Camille entrou nesta casa e em nossas vidas! Ela foi o grande amor, mas também o pior pesadelo na vida de Constance!
Jordi e Iara se olharam, queriam saber mais daquela história e Iara não se conteve:
- Como assim o pior pesadelo?
Emma prosseguiu:
- Porque ela morreu! Somente por isso!
Jordi perguntou:
- Morreu como?
As lágrimas voltaram a inundar os olhos de Emma e a voz embargou quando ela disse:
- Num terrível acidente de carro! Um acidente que matou Camille na hora e continua matando Constance aos poucos até hoje!
Iara comentou, quase que para si mesma:
- Então o marido que os amigos de Lorenzo falavam na verdade era uma mulher! Então elas deviam ser muito reclusas mesmo pra que ninguém soubesse.
Emma retrucou:
- Na verdade elas não eram tão reclusas assim, eram apenas muito discretas. Nunca havia visto duas pessoas se darem tão bem! Viajavam muito juntas, iam sempre a Florença, Pisa ou Siena para passar o final de semana, tinham os mesmos gostos, o mesmo amor pelas uvas e pelo vinho e se amavam demais! Elas apenas tinham pouquíssimos amigos. Francesca era a mais fiel de sempre e passavam muito tempo juntas, Camille, Constance, Francesca e alguma outra “amiga” da ocasião. Dr. Carlo também estava aqui de vez em quando não é?!
- Sim, participei muitas vezes só ou com amigos das alegres reuniões que Constance e Camille promoviam aqui. Elas eram um casal perfeito! Nunca vi tanto entrosamento, era uma parceria invejável, no bom sentido, é claro!
Emma sorri com tristeza e continua:
- Constance nunca foi de ter muitos amigos. Havia se decepcionado muitas vezes na juventude com inúmeras meninas que se aproximavam dela somente pra usufruir de sua fortuna. E isso a tornou cada vez mais reservada, mas nem por isso deixava de ser alegre e aproveitar a vida. Quando Camille surgiu foi como se um raio de sol iluminasse permanentemente os olhos e o sorriso de Constance! Ela era diferente das outras, não dava importância às coisas materiais, pois também havia sido criada em família abastada. Ela amava sinceramente a minha garotinha e todos nós tivemos certeza que era a pessoa que Constance esperou toda a vida. Ela transpirava felicidade por todos os poros e não tinha mais receio de nada, pensou que finalmente fosse ser feliz para sempre e que jamais se sentiria enganada ou rejeitada outra vez! Mas infelizmente Deus não quis assim!
Iara ouvia tudo atentamente e perguntou com certa desconfiança:
- Mas se essa Francesca era tão amiga assim delas por que não vem mais aqui depois da morte de Camille?
- Porque ela percebeu que suas visitas não fazem muito bem à Constance. Ela fica o tempo todo relembrando fatos do passado e sempre tem alguma reação negativa durante essas visitas. Ou chora sem parar ou cai em profunda depressão após a partida da amiga. Ela costuma vir ou ligar uma vez ao mês porque adora Constance e se preocupa com ela, mas sabe que sua presença traz lembranças muito dolorosas pra ela, por isso não vem com tanta freqüência.
Iara ficou pensativa e então perguntou:
- E os avós dela? Faleceram há muito tempo? Lorenzo nunca comentou nada sobre a família!
- Sim. Ambos morreram de problemas cardíacos e já eram bem idosos. O Senhor Lorenzo Pai morreu há pouco mais de três anos e a Senhora Nunciata alguns meses depois dele. Constance ficou muito triste com a morte dos avós, mas tinha Camille para confortá-la! Jamais imaginaria o que estava por vir em poucos meses!
- E quanto tempo elas ficaram juntas?
“Mas que raio de pergunta é essa, Iara?! O que te interessa quanto tempo elas ficaram juntas?! Parece uma dessas fuxiqueiras!” - Pensou sem entender direito porque havia feito aquela pergunta.
- Quase doze anos! Os doze anos mais felizes que esta casa já viveu!
Iara sentiu um leve mal estar. Achava aquela história toda muito sombria. Uma mulher tem uma vida perfeita, feliz e de repente, se vê sozinha porque todos a quem amava morreram! Pensou que talvez fosse melhor ser como ela, não ter ninguém a quem amar, pelo menos evitava esse tipo de sofrimento! Jordi, curioso, perguntou a Emma:
- O problema na perna de Constance foi seqüela do acidente?
- Sim, ela ficou presa às ferragens e teve diversas fraturas nas pernas e na bacia. Camille morreu na hora! Foi projetada para fora do carro! Elas voltavam para casa após uma viagem de fim de semana que fizeram à Roma, tinham ido visitar meu filho e a esposa dele que estava grávida. Aconteceu algo inesperado na estrada, acho que foi um animal que atravessou na frente do carro e quando ela tentou desviar, foi abalroada por um caminhão que vinha em sentido contrário! A batida fez o carro capotar e rolar a ribanceira à beira do caminho. Constance ficou presa dentro do carro e talvez por isso tenha se salvado, já Camille não teve a mesma sorte!
Iara ficou confusa com aquela descrição do acidente e perguntou:
- Quem dirigia o carro?
A Senhora na frente deles balançou a cabeça como que negando algo pra si mesma, enxugou as lágrimas e olhando pra Iara e Jordi falou como numa sentença:
- Constance!
Fim do capítulo
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