Camila

    - Laura, o que vou te mostrar é uma gravação que a Patrícia fez no dia da morte do Sérgio. Ele estava alterado e isso ajudou com que o desabafo fosse mais profundo. Vai ser muito difícil para você escutar, não vou negar. Se em algum momento quiser parar, se quiser um tempo para assimilar, se quiser conversar, eu estou aqui.

    Laura fez uma cara de quem estava ouvindo alguém falar em grego. Ela olhou para o meu celular incerta.

    - Que desabafo o Sérgio poderia fazer? Nós nunca tivemos segredo, o que está aí eu já sei.

    - Não, você não sabe, Laura. Infelizmente ele tinha muitos segredos.

    - Isso tudo deve ser besteira, coisa que bêbado fala. Eu não quero escutar. Está sendo muito difícil lidar a partida dele. Ouvir sua voz vai ser um martírio. Eu não quero escutar.

    Respirei fundo. Laura está com medo.

    - Você deve escutar porque é sobre nós. É sobre o passado, a nossa história.

    - Não entendo. Mas se você insiste e acha que eu tenho que escutar, tudo bem. Pode soltar a gravação.

    O áudio começou e vi a Laura se arrepiar inteira por ouvir a voz do Sérgio.

    "...tempo depois, quebrei a promessa de que jamais voltaria a chorar por ela. Foi no dia do seu casamento. Quando ela falou da Camila pela primeira vez, vi que tinha algo diferente. Depois começou a não parar mais de falar da Camila. Laura estava apaixonada, amando de verdade, amando alguém como eu a amava."

    - Para! Para, por favor.

    Parei imediatamente, Laura está com os olhos arregalados.

    - Eu acho que não entendi muito bem. Sérgio disse que me amava? No sentido de paixão? As coisas estão pela metade, eu não entendo. Tem certeza de que isso não é montagem?

    - Laura, você nunca percebeu?

   - Percebi o quê? O que eu teria para perceber? É o Sérgio, Camila. Estamos falando do Sérgio aqui. Isso... isso é conversa de bêbado.

    - O Sérgio sempre foi apaixonado por ti. Só você não se deu conta disso.

    - Isso é impossível.

    - Caramba, Laura. Como você nunca percebeu? Até quem não convivia com vocês sabia disso. Desde primeira vez que eu o vi, já tinha notado. Ele disfarçava muito bem, mas há momentos que o corpo fala. Laura, lembre-se dos olhares dele. Era realmente de amigos?

    - Se ele me amava, por que não disse? Eu nunca notei nada. Eu te juro.

    Ótimo, ela já estava aceitando a verdade.

    - Sérgio sempre soube que você jamais olharia para ele. Ele se apegou a você e se tornou a maior obsessão da vida dele. Sérgio passou a viver para respirar o mesmo ar que você. Te queria só para ele. Você vai entender e acreditar em mim quando ouvir o resto. Podemos continuar?

    Laura pegou o meu celular e fez continuar a gravação.

    Desta vez não houve interrupção. Laura foi até o fim. Enquanto não ouviu o choro dele no fim, ela não moveu um músculo.

    O silêncio foi absoluto. Laura continua em choque.

    De repente, começou a tremer e passar a mão pela barriga. Ela correu para o banheiro e eu fui atrás. Laura vomitou e eu corri para ampará-la.

    O tremor ficou ainda mais intenso e ela acusou falta de ar. Laura está passando mal. Eu não esperava essa situação. Não sabia o que fazer.

    - Espera que eu vou chamar alguém e te levar para o hospital.

    - Não, espera! Eu só preciso que você me ajude a chegar até a minha cama.

    - Laura, você está passando mal.

    - Eu sei o que é isso. Meu corpo tem essas reações quando eu... não sei... quando não consigo lidar com o momento. Por favor, ajude-me a deitar na cama.

    Primeiro levantei a Laura do chão e ela lavou a boca. Depois deixei que ela se apoiasse em mim e conduzi o seu corpo sem energia para a cama. Ela está fraca e praticamente se jogou na cama de barriga para cima. Fechou os olhos enquanto a sua respiração não voltava ao normal.

    Quando ela se sentiu mais calma, ainda de olhos fechados, disse:

    - Eu sei que vai parecer loucura o que vou dizer, mas eu não posso deixar de me sentir culpada por nunca ter notado que ele me amava.

    Sentei-me na cama, bem perto dela e comecei a fazer carinho pelo rosto dela. Laura está destruída.

    - A culpa não é sua. Mesmo que ele tivesse guardado essa paixão, não deveria fazer o que fez com a gente.

    - Ele só fez isso porque era apaixonado por mim. Se eu tivesse notado e me afastado, jamais teria dado a chance de ele... É errado e certo pensar assim, eu estou confusa.

    - Ele não era apaixonado por você. Infelizmente ele era mau caráter e aproveitou todas as oportunidades que teve para te manipular. Ele fez por puro prazer de te ter só para ele em Paris. Eu nunca disse para ninguém que queria te ver morta. Eu senti raiva nos primeiros dias, mas jamais disse nada que alguém pudesse entender que não queria a sua volta. Eu implorei para ele te procura, no fim estava te escondendo. Ele viajava na desculpa de que você poderia estar no interior do Rio e eu ficava na expectativa de ele aparecer com você.

    - Pensando agora, ele sugeriu mesmo primeiro que fôssemos para Paris. Eu achei estranho ele aparecer tão rápido com documentos falsos. Falei um dia e no outro já estava tudo pronto. Mas nunca me passou pela cabeça que já estava tudo planejado. Uma vez ele me disse que você tinha meio que aceitado que eu levasse a Marina com a condição de nunca mais ver a minha cara. Ele via meu desespero e tinha certeza que eu iria concordar. Foi como se fosse a minha única saída.

    Eu fiquei indignada com o fato dele usar a Marina nisso também. Eu jamais diria para ele que daria a Marina na condição de não ver mais a Laura. Eu queria as duas comigo.

    - Que canalha! Que ódio! Ele me encontrou algumas vezes no Rio e sempre me dizia que foi para Paris porque não estava aguentando de saudade de você. Um dissimulado. Ele sempre evitou contato com a Diana e ainda dizia que era porque a nossa menina é muito parecida com você. Só pelo fato dele ter ajudado na sua fuga, você deveria desconfiar. Um amigo de verdade jamais deixaria fazer o que você fez. Mas eu não te culpo por isso, quem iria desconfiar do Sérgio? Nem você, nem eu, ninguém.

    Laura começou a fazer carinho no meu outro braço e finalmente abriu os olhos para me olhar. Eles estão cheios de lágrimas e ela deixou rolar algumas. Eu enxuguei todas com os meus dedos. Não queria vê-la derramar lágrimas por aquele inútil.

    - Eu fui tão burra. Acreditava tanto nele. Eu o considerava a minha família. Construí até um posto de tio na vida da Marina. Ele sempre foi o meu melhor amigo, o meu parceiro da vida.

    - Eu sei que é difícil de acreditar nas coisas que ele disse. Mas você acredita, não é? Não faz todo sentido?

    - Pior de tudo é que faz. Ele nem trabalhava no meio das investigações, mas era incrível como ele sempre me apresentava a pessoa certa na hora certa. É claro que era tudo armado para eu ficar grata a ele por uma investigação. Nada foi à toa. Devo te pedir desculpa por não ter notado que ele queria separar a gente.

    - Mais uma culpa que não é sua, Laura. Acho que temos sim nossas culpas e sabemos muito bem quais são. Mas nenhum casamento teria resistido a tantos conflitos que ele criou. Eu errei por ter sido tão ciumenta, não te compreender e te dizer que não veria as meninas nunca mais. Coloquei as meninas no meio do nosso casamento, sendo que elas não tinham nada a ver com isso.

    - Eu errei por não consegui me controlar quando o assunto é trabalho. Eu deveria ter ouvido você ou ter sido mais sincera quando estava nas investigações. Eu deveria entender o seu lado que queria me proteger. Eu fui covarde por não ter tido coragem aquele dia de lutar pelo nosso casamento ou mesmo que você disse que eu não veria as nossas filhas, eu deveria ter ficado e lutado como alguém pessoa faria. Eu fui egoísta, mimada e imatura. Eu errei.

    - Erramos.

    - Será que tem conserto?

    Laura não falou, mas ela passou o dedo pelo meu dedo anelar esquerdo e uniu as nossas mãos.

    - Se você me fizesse esta pergunta uns dias atrás, eu diria que não, mas no fundo querendo dizer que sim. Hoje eu digo que talvez sim.

    Vi a Laura levantar um pouco na minha direção e me puxou para um beijo. É impressionante como esse beijo me causa as melhores sensações do mundo. Seus lábios são como mel que eu gostava de sentir nos meus.

    Ouvimos batidas na porta e paramos na hora. Levantei-me e pisquei para ela ao mesmo tempo que falei para ficar quieta.

    - Quem é? - Laura perguntou.

    Marina abriu a porta com a Diana logo atrás dela.

    - Sou eu, mãe. Vocês sumiram.

    - Ah, é que eu me senti um pouco mal e sua mãe estava cuidando de mim.

    - Ela estava cuidando de você? Que coisa mais esquisita. Mas o que aconteceu? - Marina olhou para mim desconfiada.

    Marina e Diana se sentaram na cama da Laura.

    - Ah, não foi nada demais. Acho que exagerei no pedaço de bolo. Estão vendo? É por isso que eu falo que vocês não podem comer muito besteiras, as pessoas passam mal.

    - Que coisa estranha, nem vi você comendo bolo. Você já está melhor?

    - Ah sim, estou bem já. Vou até levantar-me. Camila cuidou muito bem de mim.

    - Vocês duas não estavam aqui brigando, né? Ninguém merece! - Marina resmungou.

    - Claro que não, pequena. Oh coisinha desconfiada, meu Deus!

    Laura fez cócegas nas duas e eu não pude deixar de contemplar aquele momento maternal com alegria.

    Elas pararam quando ouviram o meu celular tocar. Ele estava na cama da Laura e eu estiquei o braço para pegar. Na tela estava o nome do Gustavo. Quando ia tocar na tela para atender quase dei um grito. Deu um estalo na minha cabeça e me lembrei que a Heloísa chega hoje. Pior, com certeza ela já estava com os dois pés muito bem fincados no Brasil. Pelo adiantar da hora, ela já deve estar na sua casa.

    Eu tinha combinado de ir buscá-la no aeroporto e prometi que íamos conversar. Com certeza ela ficou plantada por um bom tempo no saguão até se dar conta de que eu não fui. Estava tudo na minha cabeça: deixaria as minhas filhas na casa dos pais da Laura, passava em casa para almoçar e depois iria ao aeroporto. Esqueci-me completamente dela quando vi a Laura. A Heloísa deve estar querendo me matar. Pensando bem, o Gustavo que quer.

    - É o tio Guga, depois eu falo com ele. - Respondi para as minhas meninas que olhavam para mim.

    - Quem é tio Guga? - Laura perguntou.

    - Eu já falei, mãe. É o amigo do trabalho da mamãe. Um dia você precisa conhecê-lo, vai gostar dele. - Diana sorriu.

    - Ah sim, um dia marcamos para eu saber quem é esse tal de Guga.

    - Bem, temos que ir, meninas. - Falei olhando para a Laura.

    Diana e Marina não esperaram eu falar uma segunda vez e se despediram da mãe.

    - Você pode buscar a Marina na escolinha de balé e a Diana da aula de vôlei amanhã?

     - Não é escolinha, mãe. É escola! Escolinha parece que é uma coisa chinfrim.

    - Desculpa, querida. Não quis fazer pouco caso da sua escola, minha grande bailarina - Brinquei com a Marina.

    - É claro que posso, Camila. Pego elas nas escolinhas e depois te encontro na sua casa.

    Laura percebeu que eu queria vê-la amanhã. Sei que parece loucura, mas eu não quero que ela pense que o beijo não significou nada para mim. Chega de tentar fugir.

    Marina disse mais uma vez que não era escolinha e fez bicho que só saiu depois da Laura dizer que estava brincando.

    A dona dos olhos mais bonitos que eu já vi na minha vida nos acompanhou até a porta e ficou lá até a partida do meu carro.

Laura

    Sentir-se a pessoa mais sem sorte e ao mesmo tempo a pessoa mais sortuda no mundo, não deve ser normal. Eu estou em pedaços pela gravação e não posso deixar de sentir pena do meu amigo. Mas ao mesmo tempo me sinto sortuda por ter sido perdoada pela Camila.

    Eu não tive sorte de ter um melhor amigo de verdade. Como eu vou confiar em alguém agora? Amizade de verdade não existe?

    Acendi um cigarro e fui até a sacada do meu quarto. De lá, observei a Patrícia chutando algumas bexigas e falando no celular. Como eu poderia não confiar na Patrícia? Ela é minha amiga. Eu não posso deixar que o Sérgio me destrua duas vezes. Patrícia conseguiu me fazer enxergar quem o Sérgio foi de verdade. Se não fosse por ela, talvez a Camila não me daria uma segunda chance.

    Camila. Eu não sei como a gente vai conseguir superar e se vamos de fato ficarmos juntas. Mas hoje pareceu que o tempo não passou para o nosso amor. Ela pode chegar em casa agora e decidir não me dar uma chance. Posso chegar na casa dela amanhã e levar outro fora. Entretanto, se ela me der uma única chance, eu vou me agarrar a ela e nunca mais soltar. As pessoas podem pensar o que quiser, mas eu a amo e também tenho o direito de errar.

    Quando olhei para a Patrícia novamente, ela estava com cara de poucos amigos para mim. Traguei mais um pouco do cigarro e ela encerrou a ligação.

    - EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ ESTÁ COM ESSA PORCARIA NA MÃO - ela gritou para que eu ouvisse de cima.

    Fiz um sinal para ela ficar quieta e apontei para casa. Ninguém sabia direito do meu hábito de fumar. Pedi para ela subir com um sinal e não demorou muito para chegar.

    - Foi só um cigarro, não precisa alertar a vizinhança por isso - falei para ela quando se sentou na minha cama.

    - Desculpa, mas é que você falou que ia parar. Eu já sei o porquê do seu nervosismo, Camila te mostrou a gravação.

    - Sim. Eu estou em choque, me sentindo traída, além de idiota, burra e também estou sentindo uma tristeza sem fim. Está doendo, sabe? Tudo dói. As melhores lembranças que eu tenho na vida o Sérgio está junto. Mas agora parece que foi tudo uma mentira. É como se minha cabeça tivesse criado um personagem fabuloso e ele não passasse de uma fantasia da minha mente. Era o meu melhor amigo ali naquele áudio falando que fez de tudo para destruir a coisa mais preciosa que eu batalhei para construir na vida. Ele ajudou a destruir a minha família sendo que eu o considerava dessa família. Sabe o que é pior? É que ele está morto e eu nunca poderei sentir ódio por ele. Como é que eu vou odiar alguém que não teve a chance de procurar um tratamento, a chance de pedir desculpa pelo que fez? Mesmo que ele não esteja arrependido naquele momento da gravação, talvez se ele entendesse a dimensão do meu sofrimento quando falasse comigo, ele se arrependeria.

    - Minha querida, ele não merece a sua compaixão. Mas se é isso que você sente por ele, só tenho que te admirar. Eu não sei o que faria no seu lugar. Minha vontade na hora foi de bater nele até ele retomar a consciência de tudo que ele fez. Porém, achei mais prudente gravar para te mostrar. Só que eu não imaginava que ele morreria. Imagina a minha raiva de ver você sentindo tanto a morte desse cretino. No ano novo eu mostrei para a Vero e ela sugeriu que quem tinha que mostrar tudo isso, era a Camila. Foi o certo, não foi? Vocês conversaram?

    - Sim. Eu fiquei tão chocada que passei mal. Ela cuidou de mim com tanto carinho, nem eu acreditei. Você estava certa quando disse que ela estava insegura. Conversamos um pouco sobre os nossos erros, foi bom.

    Sorri lembrando do nosso beijo.

    - Pelo jeito deve ter sido bom mesmo. Por que do sorriso?

    - Nos beijamos.

    - Vocês trans*ram de novo?

    - Não, Patrícia! Eu disse que nos beijamos. Foi só um beijo, nada mais. A Marina chegou junto com a Diana logo depois também, então só ficou em um beijo. Mas a Camila tecnicamente me chamou para ir à casa dela amanhã.

    - Caramba! Mas já? Rápidas vocês, não?

    - Não. Não acho que as coisas vão ser rápidas. Ela me chamou para continuar a conversa, para ajeitar as coisas. Tenho certeza de que vamos com calma e eu vou esperar o tempo dela para tentarmos uma nova relação.

    - Hum... que romântica. Aposto que vocês duas vão voltar rapidinho.

    - Tomara que você esteja certa, querida. - Dei risada.

    - Laura, você já teve a estranha sensação de que poderia estar beijando a gêmea errada?

    - Oi? Que papo é esse?

    - Não, sério. Eu estou lá beijando a Vero e do nada travo imaginando ser a Camila. Nunca aconteceu isso com você?

    - Não! Não dessa maneira que você está colocando. Às vezes acontecia de chegar perto da Verônica e tentar beijá-la como se fosse uma coisa automática. Mas nunca chegamos de fato a nos beijar.

    - Eu morro de medo de beijar a Camila achando que é a Vero.

    Caímos na gargalhada que faltou até ar em nossos pulmões. Minha barriga ficou doendo depois que tentei me recuperar para falar.

    - Será que no futuro seremos parentes? Uma espécie de cunhadas distantes? As duas com as irmãs Sullivan? O destino pode ser caprichoso quando quer - falei sonhadora.

    - Eu só sei que independente de tudo, você sempre será uma grande amiga para mim. Mesmo que meu namoro com a Vero não dê certo, tomara que dê, mesmo que você e a Camila não fiquem juntas, eu espero que nossa amizade nunca acabe.

    - Não vai acabar, querida. Seremos para sempre amigas e de verdade.

Fim do capítulo