Nova Iorque - Estados Unidos.

-- Isadora, ainda “tá” assim? O show começa em menos de uma hora. – reclamou o editor chefe da jornalista que a aguardava no hall de entrada do edifício em que ela morava.

-- Francisco, eu acabei de chegar, preciso antes de um banho e... - foi interrompida pelo telefone, olhou o visor - É a Vitória, novamente. – constatou com voz de enfado.

-- Essa mulher também é marcação cerrada hein? - observou a amiga jogar o celular longe - Não vai atender?

-- Não faz uma hora que a deixei em casa, e também tenho que me arrumar, ou você terá um ataque de “bixa histérica”.

-- Ah, com certeza querida! Quero ver este show e já comprei os ingressos há semanas - acompanhou a amiga até o quarto. - Morro de saudades do nosso País, e aviso a você queridinha, estou mexendo meus pauzinhos para retornarmos logo.

-- Quem disse que quero voltar? - gritou do banheiro.

-- Queridinha você não tem querer, sou seu editor chefe e você vai aonde eu for - respondeu pausadamente.

-- Não viaja Francisco - saiu do banheiro enrolada em uma toalha.

-- Sabe o que mais gosto em você Isadora?

-- Não - respondeu com curiosidade.

-- Você não é uma mulher qualquer. Sempre prática, objetiva e rápida.

-- Tolo! - respondeu sorrindo. 

-- Tolo, mas não posso e nem quero lhe perder minha querida. 

-- Não vai, somos uma dupla. 

-- Passamos por cada uma nestes últimos anos não é? - disse pensativo - Hoje você conseguiu uma indicação que equivale ao Oscar do jornalismo internacional. 

-- Conseguimos Fran - corrigiu o amigo - Sem você ao meu lado, não teria feito metade do que fiz.

-- Isa, você praticamente entrou em uma guerra, mostrou a realidade de um povo submisso a um ditador, foi presa, depois conseguiu a liberdade, mobilizando várias entidades mundiais, novamente enfrentou a barra, publicou um livro e mostrou uma matéria nas maiores emissoras do Planeta e ainda diz: "nós"? Você querida, “euzinha” não faria metade de tudo isso.

-- Estou pronta, vamos deixar as rasgações de seda e ir embora? - novamente o celular tocou.

-- Essa italiana é mesmo um saco em amiga? 

-- Não vou atender, não quero perder meu bom humor. 

-- Ela não se garante não? - perguntou colocando as mãos na cintura em uma forma afeminada - Nunca mais lhe levo para fazer matéria na Índia, você se enfeitiça com a primeira morena, alta de olhos azuis que vê vestida de sari e dá nisso ai...

-- Fran, por favor, não menciona mais sobre isso - pediu com uma expressão triste, interrompendo o amigo. Já estavam caminhando pela calçada, em direção ao teatro. – Ainda dói falar sobre isso. 

-- Mas o que vale evitar falar se ainda dói mais em pensar e isso você não pode evitar, está ai no seu coração. 

-- Falar nela dói, mas pensar e lembrar tudo o que vivemos juntas... – chegaram ao teatro e, encontraram Vitória, com uma expressão de poucos amigos esperando-os. 

-- Por que não atendeu minhas ligações? - perguntou em um inglês carregado com sotaque italiano. 

-- Estava atrasada e apressada para chegarmos aqui no horário - respondeu também em inglês. As duas mulheres se comunicavam através do inglês, já que Vitória não sabia falar português, e, Isadora, apesar de falar um pouco de italiano, não entendia certas expressões usadas pelo dialeto da região a qual sua namorada vinha. 

-- Meninas, vamos entrar ou não será de bom tom chegar com as luzes já apagadas. - interferiu Francisco, a muito contragosto por ter de aturar Vitória. Colocaram-se na mesa reservada, fizeram os pedidos ao garçom. - Isa, experimenta o coquetel explosivo, vai adorar - sugeriu o editor com certo tom de ironia que só foi percebido mesmo pela loirinha. 

-- De "explosivo" já basta minha companhia de hoje - os dois sorriram com a brincadeira que não foi entendida pela italiana. 

-- Poderia, ao menos, ser educada? Estou aqui, ao seu lado e não sabe como isso é inconveniente. - reclamou Vitória do fato dos amigos estarem falando no idioma natal. 

-- Desculpe, mas nós combinamos de sairmos juntos, encontro de amigos, veio porque quis - foi à vez de Isadora responder rispidamente, deixando a namorada mais irritada. Francisco que ouvia um pouco da conversa, pediu baixinho para a amiga não provocar mais.

-- Não provoca Isa, por favor, não provoca, ela pode armar barraco.

-- Vem sem convite e ainda se acha no direito de alguma coisa. – resmungou, olhando a namorada com falta de interesse.

Alguns minutos depois o show começou, era uma banda brasileira que fazia muito sucesso, dentro e fora do País. Os dois amigos sentiam muita falta da terra natal, adoravam programas que se relacionassem com os costumes, comidas e tradições brasileiras. Quando uma música, em particular, começou a tocar, Isadora foi levada até uma época em que sua vida parecia ter mais sentido do que viver se arriscando. A imagem de uma morena, alta e de olhos azuis surgiu em sua mente. Uma lágrima insistente teimou em rolar. Uma viagem nas suas lembranças... 

"Quis enganar meu coração, mas foi em vão/A verdade vem e não dá/Eu só penso em te encontrar/Eu quero o teu amor/Se eu disser que perdi a direção/Se eu disser que machuquei meu coração/Quando eu disse não/Tudo que eu vejo só lembra você/E é impossível te esquecer/Por isso vem amor/De tudo que vivi você foi mais/Do que eu imaginei ser capaz /Se eu tiver/Todo o teu calor outra vez aqui/olhe bem para os meus olhos pra sentir/o quanto eu sofri/hoje sei que preciso de você/E não dá pra imaginar te perder/Eu amo teu amor/De tudo que vivi você foi mais/Do que eu imaginei ser capaz". (Catedral)

Era uma manhã nublada de fevereiro, o calor havia dissipado um pouco em decorrência da chuva caída à noite. - “Primeiro dia de aula...” – Isadora pensava com pesar ainda rolando de um lado ao outro da cama, na tentativa de prolongar o momento e dormir mais um pouco.

-- Isadora, acorde, já está na hora de ir para escola – gritou sua mãe.

“Aula... aula... Agora tudo será aula, escola, estudar... Saco! Ainda bem que em duas semanas temos o carnaval.” – pensou ainda com seus olhos fechados. Isadora era uma menina loira, no auge dos seus treze anos, muito sonhadora, adorava escrever e fazer novos amigos. Havia uma alegria contagiante a sua volta e sempre estava presente quando seus amigos precisavam. Com muito esforço, levantou-se, foi até o banheiro, olhou-se no espelho, e percebeu uma proeminência vermelha que começava a despontar.

“Droga, uma espinha! Não tinha dia pior para aparecer?” – falou para si mesma. Achou melhor não mexer, ou poderia piorar e ainda provocar marcas em seu rosto – “Oh Dorinha, você tem uma aparência tão angelical! Como pode ter uma coisa dessas no rosto?” – permanecia falando para si mesma em tom de ironia na frente do espelho. Tomou um banho rápido e vestiu o uniforme do colégio. Ouviu sua mãe lhe chamar novamente, olhou-se mais uma vez no espelho, consertou a franja do cabelo loiro, amarrando-o em um rabo de cavalo aprovando em seguida o que viu, piscou para sua imagem e desceu para o café da manhã.

-- Isadora, seu pai logo chegará para lhe pegar.

-- Tudo bem mãe, eu sou rápida. – respondeu se servindo de suco e recebendo um sanduiche de queijo quente preparado por sua mãe.

Os pais de Isadora eram separados, mas, todos os dias, seu pai fazia questão de leva-la ao colégio, já que este também era o caminho para o escritório. A jovem via essa “obrigação diária” como uma forma do velho Timóteo vigiar os seus passos.

-- Mamãe, este ano você passará o carnaval na casa do vovô?

-- Não. Recebi um convite de um grupo lá da agência, estamos fechando um pacote para ver o carnaval do Rio de Janeiro. Quer ir conosco?

-- Preferia ir para casa do vovô – disse em um tom mais contido - caso não se importe – começava a comer seu sanduiche. 

-- Por mim tudo bem, mas antes fale com seu pai. – ouviu-se a buzina de um carro – Acho que ele chegou.

-- Beijos mamãe – saiu correndo em direção à porta e assim que entrou no carro viu seu pai com um sorriso de orelha a orelha, feliz da vida.

-- Bom dia papai! – beijou o rosto do homem.

-- Como vai minha filha? Passou bem o final de semana?

-- Não tão bem quanto o senhor, pelo que observo.

-- Dorinha, fui convidado a passar o carnaval na fazenda dos Alcântara Peixoto, sabe o que isso significa?

-- Não. – respondeu com pouco entusiasmo, vendo que a viagem para casa do avô iria logo ser vetada.

-- Significa que poderei pegar a conta das empresas Alcântara Peixoto e logo ser o advogado mais conceituado da região.

-- Parabéns! – olhou pela janela e percebeu que o diálogo seria difícil - Pai será que eu posso passar o carnaval na casa do vovô? – pediu quase em um sussurro.

-- Como? Minha filha, você não entende que este pode ser um pulo na minha carreira?

-- Mas o que eu tenho haver com isso?

-- O que tem haver? – perguntou olhando-a rapidamente, enquanto dirigia, para em seguida ele mesmo responder - Você será logo uma grande advogada, e tudo o que batalhei em ter será seu.

-- Não sei se quero fazer Direito – falou para logo se arrepender.

-- O que? Fará Direito e será a melhor advogada da região, seremos uma dupla imbatível minha filha.

-- Mesmo assim não entendo por que não posso passar o carnaval com meu avô. 

-- A neta do senhor José Alcântara Peixoto veio morar aqui na cidade. - sorria com a notícia - Ela estudará na mesma escola em que você estuda, por este motivo, e só ele, você vai comigo a festa – observou de relance a filha – Dorinha, a coitada não conhece ninguém, chegou há três dias e ainda está se adaptando.

-- Droga pai queria tanto ver o vovô! – fechou o cenho e cruzou os braços.

-- Filha, você viu o velho Marcondes no ano novo, isso faz pouco mais de um mês. – observou rapidamente a filha – Não fique emburrada, tenho certeza que gostará da garota.

-- Mas estou com saudades. – na verdade o sítio de Eliezer Marcondes era o local onde Isadora mais adorava ficar, em contato com a natureza e na melhor companhia que ela poderia esperar: a de seu avô. Um homem simples, sem meias palavras, e que sabia enxergar dentro das pessoas.

-- Filha, você sempre foi uma boa pessoa, essa garota não tem amigos na cidade, o que custa ajuda-la?

-- Ah pai! Vai ver é uma dessas meninas mimadas.

-- Não a conheço, mas se julgar pelos pais, não será uma dessas meninas mimadas.

-- Preferia ficar com meu avô – respondeu emburrada ouvindo o pai.

O resto do caminho transcorreu tranquilo, Isadora ouvia seu velho exaltar as qualidades dos Alcântara Peixoto e ela permanecia em silêncio, pensando em como explodir com a mente a tão falada família. Ao chegar à escola, desceu do carro ouvindo as últimas recomendações do pai. Saiu com a cabeça baixa, sem observar o caminho que fazia, até o momento em que se esbarrou com uma garota mais alta, deixando seus pertences caídos no chão.

-- Está cega? Não olha para onde anda? – reclamou rispidamente à morena vendo seus livros e caderno caídos no chão.

-- Desculpa, mas eu estava distraída. – pediu em um tom pouco sincero, ainda limpando a roupa.

-- Da próxima vez veja se toma um chá de bússola – respondeu à morena se erguendo.

-- Já me descul... pei – terminou a frase falando baixinho e engolindo seco ao se deparar com os olhos azuis a sua frente. A morena ao encontrar aqueles olhos verdes e um rosto tão angelical, também ficou por alguns segundos sem ar, perdeu completamente o senso de direção, permanecendo ali, parada diante da loirinha.

-- Tudo bem, eu também não olhava para onde estava indo – desculpou-se após abrir um lindo sorriso que iluminou o dia de Isadora que até então estava nublado. A jovem loira sentiu uma paz diante daquele semblante, ela não sabia explicar, mas aquela menina havia conseguido acelerar seu coração que por muito pouco não saiu pela boca. – Acho que começamos com o pé esquerdo – disse a morena se erguendo após apanhar seu caderno e livros do chão. Ela esticou sua mão para uma apresentação formal. Um sorriso amplo mostrava dentes alvos, em um rosto com traços fortes sobrancelhas arqueadas e um par de olhos azuis safira, transmitiam um conforto indecifrável, muita paz e segurança.

-- Ou não estava conectada a Terra – “que coisa mais estúpida em se falar Isadora” - pensou a loirinha.

-- Boa essa. – concluiu com outro sorriso – Meu nome é Melissa e hoje é meu primeiro dia aqui. - permanecia com a mão estendida para um aperto.

-- Isadora – disse limpando a mão suja de terra para lhe oferecer rapidamente em um gesto cordial, como desculpas por não perceber antes - E estudo aqui desde criança – completou sorrindo. As mãos se uniram e as duas meninas sentiram uma onda de energia percorrer seus corpos e rapidamente, separaram-se assustadas – Talvez possa lhe ajudar, caso não tenha conhecido ainda a escola por dentro. Qual a sua turma? – tentou ser educada e esquecer a súbita troca de energias.

-- Primeiro A.

-- Será minha vizinha, sou da oitava B. Posso levar você até lá.

-- Agradeço e aceito. – respondeu a morena, novamente com aquele sorriso.

As duas caminharam juntas até as suas salas. Durante o percurso, Isadora percebeu vários olhares de cobiça lançados pelos meninos em direção a Melissa, a novata que havia se tornado a maior novidade do colégio.

Melissa era alta, magra, e apesar de ser adolescente já tinha um corpo definido, e aparência de uma linda mulher. Um pouco séria demais para a idade e um senso crítico aguçado, era dotada de grande eloquência que logo lhe conferiu o título de presidente da turma. Não gostava muito de demonstrar seus sentimentos e muito menos falar da sua vida, mas, com aquela menina baixinha era diferente. Desde o início trataram de falar sobre tudo, apenas as aulas as separavam. A loirinha logo começou a admirar a mais nova amiga, que era seu oposto. Isadora era baixinha, possuía um corpo franzino, olhos verdes, cabelos loiros e compridos, dois anos mais nova do que Melissa, e mesmo com tantas diferenças, nada foi empecilho para nascer uma grande e valiosa amizade.

Fim do capítulo