Saíram no dia seguinte, logo após o café da manhã. A cidade estava agitada, com moradores e turistas que se preparavam para acompanhar a bandinha de sopro e o cortejo formado por vários grupos culturais da região. O cortejo seguia da igreja mais antiga até a igreja matriz que levava o nome da santa padroeira, passando por diversas ruas, onde os animados devotos eram saudados por parte da população, que ficavam a assistir o grupo passar rendendo homenagens a Maria. As pessoas iam levando flores e entoando cânticos religiosos e ao chegar à praça principal as baianas lavaram a escadaria da igreja matriz com ajuda de populares. Ashley ficou encantada com a festa, com a alegria do povo que mesmo diante de tantas adversidades, não perdiam a fé. Apesar de seus avós morarem em um lugar relativamente pequeno, não se lembrava de ter visto algo parecido. Junto a Lara se misturou aos grupos, fez o registro do cortejo, dos expectadores, dos logradouros, dos devotos e no fim da manhã estavam exaustas das andanças e esfomeadas, parte pelo avançar das horas e parte pelas delícias que eram servidas nas barraquinhas de comida. XXXXXXXXXXXXXXXXX -- Por mais que eu tenha visto diversos lugares, tanto aqui como fora, há sempre algo que me deixa surpresa – As duas estavam na praça após o almoço a observar o movimento, depois do cortejo. A fotografa tomava uma cerveja e a artista um suco para afastar o calor que era intenso naquele dia, haviam conversado sobre o estúdio que possuía em sociedade com a irmã, onde Liz começou secretária se tornando uma das principais fotógrafas. Também contava sobre o projeto com o qual estava envolvida a quase dois anos. -- Aqui as pessoas ainda conservam costumes de séculos atrás. Vou sentir saudade de tudo, apesar de ser uma cidade meio retrógrada, tanto as pessoas como o lugar exercem um encantamento em nós que viemos de fora! -- Você vive aqui há muito tempo? – A fotografa perguntou curiosa. -- Dez meses, que vivo na cidade vizinha. Tem um conhecido meu que se apaixonou por uma moça, deixou o circo e decidiu ficar com ela. Como há comunidades, principalmente crianças e adolescentes, em situação de risco, ele montou uma escola de circo e me convidou para tocar com ele esse projeto social. Fizemos minha despedida ontem à noite, eu viajaria hoje de madrugada. -- Agora estou me sentindo um pouco invasiva por praticamente te pressionar a mudar de planos, mas não posso dizer me arrependo, pois adorei a companhia. - Sorriu ternamente - É preciso amor pelo que faz e uma consciência social muito grande para deixar tudo de lado e partir para um lugar estranho onde você não conhece quase ninguém. Te admiro por isso. -- Não sinta, a manhã também foi boa para mim, estava precisando de um tempo assim - Devolveu o sorriso- Sobre esses meus pupilos, a melhor sensação que existe é você chegar no final de um trabalho e escutar de um adolescente que ele estava a um passo de cair na criminalidade, mas foi salvo pelo projeto. Eu parto com a sensação de dever cumprido e vontade de fazer muito mais, mas confesso que o que inspirou minha vinda foi meu próprio bem-estar. -- Às vezes é preciso levar um baque na vida para encontrar coragem de enfrentar grandes mudanças, sei bem como é isso – Ash pensou em como sua escolha também tinha tido essa motivação. -- Você e Liz se conhecem há muito tempo? - Lara teve vontade de perguntar o que impulsionou Ashley a embarcar nessa viagem solitária, mas não se sentiu no direito de invadir a privacidade da moça, preferiu mudar de assunto. -- Alguns anos, tenho aquela maluquinha como minha irmã mais nova e ela também nos adotou, somos uma grande família – o sorriso de Ashley morreu quando ela percebeu o semblante da moça à sua frente. Provavelmente o tema família era um tabu para a artista, decidiu evitar o assunto, queria manter o clima descontraído da manhã. – Sabe, essa magia de circo me deixa encantada. Me conta como você se tornou artista circense! - Lara notou e agradeceu silenciosamente a atitude de Ash, não queria tocar nesse assunto com alguém que acabou de conhecer e ainda por cima amiga de Liz, além do mais as pessoas costumam ser cruéis quando deparam com o diferente e naquela semana em especial ela estava com a sensibilidade à flor da pele. Continuaram o papo descontraído, a cantora contou um pouco de seu cotidiano com as crianças necessitadas enquanto dava aulas de malabares e violão. Falou sobre sua trajetória no circo de forma resumida, de como foi de malabarista a atriz performática e cantora a partir do incentivo de sua mentora, com quem viveu por um tempo quando saiu de casa e, também, de seu envolvimento em trabalhos sociais voltados para adolescentes e jovens que sofrem violência doméstica. Lembrou do tempo que viveu a trabalho no exterior, quando se arriscou viajando sozinha buscando meios para alcançar seu verdadeiro eu. Ashley também contou muitas de suas aventuras fotografando pelo país afora, das dificuldades de viver por conta própria no começo e da sorte que teve em conseguir apoio desde a família até empresários do ramo. A conversa entrou pela noite, haviam alguns barzinhos nas redondezas onde uma conhecida marca de bebidas costumava promover shows de cantores regionais com voz e violão. As duas permaneceram ali curtindo a música até que estacionou um carro na calçada perto de onde estavam e alguns rapazes visivelmente sobre o efeito de álcool ou algo mais, ligaram o paredão e começaram a dançar e provocar as jovens que passavam. Quando viram as duas começaram a apontar, zombando claramente de algo que a morena desconhecia. -- Impressão minha ou nós somos o assunto daquele grupinho? – Perguntou intrigada. -- Conheço aqueles garotos, são do tipo encrenqueiros, vivem procurando motivos para brigar, agredir. Se você não der atenção eles acabam desistindo. – Viu que a morena estava assumindo uma postura defensiva perante a chacota que sofria e tentou convencê-la a se acalmar. A morena seguiu o conselho, pois eram duas forasteiras, não poderia criar confusão na casa dos outros, mas a postura debochada dos rapazes não ajudava muito, logo perderia a paciência. -- Vamos sair, se ficar aqui eu não respondo por mim. – Pegou a outra pela mão na intenção de deixar o local após pagar a conta. -- Onde a aberraçãozinha pensa que está indo? – Um dos garotos, provavelmente o líder do grupo falou segurando Lara pela outra mão, deixando a moça visivelmente assustada. -- Nós já estávamos de saída. –Ashley decidiu levá-la para o hotel, tinha o leve pressentimento que o garoto não as deixaria terminar a noite em paz. - Somos da paz, ok? Você fica na tua e nós vamos embora sem confusão. -- Eu te disse pra cair fora. Não disse? E o que você fez? Fugiu pra cá – Ignorou Ashley- Vou te dar a surra que teu pai não deu. Se ele fizesse isso você não ficava de palhaçada com a cara dos outros. – Num solavanco jogou Lara contra a parede fazendo com que Ashley tentasse uma medida rápida para evitar que a cantora fosse agredida covardemente. Reuniu forças e deu um puxão no agressor, que não esperava pela reação e acabou se desequilibrando e caindo no meio da rua. Quando se voltou na direção de Lara, pensando em aproveitar a distração do arruaceiro rapidamente e voltarem para o hotel, foi surpreendida com um soco e apagou.

Fim do capítulo