Anne deixou rapidamente da casa de Ashley, não olhou para trás, pois se o fizesse não conseguiria. Conforme a morena havia pedido não levou nada, iria aguardar que enviassem seus pertences para onde seria sua casa, pelo menos até saber que rumo dar à vida. Percebeu que Ashley e Liz a observavam de uma sorveteria em frente à pracinha, mas não estava com clima para “fazer a social”, certamente nenhuma das duas lamentava o fim do casamento com a fotógrafa e não as culpava, pois na mesma situação sua reação seria igual.

Decidiu por não chamar um taxi, a longa caminhada da rua onde viveu até o apartamento de Kelly ajudariam a clarear o pensamento. Tinha que se manter forte depois do não recebido da fotógrafa. Durante os quase três meses, apesar de desolada, alimentou uma pequena chama de esperança em conseguir o perdão da morena. Agora estava remoendo sua culpa, tentando encontrar outra direção para sua vida, que não fosse aquela traçada junto à morena. O único motivo pelo qual não terminava com tudo era sua esperança de que o amor das duas iria suplantas todos os problemas, queria acreditar, precisava crer que no futuro as duas encontrariam um jeito de fazer as coisas funcionarem, ou não teria porque viver.

Ash não estava diferente, passou o resto da tarde e a noite trancada no quarto. Sabia que a irmã e a amiga não questionariam o que aconteceu entre as duas, mesmo assim não queria ver ninguém. A conversa seguiu um rumo totalmente diferente do que esperava, durante o tempo que passou imaginou sua reação diante da empresária, pensou se teriam insultos, gritos, se iria às vias de fato, mas o que aconteceu entre as duas foi totalmente inesperado e somente serviu para deixá-la mais machucada do que já estava. Se sentia tão desnorteada que desejou ter a capacidade de perdoar Anne, assim seu coração teria paz e ela não se sentiria tão dolorida, tão perdida. Agora entendia o que a mãe passou e compreendeu o tamanho do desespero que ela sentia e porque tentou acabar com tudo. Não faria o mesmo, pois viveu na pele o quanto cada tentativa de sair de cena afetou a ela, Hanna e os avós. Iria se forçar a levantar da cama e retomar sua vida, mesmo que continuasse sentindo como se morresse um pouco a cada manhã, precisava mais que tudo preencher seus dias com atividades que a fizessem se livrar de seus fantasmas pelo menos por umas horas.
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-- Ash, você precisa comer! Sabe que saco vazio não se mantém em pé. – Ashley estava de volta ao estúdio fazia dez semanas, durante esse tempo tentava focar o máximo na fotografia para superar a dor. Cobria vários trabalhos de publicidade no estúdio e ainda era freelancer nas horas vagas. A única coisa que se recusava terminantemente era fotografar casamentos, não tinha paciência para os arroubos de felicidade dos noivos e famílias, sua ferida ainda estava muito recente.
-- Depois que finalizar esse catálogo vejo alguma coisa para comer. -- Estava trabalhando num anuncio para a confecção da família.
-- João, Kelly, Liz e eu vamos a um restaurante hoje. Porque você não vem com a gente? Você tem trabalhado muito ultimamente, precisa reservar um tempo para relaxar - Ultimamente o pessoal vinha tentando tirar Ash de casa para algum programa sem muito sucesso, a morena saia diversas vezes, porém todas a trabalho.
-- Tenho um evento para cobrir hoje. - Respondeu olhando para o computador - Mas não iria mesmo assim, não estou com paciência para bancar a vela.
-- Você continua insistindo nessa história das meninas. - A fotógrafa vivia dizendo que as amigas tinham um crush enorme uma pela outra.
-- Qualquer pessoa mais atenta percebe a energia sexual que paira no ambiente quando aquelas duas estão juntas.
-- Será? Nunca pensei nisso...
-- Talvez porque você não tenha nosso radar. - Respondeu displicente.
-- Ok. Contra essa afirmação eu não tenho argumentos. - Se aproximou do computador - Essas fotos estão ótimas. Mamãe com certeza vai amar. Você vai levar para ela aprovar? Aproveita e fica uns dias no interior.
-- Não vou, Liz levará. Fica no caminho do hotel onde ela fará aquelas fotos para o outdoor da Noivas e Cia.
-- Você deveria ir. Um fim de semana respirando os ares do interior, aquela calmaria, te cairia bem. - Antes de começar já percebia o aborrecimento da irmã, mas tentaria ainda que em vão convencê-la a desacelerar o ritmo de trabalho - essa overdose de trabalho pode não te fazer bem.
-- Ai Hanna me deixa trabalhar em paz! - Era sempre a mesma resposta que vinha acompanhada de um suspiro aborrecido.

Ashley saiu do estúdio irritada. Era o que sempre acontecia quando a irmã ou algum dos amigos tentava "animá-la" a passar a página, ainda não conseguia nem ficar em casa sem ser atormentada por lembranças com as quais travava uma batalha diária para expulsar de sua cabeça. Trabalhava dia e noite para evitar a realidade que a sufocava, mas quando colocava a cabeça no travesseiro todas as lembranças vinham como um turbilhão.

Naquela noite ficou até tarde fotografando um evento beneficente, um leilão e jantar com celebridades para arrecadar fundos para o orfanato da cidade. Chegou em casa a uma da manhã, depois de um banho rápido tomou um copo de iogurte para não dormir de estômago vazio. Aliás dormir ultimamente era apenas força de expressão, o que menos fazia era dormir, sua cabeça ficava fervilhando com perguntas sobre o que poderia ter sido e o que nunca foi. Se dirigiu até a varanda no primeiro andar e de lá passou a observar a cidade com todas suas nuances. Lembrou de uma época não muito distante, quando planejava um rumo diferente para sua vida, essa lembrança retornava com bastante frequência ultimamente e ali ela decidiu que era hora de voltar a sonhar.
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-- Bom dia Liz. Sobre as fotos da confecção pode deixar que eu mesma entrego tá? - A castanha estava arrumando os equipamentos para pegar a estrada, era extremamente neurótica com horários, o casamento aconteceria à tardinha, mas ela planejava chegar pela manhã.
-- Porque? Não estava certo que eu passaria lá para deixar o material?
-- Preciso conversar com minha mãe, aproveito e faço as duas coisas.

--Na verdade preciso comunicar a vocês três sobre uma decisão que tomei noite passada. - Ash levou a amiga até a sala da irmã para que conversassem.
-- Olha só, reunião de última hora? - Hanna estava pesquisando preços para aquisição de novos equipamentos – Foi bom vocês aparecerem, estava aqui vendo uns kits de iluminação contínua, preciso de uma segunda opinião com relação às ofertas.
-- Depois Hanna. Preciso conversar algo com vocês. - Ash convidou as duas a sentarem na poltrona da pequena sala de reuniões do estúdio - Há alguns anos eu cultivava planos de publicar um livro, vocês sabem. - As duas apenas escutavam já pressentindo o que estava por vir - Minha vida teve uma reviravolta e surgiram outros planos, outras metas. Agora outra reviravolta me tirou dos trilhos e eu preciso encontrar um sentido para minha vida.
-- Você vai deixar tudo e correr atrás desse sonho. - Liz resumiu a conversa.
-- Sim. - Suspirou - Eu preciso dar um tempo dessa cidade, encontrar meu norte, respirar outros ares como Hanna sempre sugere e eu amo fotografia, tenho esse projeto desde que entrei na faculdade. Está na hora de tentar pôr em prática, pelo meu bem nesse momento.
-- Não vou te dizer que acho super legal, o máximo, porque sempre achei uma loucura essa tua ideia de ficar pulando de cidade em cidade com uma máquina fotográfica pendurada no pescoço, mas é o teu sonho. O que se pode fazer? – Liz nunca escondeu de Ashley o que pensava sobre esses planos da morena, mas no fundo torcia para que tudo desse certo e ela conseguisse realizar o sonho.
-- Eu vou morrer de saudade, a gente nunca se separou por mais de dois meses – Hanna como a boa chorona que era falou com os olhos lacrimejantes - mas eu apoio a tua decisão e ficarei aqui torcendo para que você obtenha sucesso no livro e consiga apaziguar teu coração.

A conversa com dona Letícia já não foi tão tranquila, a mãe se preocupava com a filha, uma mulher sozinha, atravessando cidades, em lugares estranhos. Achava que ela estava bem trabalhando ao lado da irmã, não teria porquê se jogar no mundo por uma pessoa que não merecia. Para Ash, havia sim a necessidade de fugir de tudo que lembrava seu casamento, porém no momento decidiu se lançar nesse sonho, percebeu que maior que isso era necessidade de fazer algo por ela mesma. Foram anos se doando a outra pessoa e anulando suas vontades. Agora seguiria seus desejos e desconsideraria qualquer opinião contrária, mesmo que fosse dona Letícia, caso as coisas não saíssem como desejado voltaria para casa com a satisfação de haver tentado, ainda que não tenha dado certo.

Os dias seguintes foram de preparação, Hanna Liz e João ajudaram com os planos. Colocou a casa à venda e Hanna como sua procuradora, vendeu o carro e adquiriu um modelo mais em conta, acompanhou o fotógrafo contratado nas sessões, vendeu a moto e foi para o apartamento de Liz. Continuava com sua jornada desgastante de trabalho, agora com outro objetivo: juntar dinheiro para viagem. Pretendia continuar trabalhando como freelancer, ou outros trabalhos de fotografia, nas cidades onde pousasse, mas precisava se sustentar no início e também necessitava de um fundo de emergência, fruto dos lucros da sociedade com a irmã, a venda da casa, moto e carro e os vários trabalhos que ela vinha fazendo desde que voltou à ativa.
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-- Promete que você vai entrar em contato sempre por mensagens e quando puder por chamada de vídeo. Se não a gente te prende e não te deixa ir. - Era chegado o dia de se despedir Liz e Hanna já haviam feito dezenas de recomendações relacionadas com segurança e a necessidade de manter contato com a família e amigos.
-- É uma promessa para as minhas baixinhas, - fez o cumprimento com o dedo mindinho para a irmã como faziam quando eram crianças - sempre que puder falo com vocês, deixo minha localização. – Abraçou forte as duas.

-- Vou morrer de saudades. – Letícia já não tinha lágrimas, apoiou a filha, se preparou para o momento, mas nem de longe imaginou o tamanho da angústia que sentia em ver Ashley se jogar nessa aventura.

-- Eu também vou sentir muitas saudades. Amo você. – Abraçou a mãe e lhe beijou a cabeça. – Amo todos vocês! – Se despediu de Kelly e João e recebeu um abraço coletivo de todos antes de entrar no carro. Henrique e Kadu não quiseram ver a morena partir, se despediram no sábado depois de um jantar em homenagem à fotógrafa. Ash passou uma semana na casa dos avós e se despediu dos dois por antecipação.

Deu partida no carro enquanto alternava risos e lágrimas, de saudade da família dos amigos, um pouco de medo do desconhecido, a vontade de embarcar nessa aventura onde acreditava que iria se encontrar. Não sabia como, nem porque, mas sentia que o futuro lhe reservava algo de bom.

Fim do capítulo