Capítulo único
Naquela fase passarinheira, onde as meninas gorjeiam as primeiras paixões com suas vozes finas e excitadas e o ingresso pela fase onde tudo é um devaneio em rosa, Ariana concebia outras cores em seus sonhos.
Enquanto os olhares das amigas e seus risinhos incontroláveis faziam com que rodassem em torno de um único objetivo: deixar de ser “BV”, a discriminada ‘boca virgem’ - e de preferência com os meninos mais lindos da turma – ela, na contramão, preferia observar a Vida.
Mesmo naquela pouca idade, a Vida já lhe chamava a atenção. Via ousadia, rebeldia e, principalmente, promessas de futuro. Ariana, de boca e alma virgens, pulsava, queria viver intensamente a vida.
Vida era uma colega de classe de Ariana, tinham a mesma idade e estudavam juntas desde os primeiros anos, embora nunca tivessem frequentado a mesma rodinha de amigos. Vida era um tanto diferente dos demais, logo, seguia à margem, ainda que em estrada paralela.
Ariana via nela premissas de beleza; apesar de Vida ter sido escolhida pelas malfadadas espinhas e uma vista fraca que a obrigava a usar óculos grossos. Era também alta e desengonçada, sempre derrubando os cadernos dos outros quando passava.
Ao contrário dos demais, Ariana deixava seu material sempre à beirada da mesa. Era seu paraíso secreto e inconfessável abaixarem-se juntas e, furtivamente, tocar os dedos da Vida entre folhas amassadas, livros ou estojos.
Entretanto, a vida não é para covardes.
Logo comentários e risinhos desviaram a atenção dos meninos e foram, junto com dedos apontados, cutucar doloridamente Vida através de Ariana.
Vida pouco se importou com os dedos dos outros, já estava acostumada. Tinha pena da tentativa deles de usar a diferença alheia para esconder a própria. Ela sabia que em algum ponto, todas as vias se desviam da estrada principal.
O que doeu, foi ver Ariana recuar assustada e, cheia de pavor, juntar seus dedos – os que secretamente acariciavam os seus – no mesmo gesto de acusação e deboche dos outros. Esperava mais dela.
Assim Vida deixou a vida de Ariana, que percebeu-se no escuro monocromático, entorpecida como aqueles que vagam negando a si mesmos.
Os anos passaram e Ariana, sentindo-se maculada na boca e na alma, os viveu agarrando-se ao sonho de encontrar a linda mulher que, cheia de curvas e promessas, lhe daria a suave e perfumada mão e a conduziria ao outro lado das brumas, onde as pessoas não têm formas ou selos, apenas são belas e intensas; cheias de energia e onde a saudade não dói.
Apartada da Vida, queria mergulhar na indolor profundidade da Morte, e se atirava aos seus braços no gole a mais, no cigarro a mais, na velocidade a mais. Entretanto, para ela nada disto se parecia tanto com ausência de vida, quanto ceder ao medo dos dedos apontados e, mais uma vez, deixar seu corpo ser usado sem nenhuma vontade. Desta morte ela não gostava. Era feia e amarga.
Um dia, um destes em que ela sentia necessidade da Morte, atirou-se de corpo e alma de um viaduto e, enquanto caia, sentiu a mão dela tocar a sua. Não era suave ou quente, como imaginara, mas reconfortante. Olhou para seu rosto e sorriu, era mesmo uma linda e sedutora mulher.
A próxima coisa que sentiu foi o impacto de seu corpo em um carro que tinha desacelerado ao vê-la cair e parecia ter se colocado ali apenas para amortecer sua queda.
Através do vidro trincado, os olhos ainda embebidos na paixão pela Morte, reconheceram a condutora. Não era linda, tinha algumas marcas no rosto, um olhar assustado, meio atrapalhado, sem nenhuma promessa de vida tranquila ou fácil.
Aqueles olhos, cheios de pesada realidade, ofereciam a Ariana o que ela já não sonhava merecer, mas que nunca havia deixado de desejar.
A Morte, sentindo-a fugir de si, tentou reter seus dedos, em fatal sedução. Porém, a paixão, tão fugaz, já não existia.
Os olhos de Ariana voltaram a se encher de algo muito maior e redentor.
Estavam novamente repletos de amor pela Vida.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Monica Franca
Em: 30/05/2017
"A vida não é para covardes".
Ou nos arriscamos ou não vivemos.
Bjos
Resposta do autor:
isso foi um recado pra mim mesma, eu sou muito covarde, credo. Admiro os que sabem lugar pelo que querem >.<
rhina
Em: 05/08/2016
Olá.
Cara muito lindo.
Adorei.
Parabéns.
Até.
Rhina.
Resposta do autor:
Olá, garota! Adorei que vc gostou, muitíssimo obrigada por ler e comentar (e perdão por quase um ano pra responder, não percebi que tinha comentários sem resposta aqui :o )
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]