Capítulo único
A luz do sol, tendo viajado por milhares de quilômetros, naquele momento parecia brincar de invadir a janela sem cortinas da casinha cor de laranja de Flora, no lugar que ganhou o apelido de bairro colorido.
Depois de um concurso da loja de tintas, todas as casas daquele bairro, no alto da ladeira, ficaram coloridas como um dia ensolarado de primavera.
Tinha a casa lilás, do Abreu e da Maria, a casinha verde com jardim da Marina, o sobradinho vermelho e rosa, onde moravam os estudantes barulhentos e entusiasmos, a casa azul do céu, da Anália e seus três filhos. Assim as cores se misturavam por algumas ruas, identificando seus moradores. Casinhas comuns, só muito coloridas. E entre elas a casa laranja sem cortinas da Flora.
Flora até tinha cortinas, bem guardadas, no alto do guarda-roupa. Mas tinha muita preguiça de subir na cadeira e tirar todo o pó que cobria o saco plástico que as embalavam.
Marina também não tinha cortinas em suas janelas, porém ela não se incomodava com isto: desenvolvera técnicas para fugir do sol que invadia seu quarto de manhã. Quando, finalmente, ele chegava até ela, já era hora de levantar e ir para o trabalho.
Flora e Marina trabalhavam juntas num prédio muito grande, muito velho e muito cinza. Um cinza entristecido, com cara de chuva em final de semana.
Um dia, conversando, elas se deram conta que gostavam mais do trabalho quando ainda não conviviam com o colorido de seu bairro.
E assim, todos os dias quando a sirene apitava, era com alegria que elas tiravam o uniforme cor e peso de chumbo, que as deixavam tão iguais a todos os outros, e vestiam suas roupas coloridas e leves para voltar para suas casas.
Caminhavam juntas - não moravam muito longe da fábrica, embora parecesse um outro universo. De longe podiam ver o sol brilhando sobre seu bairro, iluminando aquela profusão de cores. Achavam que era o seu arco-íris particular. E se era um arco-íris era só procurar que encontrariam um tesouro por ali.
Flora sabia, mas não dizia nada. Ela já havia encontrado o seu tesouro. E, por ser tesouro, não desgrudava dele, ou melhor... Dela.
Marina ainda não concluíra, mas já percebera que aquela alegria e beleza que deixavam o seu mundo tão cheio de vida e a tornava especial entre uma multidão, não a arrebatava quando estava sozinha, mesmo que estivesse mexendo em seu jardim. Somente quando Flora estava por perto, a beleza era mais bonita, o agradável era mais sublime.
É, só faltava concluir. E Flora esperava serenamente por este momento. Achava que a pressa a faria perder todos os sentimentos que ela furtava da vida, que a faziam estremecer, congelar, aquecer, sonhar... Tudo isto com alguns olhares, pequenos toques, todos os sorrisos, toda a espera.
Muitos dias mais o sol invadiu as casinhas coloridas. Inúmeras vezes, o som da sirene proporcionou uma troca risonha de olhares. As ruas da ladeira testemunharam os passos sempre unidos, inclusive quando unidas passaram a ser também as mãos daquelas moças tão únicas do bairro colorido, no dia em que a espera acabou e as emoções passaram a ser compartilhadas.
E o pequeno bairro das casinhas coloridas era mesmo o final do arco-íris. O tesouro que escondia era o imenso amor que transbordava da casinha metade verde, metade laranja - como uma taça bem gelada de Hi-Fi, com um lindo jardim, que Flora e Marina agora dividiam.
O sol continuava sua jornada de milhares de quilômetros para trazer luz, vida, colorido, energia e calor ao nosso planeta... Mas já não mais as acordava, porque juntas cobriram as janelas de alegres cortinas e assim aproveitavam mais o aconchegante prazer de dormir uma nos braços da outra.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Monica Franca
Em: 30/05/2017
Algumas esperas valem a pena !
Amei o colorido...o arco-íris.
Bjos
Resposta do autor:
esse é um dos meus queridinhos, escrevi pensando nas pessoas que vivem em algumas comunidades do Rio e em quanta história colorida se esconde no cinza das fábricas.
Beijinhos, caríssima o/
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