Capítulo 9 - Redenção
– O serviço público de identificação disse que estará aqui amanhã. – A enfermeira explicava ao funcionário da administração do hospital, em voz baixa, no canto do quarto.
– Por que não podem vir hoje? Temos que emitir as cobranças dos procedimentos. Ela não tem nenhum documento que a identifique? Não encontraram nada no local? – O homem atarracado falava com impaciência.
– Apenas uma corrente de soldado.
– Aquelas placas de identificação? Fizeram a leitura com o scanner?
– Sim, mas não conseguimos decifrar, está criptografado. Acho que ela é de outro país.
– Quem estava no carro com ela?
– Não tinha ninguém, ela estava dirigindo sozinha.
– Mas tinha sangue no banco do carona.
– Tinha? – Perguntou a enfermeira.
– Ouvi o policial dizer que sim.
– Então pergunte ao policial, porque eu estou por fora disso, apenas fiz o curativo e apliquei os remédios.
– Onde está o policial? – Ele perguntou.
– Na recepção, esperando ela acordar para interrogá-la.
– Deixa pra lá, amanhã eu falo com o pessoal da identificação, aqueles lerdos. – O funcionário disse, já saindo do pequeno quarto abafado, sem janelas, e com cheiro forte de éter.
– Ela não vai acordar tão cedo, dei uma boa dose de antitérmicos, a febre dela nunca baixa. – A enfermeira o acompanhou para fora do quarto.
Sam levantou-se rapidamente do leito hospitalar, um dos poucos móveis dentro daquele quarto. Assim que sentou-se na beirada da cama sentiu-se zonza, a visão ficou turva por uns segundos. Firmou-se de pé e colocou a mão na cabeça, havia um curativo no alto da testa. Conferiu o restante do corpo, haviam apenas arranhões e escoriações, e vestia nada além de uma bata branca amarelada.
Foi até a porta e certificou-se que estava sozinha, desbravava com mãos apressadas os dois armários no quarto, procurava por suas roupas, mas não encontrou.
Olhou ao redor, ofegante e com um semblante quase aterrorizado, foi ao banheiro, abriu o pequeno armário atrás do espelho, que estava vazio, bateu a portinhola com violência. Voltou ao quarto, abaixou-se e encontrou um saco plástico com suas roupas embaixo da cama. Vestiu-se com pressa, voltou a ficar tonta e segurou-se na cabeceira da cama.
Percebeu que sua camiseta branca tinha manchas de sangue, sentou-se na cama e lutava para não deixar o desespero tomar conta da situação, precisava pensar de forma fria e elaborada, não sabia onde estava, nem o que havia acontecido com Theo. Nem sabia que horas eram. Fitou o chão de forma pensativa por um instante, tentando planejar seus próximos passos. Sou treinada para emergências, tenho que pensar em algo, pense, pense.
Apertou o botão de emergência na parede e foi para o banheiro, aguardou ereta atrás da parede, até uma enfermeira adentrar o quarto apressada. Sam a dominou sem dificuldades, agarrando seu pescoço e cobrindo sua boca, a arrastou para o banheiro e fechou a porta.
– Senhora, não pretendo machucá-la nem lhe fazer mal, quero apenas seu jaleco e depois irei lhe trancar aqui no banheiro para garantir minha fuga. Posso descobrir sua boca?
A enfermeira concordou, movendo a cabeça.
– Não me mate. – A enfermeira balbuciou assustada, após Sam tirar sua mão.
– Como lhe disse, não tenho a intenção de machucar a senhora, mas não posso ficar aqui e minha roupa está suja de sangue, preciso de seu jaleco.
Ela tirou rapidamente o jaleco branco e entregou estendendo o braço nervosamente.
– Obrigada, senhora. Desculpe o incômodo, logo alguém a tirará daqui. Que Deus a abençoe. – Sam vestiu-se com o jaleco branco ainda com o crachá digital preso no bolso, arrancou o curativo da testa, e trancou o banheiro por fora.
Saiu pelo corredor principal do hospital, andando de forma natural, para não levantar suspeitas, chegou até a recepção e avistou um policial baixinho, ruivo e cheio de sardas, com a cabeça caída de lado, cochilando na cadeira. Foi até uma sala onde haviam pranchetas eletrônicas, e pegou uma.
– Boa noite senhor. – Sam o cumprimentou.
– Oi, quer dizer, boa noite.
– O senhor é o policial que aguarda a paciente do acidente de carro acordar?
– Isso, a moça acordou?
– Acordou, pode me acompanhar até o quarto?
– Claro. – Levantou-se apressadamente e passou a seguir Sam pelos corredores.
– Ela está consciente? Digo, está falando coisa com coisa? – Ele perguntou no elevador, iam para o subsolo.
– Sim, está lúcida e conversando normalmente. O senhor está com seu comunicador policial, para anotar o depoimento?
– Droga, sabia que tinha esquecido de algo, está no carro. Mas não tem problemas, eu anoto no meu comunicador pessoal.
Entraram numa sala gelada e com cheiro forte, era grande, ocupava quase todo o subsolo e haviam dezenas de macas cobertas por lençóis. Não havia ninguém ali.
– Parece um necrotério. Morro de medo de mortos. – Ele disse, fazendo o sinal da cruz.
– Realmente parece.
– Que lugar estranho, tem certeza que ela está aqui?
– Está sim, e conversando com você. – Sam falou, já apontando uma arma para o policial, ele deu dois passos para trás, com o susto.
– Minha arma?? Mas como…
– Ok, se aproxime dessa maca e coloque as mãos na cabeça. – Sam falava de forma incisiva, segurando firmemente a arma com as duas mãos.
– Por que vai me matar? Eu só queria interrogar você.
– Não vou matar o senhor, nem lhe ferir, mas preciso do relatório do meu acidente. – Sam tomou as algemas do cinto do policial, e o algemou no ferro de uma das macas, onde um cadáver coberto jazia.
– Não tenho acesso, apenas o comunicador da polícia tem acesso a essas informações. – O policial de bochechas vermelhas tremia as mãos nervosamente.
– Então faremos o seguinte. – Sam explicava calmamente. – Você me dá o token do seu carro, e vou até lá e acesso o comunicador. Você fica aqui algemado até o próximo funcionário entrar. Ninguém se machuca e todos ficam bem. Feito?
– Você não pode entrar numa viatura oficial e mexer em equipamento policial.
– Hoje eu posso. Caso o senhor se recuse, infelizmente terei que tomar seu token à força, e ao invés de deixá-lo aqui algemado, o deixarei dentro de uma destas gavetas obituárias, e já adianto que não será numa gaveta vazia.
– Ok, ok, tome. – Ele entregou o pequeno aparelho.
– Agradeço a boa vontade, que Deus lhe abençoe. – Sam falou guardando a arma no cós da calça, colocando a camiseta por cima.
Saiu a passos rápidos pelos corredores, barrando sua vontade de sair correndo. Foi até o estacionamento e localizou o carro policial, logo já estava acessando o comunicador policial, procurando pelo relatório do seu caso, até finalmente encontrar. Pulou as descrições burocráticas e foi logo para a parte que lhe interessava.
“…além da mulher sem identificação encontrada inconsciente no banco do motorista, foi encontrada uma boa quantidade de sangue no lado do passageiro, levando a suposição de haver outro ocupante no momento do acidente.
Relatório adicional feito pelo oficial Carlos Nunes: Às 22 horas do dia corrente, após recebermos a informação de uma testemunha que viu um carro de cor preta evadindo do local do acidente, nossa viatura abordou um carro com a mesma descrição dada pela testemunha, no condado de Halifax, na Rua San Esteban. Eu e o oficial Santana nos aproximamos do veículo com cautela e sinalizamos para que saíssem do veículo, mantendo uma distância segura. Não houve resposta, então erguemos nossas armas e novamente ordenamos que saíssem do interior do carro com as mãos na cabeça. Dois elementos do sex* masculino, de aproximadamente 40 anos, um caucasiano e um negro, saíram correndo pela mata fechada que havia na lateral da rua, atirando em nossa direção. Por motivos de manter nossa segurança, não podemos efetuar a busca por eles, porém comunicamos a central para que mandassem reforços. No interior do carro encontramos uma mulher, de aproximadamente 20 anos, caucasiana, que estava algemada no banco de trás e com a roupa ensanguentada. Ela foi encaminhada para o centro de convivência para idosos e portadores de necessidades especiais, por se tratar de uma pessoa com deficiência visual. De lá ela será encaminhada para a delegacia de Puerto Madre, cidade onde ocorreu o acidente automobilístico o qual ela possivelmente está envolvida.”
– Centro de convivência para idosos e portadores de necessidades especiais de Halifax. – Sam repetiu para si mesma.
Olhou ao redor, mexeu na tela no painel da viatura, e deu a partida no carro.
– Santo Deus, me perdoe por isso, mas é por motivo de força maior. – Murmurou e saiu em direção à Halifax.
Meia hora depois chegou no destino, uma instituição de médio porte, com grandes janelas antigas no patamar superior, todas com grades brancas descascadas. Passava das duas da manhã.
Estacionou nos fundos e entrou sem dificuldades, estourando a fechadura da pequena porta. Com arma em punho, e ainda com o jaleco branco da enfermeira, esgueirava-se pelos corredores escuros do prédio, avistou uma porta aberta adiante, seguiu até lá e pode ver várias camas com internos dormindo, invadiu o grande pavilhão, silenciosamente.
Olhava para todos os leitos, em busca de Theo, quando se aproximava dos últimos um toque no seu ombro quase a matou de susto.
– Moça, eu preciso ir ao banheiro mas esqueci onde fica. – Uma senhora idosa, vestida num camisolão branco a abordara, sorridente.
– Banheiro? – Sam sussurrou, sem saber o que fazer.
– Uhum. – A senhora respondeu, com as mãos entre as coxas.
– Ok, eu levo a senhora até o banheiro. – Sam olhou as últimas camas mas não encontrou nenhum rosto familiar.
Conduziu a senhora pelo braço até o final do quarto, onde havia uma porta.
– Deve ser aqui.
– Aqui é o banheiro dos homens. – Ela se recusou a entrar.
– Use este, ninguém vai ver.
– Não, eu quero ir no banheiro das meninas.
Sam olhou hesitante, não conseguia dizer não, por mais perigoso e insano que isso parecesse.
– Ok, ok, mas preciso que me diga onde ficam os cegos.
– Os cegos? Eu conheço um cego, ele se chama Juan Claudio, tem uma barba branca, bem branquinha e aparada, ele mesmo que a apara! Não sei como consegue, se não enxerga. – A senhora ia contando enquanto Sam a levava para o outro lado do quarto, agora ela que segurava no braço de Sam.
– Mas a senhora sabe onde o Juan Claudio dorme? – Sam a ajudou a sentar no vaso, haviam achado o banheiro de meninas.
– Claro que sei, já o visitei várias vezes durante a madrugada. – Ela riu.
– Shhhh. Não podemos fazer barulho, senão acordaremos os outros. Onde ele dorme?
– Ele agora dorme lá em cima, com os anjos azuis.
Sam passou as mãos pelo rosto, suspirando pesadamente.
– Terminei. – A senhora comunicou, sendo ajudada a levantar-se.
Sam a deixou em seu leito e olhou mais três quartos parecidos com aquele, mas nada de Theo. Resolveu ir ao andar superior, havia um grande corredor largo, de ponta a ponta, mas as portas eram todas de salas funcionais ou administrativas. Praticamente corria por aquele corredor quando percebeu através da janela uma movimentação do lado de fora, no pátio ao lado. De um carro preto com o fundo amassado saiam dois homens, um branco e um negro, e olhavam na direção do prédio.
– Merd*, merd*. – Sam desesperava-se, agora havia concorrência na caçada à Theo.
Voltou a correr pelo corredor, quando avistou uma porta com a imagem de dois anjos azuis de papel.
– Anjos azuis. – Sorriu.
Entrou num pequeno quarto, com quatro camas, na última Theo estava deitada, mas com os olhos abertos.
– Sam?
– Shhhh. – Sam se aproximou, cobrindo sua boca. – Te achei, finalmente te achei. – Dizia com um sorriso bobo.
– Você está bem?
– Não faça barulho, precisamos sair o mais rápido, aqueles caras estão aqui também. – Sam sussurrava.
– Pelos fundos, vamos pelos fundos, eu entrei por lá.
– Sim, o carro está lá. Vem.
– Carro?
– Vamos. – Sam pegou sua mão e conduziu pelo corredor, na direção das escadas.
Assim que desembocaram nas escadas, uma enfermeira vinha subindo, carregando uma pilha de lençóis, assustou-se e atirou a pilha para o lado, saindo correndo, esbarrando nos dois homens que haviam deixado o carro preto, os derrubando no chão.
Elas aproveitaram a confusão para fugir na direção da porta dos fundos, Sam corria arrastando Theo pela mão. Após saírem do prédio, praticamente pularam na viatura que Sam estava usando como meio de transporte, e saíram aceleradas, sem rumo.
– Estão nos seguindo? – Theo perguntou, ainda ofegante.
– Sim, estão se aproximando.
– E agora?
Sam hesitou em silêncio.
– Agora você vai segurar o volante enquanto eu atiro.
Sam projetou-se para fora da janela, e atirou na direção do carro que as seguia. Alguns tiros acertaram a lataria e o para-brisas, mas eles seguiam firme na sua cola, até resolverem atirar também.
O motorista do carro de trás também colocou a cabeça para fora, e começou a disparar, Sam atirou na direção dele, algum tiro provavelmente o acertou, porque o carro perdeu a direção e saiu da estrada, rodopiando.
– porr*! Filho da mãe! – Sam bradou, comemorando o sucesso da fuga.
– O que aconteceu?
– Ficaram para trás.
Theo suspirou aliviada, jogando a cabeça para trás.
– Que insistentes! Espero que eu tenha acertado esse desgraçado.
– Tomara que tenha acertado os dois.
– Você os conhece? Eles te levaram com eles.
– Não faço ideia de quem sejam. – Theo respondeu.
– Eles queriam você.
– Só não sei porque, nem a mando de quem.
– Elias?
– Talvez.
– O que importa é que estamos na estrada de novo, eu e você, vivas e inteiras. Você está inteira? Tinha sangue no carro.
– Bati o nariz no vidro do carro, era tanto sangue que parecia uma hemorragia sem fim. E você?
– Nada demais, um corte na testa, mas apaguei, por isso acordei no hospital.
– Você estava num hospital? Fugiu de lá?
– Fugi.
– Que carro é esse?
Sam ligou as sirenes rapidamente.
– Reconheceu? – Ela disse com um meio sorriso.
– Uma viatura? Você roubou uma viatura policial?
– Não vamos falar sobre isso agora. Mas temos que achar outro carro, esse chama a atenção.
– E o seu?
– Já era. Mas estamos indo para lá agora, ver se ainda está no mesmo lugar.
– Meu Deus, meu coração ainda está disparado, que noite… – Theo resmungou.
– Nem me fale. Mas estamos bem, isso que importa. E livres.
Ficaram em silêncio por um instante, até Theo perguntar.
– Por que você não seguiu viagem?
– Sem você?
– É.
Sam pensou por um instante, e riu.
– Por que está rindo?
– Eu não pensei nisso.
– Sério?
– Sério, isso não passou pela minha cabeça em nenhum momento. Na verdade quando acordei no hospital a primeira coisa que pensei foi em te resgatar, mesmo antes de pensar em como fugir dali.
Theo apenas assimilou em silêncio. Chegaram ao local do acidente, e Sam pode ver seu carro prateado ainda amassado em contato com a árvore, que praticamente destruiu a frente dele.
– Eu vou descer, você fica aqui em cima, é um barranco íngreme e alto.
– Eu posso ajudar.
– Não.
Sam começou a descer aos pulos, e Theo descia logo atrás, aos pulos e tropeços.
– Que coisa! Ok, me dê a mão.
– E então, nossas coisas estão aí?
– Por incrível que pareça sim, mas uma grande bagunça. – Sam olhava pela janela. – Já que quis descer, vai me ajudar a subir carregando as coisas.
– Me dê.
Subiram devagar levando o que conseguiram pegar do carro, ainda desceram e subiram mais duas vezes para pegar mais coisas.
– Eu falei que poderia ajudar. – Theo falou ao final do resgate dos pertences, enxugando o suor na testa.
Sam a fitou com ares satisfeitos e aliviada, observou suas mãos e joelhos sujos de terra dos tropeços no barranco.
– Tome, encontrei lá dentro, no fundo do carro. – Sam colocou o boné na cabeça de Theo.
– Meu boné! – Vibrou, colocando as mãos na cabeça, se certificando que era seu boné.
– Agora sim poderemos seguir viagem.
Theo abriu um sorriso, estendeu a mão a frente, a procurando, quando a encontrou lhe deu um abraço.
– Obrigada por me resgatar. – Falou enquanto a abraçava, Sam correspondeu ao abraço e ao sorriso, e lhe abraçou ainda de forma mais calorosa.
– Eu não me importo de seguir sozinha, mas prefiro seguir com você. – Ela disse, quando soltou-se.
Entraram no carro e Sam programou para irem até o próximo vilarejo, onde tentariam conseguir outro carro.
– Theo, como você sabia que era eu no quarto?
– Pelo seu cheiro.
– Bom ou ruim?
– Bom, claro.
Sam deu um sorriso torto. E seguiram dissertando sobre a noite agitada que tiveram.
***
– Não me orgulho nem um pouco do que acabamos de fazer. – Sam dirigia agora uma caminhonete azul metálica, recém roubada.
– Questão de sobrevivência, oficial. – Theo respondeu, mexendo e descobrindo o painel a sua frente.
– Tiramos o bem de uma pessoa honesta, que havia adquirido este carro com seu esforço.
– Relaxa, tem seguro. Lembrou de remover o rastreador?
– Tirei. – Sam olhava o relógio no painel. – O dia vai nascer dentro de uma hora, mas eu preciso descansar antes de continuar viagem.
– Vamos parar em algum lugar abandonado, durma um pouco. Dormiu alguma coisa no hospital?
– Dormi, me entupiram de remédios. Você dormiu naquele lugar?
– Nada. Estava apavorada demais com a possibilidade daqueles homens irem atrás de mim, e eu nem teria como vê-los ou tentar fugir.
– Você precisa trocar essa camisa, parece que você vomitou um balde de sangue. – Sam a olhou demoradamente.
– Foi o nariz.
– Eu sei.
Após um instante de silêncio e reflexão, Sam voltou a falar.
– Deve ser péssimo não saber o que está acontecendo ao seu redor, não? A possibilidade de ter alguém pronto para lhe fazer mal ao seu lado, e você nem faz ideia do que está acontecendo.
– É como aquela sensação de ter um monstro embaixo da sua cama, só que o tempo todo. Essa tensão só passa quando durmo.
– Mas eu estou sempre na sua retaguarda, isso não alivia um pouco?
– Bastante. Saber que você está do meu lado é reconfortante. Principalmente quando você me conduz pela mão, eu tenho a certeza física que você está por perto.
– Certeza física… – Sam repetiu, rindo.
***
Três dias depois, estavam entrando na última noite antes de chegar ao destino, em Honduras. Escolheram uma cidade movimentada para pernoitar, havia lixo pelas calçadas, pessoas pedindo esmolas sentadas e recostadas nas paredes dos prédios mal conservados, era mais uma das tantas cidades miseráveis da Nova Capital e as pessoas nas ruas não pareciam amigáveis.
– O que era aqui? – Theo perguntou, enquanto ajudava a tirar algumas coisas do carro e subia as escadas para um mezanino.
– Não sei exatamente, lá embaixo parece ter sido uma praça de alimentação, ou grande restaurante. Talvez a parte da frente tenha sido um cinema, mas está sem telhado, não me arriscarei a entrar lá.
– E aqui em cima?
– Tem algumas mesas vermelhas retorcidas, parece que uma montanha russa vermelha explodiu nesse espaço. Tem janelas pequenas mas que permitem entrar uma boa claridade. Não é bom ficarmos nas partes escuras, aqui em cima é mais seguro. E está mais limpo também, consigo ver o piso bege que forma desenhos geométricos estranhos. Queria saber quem escolhe esse tipo de piso, deve ser alguém com problemas.
– O que seria de mim sem suas descrições altamente elaboradas?
– Ok, termine de arrumar a cama que vou instalar o chuveiro quebra galho.
– Não quero tomar banho, tá frio. Como pode fazer tanto calor de dia e esse frio à noite?
– Não vou dormir ao lado de quem não toma banho, prepare sua cama lá fora, no carro.
Theo suspirou, pensativa.
– Você sempre tem bons argumentos, onde está a toalha?
***
A madrugada seguia silenciosa e comum, como tantas outras passadas em lugares vazios e sombrios como aquele, Theo acordou com um barulho que vinha de dentro do prédio, sentou-se assustada.
– Sam! Acorde! – Sussurrou, mexendo no ombro dela.
– Que foi? – Sam virou-se para ela.
– Tem alguém aqui, eu ouvi barulho de passos.
– Tem certeza? Não foi sonho?
– Acordei com o barulho, depois ouvi de novo.
Sam pegou a arma embaixo do travesseiro e coçou os olhos, olhou ao redor e não viu nada. O barulho pode ser ouvido de novo.
– Ouviu? – Theo perguntou, apreensiva.
– Ouvi, acho que é lá embaixo.
– Se ficarmos em silêncio quem sabe ele vá embora.
– Não, eu vou descer para verificar, se tiver alguém vou colocar para correr.
– Não vá, ele pode estar armado, ou pode ser mais de uma pessoa.
– Theo, como vamos dormir sabendo que tem gente nos rondando? Vou resolver isso, fique aqui em silêncio.
Enquanto Sam descia as escadas cautelosamente, Theo permaneceu sentada no colchão que estava num dos cantos do mezanino, subiu o zíper do seu casaco de moletom azul, com frio.
Sam chegou no pé da escadaria e não viu nada anormal, andou entre as cadeiras quebradas e outros entulhos irreconhecíveis, olhava em todas as direções e nada. Pensou na possibilidade de ser algum animal, ou o vento, mas resolveu ir até a parte da frente, onde o teto havia despencado por completo.
Andava de forma atenta entre os blocos de concreto, continuava sem enxergar ou ouvir qualquer coisa suspeita, quando pode ouvir um som abafado vindo do mezanino.
– Sam! – Era um grito abafado e aterrorizado de Theo.
Saiu correndo na direção das escadas, contornando e pulando os entulhos aos tropeços, subiu e deu de cara com um homem corpulento sobre Theo, ele cobria sua boca enquanto ela esperneava e tentava soltar-se. Ele estava com os joelhos ao lado de suas pernas, a calça já aberta, e um filete de sangue no nariz denunciava que Theo conseguira acertá-lo algumas vezes.
– Meu dia de sorte! – O elemento falou num sorriso malicioso, ao olhar para trás e ver a presença de Sam. Era um sem-teto com roupas imundas e cabelos grisalhos desgrenhados.
– Levante-se! – Ela ordenou, apontando a arma. Theo saiu debaixo dele, deslizou para o canto junto a parede, sentada abraçando as pernas.
Ele abriu ainda mais seu sorriso, expondo os dentes podres e escurecidos, continuava de joelhos no colchão.
– Junte-se à nós, mocinha. – Ele respondeu, abrindo os braços.
– Seu filho da… – Sam o golpeou no rosto com a arma, e com um chute o derrubou.
– Fique de pé! – Sam bradou ao homem, que limpava o sangue do supercílio.
– Eu vou partir você ao meio. – Ele resmungou, levantando-se lentamente.
– Onde estão os outros?
– Não tem outros, eu dou conta de vocês duas.
Sam puxou ar e ergueu sua pistola com as duas mãos.
– Para as escadas.
– Você acha que tenho medo de mulher? – Ele disse, sem se mover.
Sam atirou numa mesa ao lado dele, o fazendo erguer as mãos, assustado.
– Para as escadas.
O homem foi com má vontade para a escadaria larga no centro do mezanino, e desceu lentamente, com Sam em seu encalço.
Theo aguardava ainda encolhida no canto, acuada, tremia violentamente e não fazia ideia do que estava acontecendo lá embaixo.
Dois minutos se passaram e um estampido foi ouvido, segundos depois ouviu-se passos nas escadas.
– Sou eu. – Sam disse, e colocou a mão em seu braço, a assustando.
– Ele foi embora?
– Sim. Você está bem? Você está tremendo.
– Estou.
– Desculpe ter deixado você sozinha, o barulho vinha de baixo, não imaginei que ele subiria pelas minhas costas, foi erro tático meu.
– Não me deixe mais sozinha.
– Não vou deixar, eu prometo. Quer um pouco de água?
Sam lhe entregou uma garrafa, Theo bebeu e desfez a posição defensiva em que estava, saindo do canto.
– E se ele fizer parte de um grupo? E se seus amigos vierem procurá-lo? – Theo conjecturava, tensa.
– Esse tipo de gente não anda em bandos, ninguém suportaria alguém desse tipo. Em todo caso estarei alerta, e não vou te deixar sozinha, aconteça o que acontecer.
– Ok.
– É o risco que corremos dormindo em lugares como esses, já havia me acontecido, antes de encontrar você.
– E como terminou?
– O mesmo fim.
– Mas não te machucaram?
– Não, fui mais rápida. Eu sou atiradora de elite.
– Você atirou na minha mão.
– Porque vocês se moveram, saíram da mira.
Theo apenas assimilou com a cabeça.
– Está mais calma? – Sam perguntou.
– Estou. – Theo se enfiou embaixo da coberta, seu semblante ainda tenso denunciava que não estava nada bem.
– Consegue dormir? Quer alguma coisa?
– Estou bem, é só o frio.
Sam ficou algum tempo sentada ao seu lado, olhando ao redor, com a audição alerta, mas apenas o silêncio as acompanhava agora, por fim adormeceu. Pouco mais de uma hora depois despertou e percebeu que Theo continuava acordada, ela corria os olhos pelo teto, era praticamente o mesmo estado de tensão de uma hora atrás.
A fitou por um instante, e então ordenou.
– Theo, vire para lá.
– O quê?
– Vire para o lado.
– Por quê? Não estou roncando, sequer estou dormindo. – Theo indagou, confusa.
– Você pode fazer o favor de virar para o outro lado?
Mesmo contrariada, Theo virou-se de lado. Assustou-se quando percebeu que Sam deitava-se às suas costas, recostando e encaixando-se de forma cuidadosa. Traspassou o braço à sua frente.
– O que você está fazendo? – Theo perguntou, ainda mais confusa.
– Providenciando calor e certeza física. Agora durma.
Theo colocou sua mão por cima da mão de Sam que a envolvia, e em poucos minutos adormecera. Agora era Sam que tinha problemas para dormir.
Redenção: s.f.: Ato ou efeito de remir; resgate. Libertação, proteção, salvação, socorro.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Ana_Clara
Em: 07/12/2015
Essa Sam consegue ser muito hilária. KKKKK Amarrou a enfermeira e ainda desejou que 'Deus a abençoasse'. O mesmo se deu com o policial. Elas ainda terão muitas provações pela frente, mas eu realmente espero que estejam sempre juntas. A Theo necessita de proteção e ninguém melhor que a Sam para fazer isso. Elas já vivem uma pra outra! Foi fofa a cena da Sam dizendo que não havia pensado em seguir viagem sem a Theo.
Julia Eidrian
Em: 09/09/2015
Uau esse capítulo foi triste e lindo . Sam está começando a ver seus verdadeiros .
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