Capítulo 2 - Inefável
Edvard Grieg – Morning Mood – https://www.youtube.com/watch?v=YbOGq85jS5M
Na manhã seguinte, Sam acordou sobressaltada com o barulho, percebeu que Theo não estava ao seu lado e imediatamente olhou para o palco, de onde vinha o som.
Viu ao longe Theo tocando animadamente o velho piano branco, sentada numa das cadeiras tomadas pela sujeira do local. Saiu correndo na direção dela, subindo os degraus do palco aos tropeços.
- Pare com o barulho! – Sam bradou, colocando a mão espalmada sobre sua mão esquerda enfaixada, assustando Theo.
- Ai! – Theo recolheu as mãos das teclas, esfregando a mão esquerda, próxima ao peito.
- O que você pensa que está fazendo?
- Praticando um pouco, faz tanto tempo que não encosto num piano.
- Você não pode fazer isso, está louca? Vai atrair andarilhos ou policiais!
- E você é procurada pela polícia?
- Não importa, você nos colocou numa situação de risco, entende isso? – Sam permanecia atrás dela.
- O sol já nasceu, vamos partir daqui a pouco, não vejo o risco.
Passado o calor da situação, Sam acalmava-se e pensava com mais sensatez. Ficou ao lado de Theo, que estava ainda sentada na cadeira.
- Machuquei sua mão? – Disse ao pousar a mão em seu ombro.
- Não. Desculpe o susto. – Theo falou quase num murmúrio.
Sam olhou ao redor, viu todo aquele grandioso salão vazio, os panos pomposos e avermelhados e puídos ao redor do palco, por duas semanas vagava solitariamente por aquele continente, dormindo em lugares semelhantes, e nunca havia parado para prestar atenção nestes detalhes. Voltou a olhar para Theo e percebeu que havia exagerado na reação.
- O que você estava tocando? Me é familiar.
- Morning Mood, é um trecho de uma ópera de Edvard Grieg. Ou algo assim, faz tanto tempo que aprendi isso… – Theo ainda segurava sua mão ferida.
- É bonita. – Voltou a colocar a mão em seu ombro. – Se importa de tocar mais um pouco?
- Sam, você está me testando?
- Não, estou falando sério. Essa hora do dia ninguém vai aparecer aqui por causa do som de um piano. Mas se não quiser tocar ou sua mão estiver doendo, tudo bem, vamos recolher as coisas e partir.
Theo voltou a colocar as mãos sobre o teclado, hesitou por um instante, e voltou a tocar a mesma música.
- Minha mãe tocava piano, quando éramos crianças. – Sam disse, enquanto observava Theo tocando, ao seu lado. – Por um momento todo o peso da sua jornada pareceu leve, leve como a consciência de uma criança. Theo apenas sorriu.
Aquele momento onírico foi interrompido pelo bip que vinha do carro.
- Sentinelas. Precisamos ir. – Sam disse, já indo na direção do carro, mas voltou e conduziu Theo pelo braço.
- Que?
- Sentinelas, os robôs policiais, você sabe o que são, não sabe? Aqueles ciclopes de três metros de altura.
- Sim, eu sei, mas como você sabe que tem sentinelas por perto?
- O carro tem radar para isso. – Sam olhou na tela no painel do carro. – Estão se distanciando, mas de qualquer forma não é seguro continuarmos neste lugar.
- Devo entrar no carro?
- Não. Espere. – Sam foi até a traseira do carro, abrindo a porta horizontal. Destampou um galão quadrado com água e chamou Theo.
- O que é?
- Água. Lave as mãos e o rosto aí, ao seu lado tem toalha e escova de dentes, que comprei no posto ontem para você, além de uma máscara, caso entremos em alguma área radioativa. E suas roupas agora enxutas.
- Retiro as considerações negativas que fiz acerca de sua pessoa ontem à noite. – Theo disse, já lavando o rosto.
- Ótimo, pois nem consegui dormir essa noite preocupada com suas considerações negativas. – Sam guardava os últimos objetos no carro.
Theo respingou água do recipiente em Sam, com os dedos.
- Hey! Para quem não enxerga você tem uma boa mira. Entre logo no carro antes que eu resolva te largar aqui.
***
- Bem-vinda à Alberta. – Sam comunicou, enquanto desacelerava o carro, era final da manhã.
- É aqui que ficarei, não é?
- Sim, é um dos territórios mais habitados neste deserto chamado América do Norte. Acharemos algo decente para você ficar.
- Para onde você está indo?
- Ainda não tenho destino final, mas neste momento estou indo para Seattle.
- Seattle fica na zona morta.
- Sim, lá tem o que eu preciso.
Theo tamborilava os dedos na perna, apreensiva. O carro agora andava por avenidas largas cercado por pequenos prédios, a maioria com musgos tomando conta das paredes.
- Você tem algo para fazer aqui? – Theo perguntou.
- Apenas adquirir mantimentos e outras coisas que preciso para seguir viagem, entrarei na zona morta amanhã, e espero chegar à Seattle em três dias.
Theo ficou em silêncio, preparando a pergunta.
- E se… por segurança… eu pudesse te acompanhar até Seattle? Eu ainda estou perto do local de onde fugi, não vou te atrapalhar, nem tocar piano.
- De jeito nenhum. Esse foi o trato, você vai ficar aqui, ok? Já localizei um abrigo há dois quilômetros, vamos ver se este serve, mas antes vou parar num posto.
Theo colocou a mão no bolso da frente de sua calça, e tirou algo reluzente. Buscou a mão de Sam que estava no volante, e despejou uma corrente de ouro, com um pingente em forma de cruz.
- O que é isso? – Sam olhou com estranhamento para aquela corrente em sua mão.
- Meu pagamento. Se eu pagar, você me leva com você?
- Não. – Sam pegou a mão dela e devolveu a joia. – Não tem a ver com pagamento, eu não posso me dar ao luxo de ter uma companhia na viagem.
- Ok… Eu entendo.
- Você vai ficar segura nessa cidade. Entenda, eu não posso perder nenhum tempo, é minha vida que está em jogo e não vou me arriscar.
- Eu entendo.
Poucos minutos depois Sam estacionou num posto de recarga, onde reabasteceu o carro. Enquanto fazia o pagamento dentro do escritório, percebeu pela vidraça dois homens espreitando seu automóvel, de dentro de um carro esportivo.
Colocou a mão sobre a arma, em sua perna, abrindo a tira que a prendia o cabo, e caminhou na direção deles. Poucos passos depois, eles a notaram e saíram em velocidade.
- Haviam dois homens nos observando. – Sam disse, ao entrar no carro.
- Que homens? – Theo perguntou.
- Não sei, nunca os vi antes. O dono do lugar onde você trabalhava, ele seria tão insistente assim? Mandando alguém para outro estado atrás de você?
- Não sei… Elias poderia sim, ser capaz disso, mas não sei até onde ele buscaria.
- Bom, talvez não seja nada nem ninguém, talvez eu esteja ficando paranoica.
Sam consultou o navegador no painel e guiou até uma construção de médio porte, envelhecida, cheia de pequenas janelas, com uma placa na frente que dizia apenas “Recepção”.
- Chegamos.
Sam carregou uma Theo cabisbaixa pelo braço, para dentro deste estabelecimento com ares de decadência e aparência desleixada.
- Sente-se aqui, vou falar com a recepcionista, depois você entra. – Sam disse, a sentando numa cadeira onde havia mais algumas ao redor.
- Ok…
- Qual seu nome? – A moça com um coque no alto da cabeça atendeu Sam no balcão.
- Ãhn, não, é para ela. – Sam disse, apontando para trás. – O nome dela é Mary, Mary Smith.
- Que nome comum, não? Preencha o restante da ficha, por gentileza.
Após devolver a ficha parcialmente preenchida, em sua maior parte com dados falsos, a atendente virou-se.
- Ela já pode entrar? – Sam perguntou.
- Ainda não, vão chamá-la em uns dez minutos. Você também pode entrar para conversar com ele, se quiser.
Theo e Sam permaneciam em silêncio, lado a lado, sentadas esperando o chamado, que ocorreu vinte minutos depois, vinte minutos longos e silenciosos.
- Boa tarde, boa tarde! – Um senhor apareceu sorridente na sala em que elas haviam entrado. – O que me trouxeste, minha jovem?
- A cegaram.
- Hum, então vou chamar um colega meu, mais entendido nestes casos, só um instante. – E saiu da sala.
- O que achou do lugar? – Theo rompeu o silêncio, mas sem muita animação.
- É mais limpo do que parece por fora. Está com medo? – Sam estava de pé, atrás de Theo que estava sentada numa cadeira giratória.
Theo apenas balançou a cabeça, em negativo.
- Não precisa ter medo, ele vai apenas examinar seus olhos.
- Por quê?
- Aqui é uma clínica, o médico vai te examinar.
Theo franziu as sobrancelhas.
- E depois vamos para o abrigo?
- Não, não vamos para abrigo.
- Não?
- Theo, você vai seguir viagem comigo.
- Vou? – Theo falhava em conter sua felicidade com a notícia.
- Vai sim. – Sam disse pousando a mão em seu ombro. – É mais seguro.
- Até Seattle?
- Sim, mas isso é negociável, depois conversamos, ok?
- Obrigada. – Theo se esforçava para não abrir um sorriso, colocando sua mão sobre a dela em seu ombro.
O outro médico adentrou a sala branca, um homem baixinho, magro, com uma leve curvatura.
- Como conseguiu isso? Algum acidente? – Ele questionou, a colocando sentada no meio da maca alta.
- Não, injetaram algo em mim, não sei o que foi.
- E você está com a faixa por causa da luz, certo?
- Sim.
- Ok, vou apagar a luz principal, deixar apenas a auxiliar ligada.
Ele apagou a luz ficando apenas uma fonte de luz mais fraca, logo acima da maca. Sam havia sentado numa mesa que estava encostada na parede, e acompanhava atentamente, de braços cruzados.
- Vou tirar a faixa, depois colocamos outra. Há quanto tempo aconteceu?
- Umas duas semanas.
Ao tirar a faixa, Theo piscou com força e abriu os olhos. Sam descruzou os braços, e se aproximou dela, a fitando com certo espanto.
- Belos olhos, mocinha. – O médico disse.
- Seus olhos sempre foram dessa cor? – Sam perguntou.
- Depende, que cor estão? – Ela perguntou, preocupada.
- Azuis.
- Então não mudaram.
O médico corria sua pequena lanterna de um olho para o outro, a examinando de perto.
Sam ainda a fitava boquiaberta, não era um azul comum, era um dos azuis mais impressionantes que ela já havia visto na sua vida, azul elétrico.
- Eles devem ter injetado Avastin. Foi diretamente no globo?
- Sim.
- Quanto?
- Não sei, não consegui ver, me sedaram.
- É reversível? – Sam questionou.
- Depende da quantidade injetada. Se foi uma grande quantidade, o nervo óptico sofreu dano irreparável.
- O que o Sr. sugere que façamos?
- Procurem algum bom hospital de olhos na Nova Capital, um especialista precisa examinar, e você teria que fazer exames específicos para ter um melhor diagnóstico, talvez um transplante seja cogitado, ou tentar algo com nanobots.
- Certo…
- A fotofobia irá diminuir, você já deve estar com menos sensibilidade agora. Daqui alguns dias um óculos de sol resolverá. Bom, vou colocar novamente uma faixa e liberar você.
***
- Para Seattle então? – Sam disse, ao ligar o carro.
- Para Seattle!
Sam a olhou rapidamente, sentia-se bem pela decisão que tomara, mesmo sabendo que talvez essa atitude a tomasse tempo adicional em sua caçada. Estava disfrutando uma inusitada companhia naquela jornada que era solitária e pesada até então.
Seu pai, um militar reformado, cortara comunicação com ela após saber que havia desertado do tão respeitado exército europeu. Sua mãe havia ido morar no interior da França após a separação, quando Sam tinha onze anos. Lá vivia com seu novo marido e duas crianças, gêmeas. Só havia lhe restado sua irmã Lindsay, três anos mais velha, com três filhos e dois empregos, moravam ao lado do pai, numa cidadezinha chamada Sevenoaks, no interior de Kent, na Inglaterra.
Ela mantinha também contato esporádico com Mike, seu noivo, militar de patente mais alta que ela, major do 14º pelotão, onde ambos defendiam o exército europeu. Eles lutavam em nome dos interesses da grande nação Europa na Velha América, uma terra de ninguém, um lugar agora desolado e que travava batalhas territoriais mais ao norte, onde a radioatividade já obtinha níveis humanamente aceitáveis, a fortaleza de onde Sam havia fugido duas semanas antes.
O ano em que a primeira explosão nuclear aconteceu, 2034, foi o marco do início de uma batalha megalomaníaca de nível mundial. De um lado os Estados Unidos uniram-se aos países da Europa ocidental, sendo a Inglaterra e a Alemanha as principais alianças na invasão aos países do Oriente Médio, que ameaçavam uma represália.
Na noite do dia 1º de novembro de 2034 um ataque às possíveis localidades com armas de aniquilação em massa na Coreia do Norte trouxe o contra-ataque oriental quase imediato. Os americanos foram pegos de surpresa, a China lançou uma bomba de pulso eletromagnético, causando um blackout na comunicação na América do Norte. A potência mundial havia voltado à idade média.
Com o caos instaurado, dois dias depois iniciaram os ataques in loco, a América assistia bombas despencando do céu como uma chuva da morte. A barbárie durou duas semanas, o suficiente para aniquilar o país e fazê-los render-se.
Uma nova geografia surgia, os pilares da história haviam sido derrubados, mas outros haveriam de se erguer, com novos nomes e o poder mudando de mãos. A união dos países do velho continente e do seu povo, fez com que a Europa assumisse papel de destaque na derrocada do império oriental. A Europa havia sido subestimada neste embate, e agora, com forte auxílio da igreja católica, o conglomerado tomava as rédeas do mapa mundi.
Um novo governo, global e abrangente, formado principalmente por lideranças inglesas, alemãs e do Vaticano, conquistava novos territórios para seu domínio, países do norte da África e do oeste da Ásia agora pertenciam à Grande Europa.
Mas enganou-se quem apostava no sepultamento do país do Tio Sam, quatro anos depois dos ataques fulminantes, a nação que sempre teve fama de orgulhosa se reerguia como a fênix americana, agora na América Latina, onde não havia radioatividade.
A resistência dos países latinos ao serem ocupados foi recuando à medida que o novo governo americano dava o vislumbre de se tornarem a grande potência mundial, lado a lado com eles. Aos poucos a americanização tomava conta dos principais países latinos, que escolheu o Brasil como sede do novo governo da agora chamada Nova Capital, a pretensiosa nova nação do novo continente.
Não demorou muito para que uma nova Estátua da Liberdade fosse erguida próxima ao Cristo Redentor, simbolizando a união dos dois povos, que funcionava apenas na poética teoria.
Após uma década de invasão e doutrinação ianque, a situação parecia fora de controle, a população se revoltava com mais ardor com os passar dos dias. Não apenas os nativos, os americanos migrantes também estavam descontentes com as condições enfrentadas, e os levantes se tornavam cada vez mais fortes e organizados.
O governo se tornava cada vez mais opressor e rebatia de forma truculenta à manifestação pública, ora com violência, ora com privação de direitos básicos, como a liberdade de expressão, que atiçava ainda mais o descontentamento do povo, beirando uma guerra civil.
Curiosamente um surto de ebola surgiu no interior da Amazônia, trazendo pânico à toda população. Nascera assim a oportunidade perfeita para o governo lançar-se como estado salvador e preocupado com o bem-estar do seu povo. Rapidamente o governo montou uma megaestrutura, uma ação incrivelmente abrangente que percorreu por todo o território, das capitais aos povoados inóspitos. Em poucos dias quase todos os habitantes foram vacinados e a temível doença foi erradicada.
Ainda de forma mais curiosa, observou-se uma crescente aprovação do governo e de sua atitude que se mantinha opressora. Os grupos militantes nacionalistas, que pediam a debandada do governo americano, foram se tornando cada vez mais brandos e permissivos, a voz uníssona de desagrado foi se dissipando, como uma chama minguante. E a chama nunca voltaria a se reacender.
Em 2121, oitenta anos depois, o governo tinha pouco trabalho em conter os pequenos grupos rebeldes, os míseros habitantes descontentes da Nova Capital eram tratados como marginais da sociedade, relegados pela própria população, que apesar de viver em situação de precariedade e pobreza, estavam contentes com o grande pai da nação, como carinhosamente chamavam o governo continental. O inglês era a língua oficial, a desigualdade social era nada menor que sórdido, e a maior parte da população vivia em péssimas condições, em sua maioria os nativamente latinos. Os que levantavam sua voz bradando por mudanças, sumiam em circunstâncias desconhecidas.
Muitos dos militantes levavam uma vida dupla, escondiam sua ideologia anti opressão dos olhos da sociedade, mas movimentavam-se como sombras no submundo revolucionário, sonhavam em depor o atual governo, trazendo um governo multipolítico, com governantes originários da América Latina.
***
- Quando entraremos na Zona Morta? – Theo perguntou, ajudando Sam a tirar do carro o que necessitariam para passar a noite naquele centro comercial abandonado.
- Amanhã à noite. Theo, você derrubou roupas limpas no chão, que não está nada limpo.
- Desculpe, não vi.
- Imaginei. Sente ali no colchão, me deixe terminar de arrumar, já ajudou bastante por hoje.
- Esse foi o lugar mais quente que você achou? Tá bem frio aqui.
- Cobertores. – Sam disse, erguendo um monte de cobertores dobrados, então rapidamente lembrou que ela não enxergaria aquilo. – Tome.
Theo sentou no colchão e Sam jogou a pilha nela.
- Hey!
- Arrume a cama.
Theo terminou de ajeitar toda a roupa de cama, enquanto Sam preparava o reservatório d’água e algo para comerem naquela noite fria. Correu as mãos pelas cobertas e resolveu tirar a faixa dos olhos.
- Vai tirar? – Sam viu e questionou.
- Aqui está mal iluminado, não vai doer.
- Ok, evite olhar na direção do refletor no carro.
Theo tirou a venda e coçou os olhos, novamente Sam tivera sua atenção voltada à Theo e seus olhos cristalinos. Haviam passado toda a tarde e noite na estrada, conversando de forma descontraída. Sam havia lhe pregado uma peça quando pararam no banheiro de uma lanchonete, trancando a porta pelo lado de fora, com Theo dentro. Por dois minutos.
- Seus pais também tinham olhos azuis, como os seus?
- Meu pai.
- Seus olhos são tão… Não consigo achar uma palavra para defini-los.
- Inefável.
- O que?
- Inefável é aquilo que não pode ser descrito em palavras.
- Que seja inefável então, até o dia em que eu encontrar uma palavra perfeita. Você não enxerga nada, nada mesmo? – Sam perguntou, depois de lavar o rosto no fundo do carro.
- Não.
- Nem vultos?
- Só sei quando está claro ou escuro.
Sam terminou de lavar as mãos e foi na direção do colchão, agachou-se ao seu lado e moveu sua mão aberta em frente aos olhos de Theo várias vezes.
- Você está armando alguma coisa.
- Como assim?
- Eu sei que você está do meu lado. Você vai me sacanear.
- Eu não faria isso. – Sam riu.
- Eu vi o que você fez hoje naquele banheiro.
- A porta trancou misteriosamente. – Sam disse, dando um peteleco na orelha dela, pelo outro lado.
- Ai! Quantos anos você tem?! Doze?!
- Quantos anos você acha que tenho?
– Não sei. Quantos anos você teria se você não soubesse quantos anos tem?
Sam ficou pensativa por alguns segundos.
– Que raios de pergunta é essa? – Sam respondeu, intrigada.
– E então?
– Às vezes acho que tenho quinze, pela quantidade de situações e coisas que nunca vi nem vivi. Mas também me sinto com cinquenta quando lembro de tudo que fiz e presenciei nos últimos anos. – Devaneou.
– Devo fazer uma média então?
– Tenho 23. – Sam disse.
- Sério?
- Sim, por quê? Achava que eu tinha quanto?
- Doze. Não sei.
- Você tem quanto? – Sam levantou-se para fechar o carro.
- Eu também tenho 23. Sou de fevereiro, e você?
- Agosto.
- Eu sou mais velha que você. – Theo disse, deitando-se.
- Ok, hora de apagar.
- Você tem algum casaco sobrando? – Theo disse, ainda sentada na cama.
- Você realmente está com frio, hein? Vou procurar alguma coisa aqui. – Lançou um casaco verde musgo para Theo.
- Obrigada.
- Use por baixo do casaco que você já está usando.
- Por que?
- Porque estou mandando.
Theo manuseou o casaco, passando os dedos por cima dos bordados e brasões.
- É um casaco militar. Do exército da Europa?
- É sim. – Sam disse, deitando-se ao seu lado. – Vista e durma.
- É por isso que você está fugindo? Você matou um soldado?
- Não.
- Mas é um casaco de algum soldado morto?
- Ainda não. O casaco é meu.
Theo ergueu as sobrancelhas.
- Você é uma militar que fugiu do exército?
- Não gosto deste termo, o termo legal e que me colocaria na cadeia por alguns anos é deserção.
Theo terminava de vestir o outro casaco, as mãos tremiam de frio, principalmente a mão ferida. Sam a auxiliou a fechar os botões.
- Você já lidou com alguém cego antes? – Theo perguntou, e se enfiou nas cobertas.
- Não. Estou me saindo bem?
- Não tenho do que reclamar.
- Preciso criar o hábito de te avisar dos degraus e obstáculos no chão.
Theo ficou em silêncio por um instante.
- Por que você fugiu do exército? Aprontou algo?
Sam virou-se para cima, puxando os cobertores. Uma confidente. Era isso que Sam projetava em Theo, e era ainda mais fácil visualizá-la desta forma pois estaria isenta de julgamentos visuais. O simples fato de poder falar e ser ouvida diminuiria seu fardo, ela não tinha dúvidas disso. Mas ainda faltava um detalhe deveras importante: ela poderia confiar nesta estranha, que talvez estivesse contando mentiras desde o início? A solução – analisava a situação – seria contar partes soltas, para que sua confidente não conseguisse encaixar a real situação.
- Eu estou numa busca, fizeram algo comigo no exército, um experimento…
- Que tipo de experimento? – Theo interrompeu.
- Médico. Eu sou agora o que batizaram de Borg, substituíram meu coração por um artificial, além de outros detalhes que não vem ao caso.
- Por que fizeram isso? Fazem testes com humanos?
- Eu morri uma vez. – Sam deu um sorriso torto. – Então trocaram meu coração.
- Morreu? Como assim? Fazem esse tipo de coisas no exército?
- Fazem tantos experimentos lá… Você não conseguiria mais dormir se soubesse.
Sam analisava se havia se exposto demais até então. Mas o que uma garota fugitiva cega poderia fazer com estas informações? Denunciar o exército europeu? Estaria lhe fazendo um favor.
- Seu coração não é de verdade.
- Não, não é.
Theo riu antes de perguntar.
- Mas ele ainda dói por amor?
Sam também riu.
- Ainda não testei.
- Como você morreu?
- Numa batalha no Alasca, nosso pelotão sofreu uma emboscada, uma granada explodiu próximo de mim, fui atingida e acabei perdendo sangue demais. Fim.
- E como foi morrer?
- Não lembro de nada. Acordei no dia seguinte com fios saindo de dentro de mim.
- E quando descobriu o que fizeram, você fugiu? – Theo fazia seu interrogatório, interessada.
Sam deu um pesado e longo suspiro antes de responder.
- Eu fugi quando descobri que meu coração se desligará no dia treze de fevereiro.
- Desse ano? – Theo perguntou assustada.
- Desse ano, daqui seis semanas.
O semblante de Theo passou para um misto de transtorno e espanto. Ainda assimilava a informação.
- Mas… Não… Você não pode… Seis semanas?
- Também não quero que isso aconteça, essa é minha busca.
Theo voltou a ficar introspectiva.
- Te assustei? – Sam perguntou.
- Eu vou te ajudar nessa busca, seja ela qual for.
- Você não enxerga.
- O que que tem? Estou em estado vegetativo por acaso?
- Não me atrase, não me irrite, ajude a arrumar a cama e me faça companhia. Já estará de bom tamanho.
- Algo mais, oficial?
- Durma.
Sam alcançou seu comunicador ao lado do colchão, e enviou uma mensagem para sua irmã, do outro lado do oceano.
“Lembra da garota que salvei? Decidi levá-la comigo.”
“Com qual objetivo?” Lindsay prontamente respondeu.
“Companhia.”
“Não me parece uma boa ideia, mas depois conversamos sobre isso, tenho que colocar as crianças na cama.”
– O que você está fazendo? – Theo perguntou.
– Durma, garota.
Inefável: adj. Que não se pode descrever por palavras. Que não pode ser nomeado, designado ou descrito devido à sua complexidade natural, intensidade ou beleza; indescritível.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Alessandra Nascimento
Em: 02/02/2024
Amei a história, já muitos livros mas esse enredo é intrigante.
Parabéns!!!
viiihellen
Em: 04/11/2015
Adoro palavras novas!!! :) A Sam tá ficando mais mole!!
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Julia Eidrian
Em: 09/09/2015
Vivendo e aprendendo . Palavras novas , gostei .
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Sem cadastro
Em: 06/09/2015
Continuo amando sua estória! Estou apaixonada rsrssr
Você arrasa!
Beeijoos
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