“Abrir mão de uma coisa preciosa não precisa perder; você passa pra frente algo que vale a pena”.
(MitchAlbom)
Capitulo 33 - Fernanda
Embora fosse de conhecimento geral que quando as coisas estão boas demais, o tempo passa muito rápido, eu nunca havia realmente passado por isso na prática. As férias estavam acabando e logo retornaríamos para o segundo e último semestre da escola, para logo depois Rafaela ir embora de Santa Quitéria para fazer faculdade. Eu sabia que era o sonho dela e estava mais do que feliz, mas uma parte de mim estava completamente arrasada por termos que ficar longe uma da outra. E agora, justamente que eu queria que o tempo não passasse, ele havia criado o mau hábito de correr.
Como se eu não tivesse sequer percebido os dias passando, já era nosso último fim de semana antes do retorno para as aulas: era uma sexta muito quente, portanto, decidimos todos aproveitar a praia antes de, como dizia Mathieu, pegar no batente. Julia e eu estávamos sentadas na areia, com latas de refrigerante ao nosso lado enquanto Mat e Rafaela estavam no mar arriscando surfar — sim, Rafaela também gostava de surfar, mas apenas por hobbie. Minha cunhada estava estirada curtindo a luz solar, enquanto eu suspirava e me punha a tentar afastar todas as paranoias que estavam insistindo em me consumir cada vez que não havia nada para me distrair.
Eu conhecia pouquíssimos casais que sobreviviam a uma distância longa por muito tempo: eu não teria dinheiro para ficar indo para São Paulo o tempo todo e eu duvidava que o pai de Rafaela estivesse disposto a bancar além do que já estava bancando — coisa que, por sinal, foi um choque geral. Engoli em seco ao perceber que talvez nossa relação não sobrevivesse após a escola, afinal de contas, amor não era tudo. Olhei para Rafaela sorrindo enquanto estava no mar com seu melhor amigo e meu coração apertou: eu nunca poderia pedir que ela desistisse de seu futuro para ficar comigo, mas a perspectiva de brevemente não tê-la mais por perto me dava um imenso nó na garganta.
— Está tudo bem? — a voz de Julia chegou aos meus ouvidos, enquanto ela me olhava com uma das sobrancelhas erguida.
— Ah... — eu lhe encarei, sorrindo constrangida. — Está sim, só estava distraída, olhando os dois no mar.
— Ah é... — Julia concordou, sorrindo carinhosamente. — É incrível como eles se completam em tudo o que fazem, não é? Como Yin e Yang.
Dei risada, comentando em seguida:
— Rafaela diz que eu sou o amor da vida dela, mas o Mat é a sua alma gêmea.
— Ele diz a mesma coisa. Eu acho muito linda a amizade deles, sempre se complementaram tanto, que quando eles eram mais novos, todo mundo dizia que eles iam casar quando crescessem.
Ambas rimos, pelo motivo óbvio.
— É, acho que isso não saiu como todos esperaram.
Era nítido que meu tom não estava normal com todas as preocupações que me afligiam e eu não conseguia disfarçar. Eu era expert nisso há alguns meses, afinal, havia conseguido esconder meu passado escandaloso de todas as pessoas de Santa Quitéria por muito tempo: mas estar com Rafaela havia aflorado todos os meus sentimentos de tal forma, que agora não ser transparente com o que eu sentia era algo extremamente penoso e eu quase sempre falhava.
— Você está preocupada, não é? Com a faculdade dela. — Julia disse astutamente.
Encolhi os ombros, optando por dizer a verdade.
— Não posso mentir... Estou extremamente angustiada. São Paulo não é exatamente o lugar mais perto do mundo. Nem todo namoro sobrevive à distância.
— Eu te entendo... — ela disse, pensativa. — Mas vocês ainda vão poder se ver, você tem medo de conhecerem outras pessoas, traição, algo assim?
— Se a Rafaela me ama como eu acho que ama, traição não é o problema... — respondi com simplicidade. — Mas distância desgasta, ciúme pode acabar aparecendo, fora a saudade imensa que vou sentir dela... — minha voz falhou um pouco, porque de repente eu sentia uma bola de tênis na garganta.
— Você já conversou com ela sobre isso, Fer?
— Como eu poderia, Julia?! — perguntei, exasperada. — Ela está imensamente feliz por poder estudar, é o sonho da vida da Rafa, como eu posso jogar a real assim? Ela vai se preocupar, ela vai querer consertar, vai que ela decide abandonar essa oportunidade por minha causa? Eu nunca iria me perdoar, mesmo que eu não queira ficar longe dela.
Embora toda essa agonia estivesse sufocante, eu não via como falar a respeito disso com Rafaela sem provocar uma dor enorme nela. Além disso, ainda faltavam seis meses, certo? Seis meses que poderíamos muito bem aproveitar juntas sem a percepção dela de que eu estava sofrendo por antecipação. Se eu contasse, passaríamos aqueles meses com a perspectiva da separação pairando em nossas cabeças, talvez sem conseguirmos ser felizes como deveríamos. Será que eu conseguiria segurar essa ansiedade e preocupação? Eu via minha namorada sorrir o tempo inteiro agora. Não queria ser o motivo para que aquele semblante sisudo e preocupado retornasse.
— Você jura que a Rafaela não vai perceber que você tá esquisita, né? — Julia desdenhou. — Fora que ela não é idiota, com certeza isso passou pela cabeça dela. Vocês namoram, precisam resolver isso. Juntas.
— Tá, tudo bem. — concedi de má vontade. — Mas por enquanto eu não quero falar sobre, ainda temos que terminar a escola. Deixa as coisas acalmarem, ela ainda está eufórica, vou deixar a Rafaela curtir o momento dela.
Minha cunhada limitou-se a revirar os olhos.
⸎
— Como assim uma nova luta? — Julia perguntou rindo. — Já foi declarado o empate.
Nós estávamos na sorveteria, todos queimados de sol e com aquela sensação na pele grudenta pós-praia. Rafaela estava completamente absorta em devorar a taça enorme de sorvete que havia pedido, enquanto Mat tentava explicar para Julia e para mim o que estava querendo dizer:
— Sim. — ele disse, parecendo quase alucinado. — Nós dois somos considerados os dois melhores lutadores da competição, por uma adversidade acabamos não decidindo a luta, nós só queremos decidir.
— Já foi decidido. — teimou a namorada, sem deixar de rir de sua expressão empolgada. — Foi declarado empate, vocês dois ganharam.
— Não é um bom resultado para nós, queremos saber quem ganharia essa luta, afinal de contas. — contestou ele, fazendo Rafaela rir e comentar, bem humorada:
— Eu estou ótima com as coisas como estão: recebi toda a glória e ganhei meia bolsa pra faculdade, isso é coisa do Mathieu. — ela suspirou e depois acrescentou, lançando um olhar zombeteiro ao melhor amigo. — Mas eu adoro lutar e vai ser divertido dar mais uma surra no Mat.
— HÁ! — ele exclamou, fazendo uma careta em seguida. — Veremos.
— Certo. — concordei, dando uma colherada no meu sorvete, perguntando ironicamente. — E vocês querem que eu e Julia façamos algum desempenho como animadoras de torcida?
— Você que sabe, mas por mim poderia ser só lá no meu quarto. — Rafaela riu, me fazendo rir também.
— Certo, falando sério agora: vocês irão lutar de novo só pra ver quem seria o vencedor? — perguntou Julia, descrente.
— Exatamente! — concordou Mathieu excitado. — Depois que um de nós ganhar, nós podemos sair para comemorar, afinal, é vitória de qualquer jeito.
— Bom... Vocês gostam de lutar, certo? Então não vejo porque não. — comentei, dando de ombros. — Se é o que querem.
— Você não poderia ficar mais empolgada? — questionou Mathieu, fingindo irritação, mas logo começando a rir de si mesmo. — Enfim, vamos então fazer amanhã, o que acham?
— Por mim beleza. — Rafaela concluiu a conversa. — Agora vamos mudar de assunto, porque não posso falar sobre técnicas com meu rival. — e lançou um olhar de fingida hostilidade ao melhor amigo, fazendo com que todos nós caíssemos na risada.
Embora eu sorrisse normalmente, ainda estava com a conversa de mais cedo com Julia na cabeça: e eu sabia que Rafaela havia notado que eu não estava no meu normal, por mais que eu me esforçasse em fingir que estava tudo bem, porque ela me lançou olhares incisivos durante todo o tempo em que estivemos na sorveteria. Mathieu e Julia resolveram fazer uma caminhada para curtir um momento a sós, então apenas eu e Rafaela estávamos no carro quando ela foi me levar até a pousada.
— E aí, você vai conversar comigo ou vamos ficar nesse clima esquisito? — ela perguntou, dando um suspiro ligeiramente impaciente.
Encolhi os ombros, sem saber direito como falar o que sentia: eu sabia que tinha total abertura para conversar com Rafaela a respeito dos meus sentimentos, mas todos os argumentos usados com Julia mais cedo para não falar sobre estavam reboando na minha cabeça. Fiquei ligeiramente receosa e falei, lentamente:
— Eu vou conversar com você, amor. Mas não agora. Ainda estou organizando meus pensamentos, você pode esperar, sei lá... Até amanhã?
Rafaela trincou os dentes, visivelmente tensa. Porém, sem nada dizer, ela apenas acenou com a cabeça, fazendo com que meu coração apertasse: será que ela estava furiosa comigo? Será que estava pensando que eu tinha medo dela me trair ou algo assim? Afinal de contas, meu histórico falava contra mim: quantas vezes eu havia pensado o pior dela? Fiquei aguardando que ela dissesse alguma coisa, mas tudo o que minha namorada falou foi um breve “até amanhã”.
Assim que desci do carro, Rafaela acelerou, fazendo com que o peso no meu estômago aumentasse. Embora compreendesse todo o seu desgosto por eu não falar nada, eu não me sentia pronta. Como conseguiria dizer aquilo sem parecer uma egoísta que não queria que ela tivesse futuro? Porque era exatamente como eu estava me sentindo. Eu queria que ela fosse feliz e tivesse um futuro brilhante. Mas não a queria longe de mim. Como equilibrar esses dois pensamentos?
Frustrada, adentrei na pousada disposta a apenas tomar um banho e depois ir até a casa dela para conversarmos: eu lhe devia a verdade e Julia tinha razão quando havia dito que deveríamos fazer isso as duas juntas. Quando cheguei à recepção, porém, estanquei ao perceber que tia Eulália estava na companhia da minha mãe, ambas conversando sorrindo, porém com alguma seriedade. Engoli em seco, totalmente em choque com aquela aparição:
— Mãe?!
— Fernanda... — minha mãe deu um sorriso lacrimoso e estendeu os braços na minha direção. — Senti saudades.
Completamente perplexa, dei passos hesitantes até ela, me deixando envolver naquele abraço, o tempo inteiro esperando ver as figuras do meu pai ou do meu irmão. Tia Eulália me de um sorriso tranquilizador como se estivesse lendo meus pensamentos, enquanto eu me afastava do abraço, ainda sem entender o que estava acontecendo ali:
— Eu também senti, mas... O que a senhora está fazendo aqui?
— Vim ficar com vocês. — ela hesitou e olhou para tia Eulália, que lhe deu um breve aceno encorajador. — Pedi a separação pro seu pai.
Meu estômago deu um imenso solavanco com aquela informação: eu jamais imaginaria que meus pais iriam se separar. Minha mãe era extremamente católica e presa à ideia de que casamento deveria ser um só, independente do que acontecesse nele. Embora meu pai jamais tivesse lhe encostado um dedo, era controlador, machista e agressivo, coisa que eu tentava lhe fazer enxergar durante muito tempo, mas sem sucesso. A ideia de que ela havia se dado conta disso sem mim era assustadora e ao mesmo tempo reconfortante:
— Nossa... — sem conseguir pensar em mais nada, essa havia sido a única palavra que havia escapado dos meus lábios.
— Eu sei que isso é um choque pra você... — ela comentou, sensatamente. — Mas... Eu preciso te explicar como isso aconteceu. Venha, vamos sentar ali.
Deixei-me levar pela minha mãe até as cadeiras da recepção, ainda completamente estupefata por aquela reviravolta: parecia que a minha preocupação com o estado mental de Rafaela já fazia horas. Minha mãe sentou e me colocou ao seu lado, começando a falar ansiosamente:
— Eu sentia sua falta, Fernanda, mesmo não entendendo muito o que você sentia... Você acima de tudo é minha filha, sabe? Eu me arrependi das coisas que havia dito, fiquei cega pelo preconceito, entende? Há muito tempo eu quis entrar em contato, tentar entender melhor, conhecer sobre essa moça, a tal Rafaela... Mas seu pai não me deixava falar com você, disse que eu estava proibida de pensar que você sequer existe. — ela sacudiu a cabeça e prosseguiu, enquanto eu ouvia calada. — Ele pareceu perturbado pelas coisas que você gritou pra ele naquele dia, mas depois voltou a ignorar isso. E... Eu sempre obedeci seu pai em tudo, você sabe... Mas isso... Isso foi demais, filha. Ninguém nunca pode me proibir de amar e falar com minha filha. Foi a gota d’água... Eu precisei de uns dias pra... Tomar coragem. Mas ontem arrumei minhas coisas e vim. Sua tia me recebeu e vou começar a ajudar na pousada, se... Se você me aceitar aqui e me perdoar por ter permitido tanta coisa ruim acontecer com você.
Fiquei calada, digerindo ainda tudo aquilo, percebendo que meu pai finalmente havia tocado no lugar proibido: a relação da minha mãe comigo. E todo aquele tempo eu tinha pensado que ela simplesmente havia decidido que eu não era mais importante, ignorando completamente essa dor, que parecia me corroer por completo, mesmo eu fingindo que não. Engoli em seco, tentando ignorar as lágrimas que se formavam em meus olhos ao constatar que, apesar da minha mãe não entender exatamente como era estar na minha pele, ela ainda me amava e estava disposta pelo menos a tentar. O amor havia vencido o preconceito.
Percebi que tanto minha mãe quanto tia Eulália aguardavam que eu falasse algo. Limpei a garganta, percebendo como minha voz estava rouca:
— Mãe... Eu sei que pra senhora é difícil entender como alguém se torna gay, mas ainda sou eu, a mesma de sempre. E se você tá disposta e entender, eu estou disposta a aceitar sua presença e explicar o que você quiser saber. Mesmo com tudo... Você é minha mãe e eu sempre vou te amar, óbvio que te quero aqui comigo, eu sempre morri de saudade. E quando você conhecer a Rafaela, você vai ver como ela é maravilhosa...
Mesmo que talvez a gente acabe terminando, completei mentalmente, fazendo o meu coração dar uma batida dolorosa. Obriguei-me, porém, a me concentrar no presente:
— Essa parte eu já deixei claro para ela. — comentou tia Eulália de modo amável, mas visivelmente com lágrimas nos olhos.
Emocionada, minha mãe me abraçou com força, como se não acreditasse que eu fosse perdoá-la. Retribui o abraço, sabendo que deveria estar mais leve, mas sem de fato sentir isso: talvez Rafaela e eu percebêssemos no dia seguinte que nem todo amor do mundo será capaz de superar uma distância por no mínimo quatro anos. E mesmo a felicidade e o alívio de ter minha mãe de volta não conseguia apagar a apreensão que eu sentia de talvez perder a garota que eu mais amava no mundo.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 23/09/2023
Eita Fernanda colocando o carro diante do boi mulher tem que falar dos seus sentimentos.
Marianna P
Em: 24/09/2023
Autora da história
Fernanda seeeeeeempre ansiosa, né? IncrÃvel como ela não perde essa mania kkk
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Marianna P Em: 24/09/2023 Autora da história
Acho que Fernanda passou por muita coisa que deixou ela assim, mas você tem razão, falta nela um pouco de fé no amor delas.