CapÃtulo 15
Apenas dois dias haviam se passado desde o beijo em Clara e a conversa com Marina. Mal trocou algumas palavras com Marina, que nitidamente passou a evitá-la. Alice continuava naquela espiral de emoções, incertezas e dúvidas que a dominaram nos últimos meses. Sentia-se culpada pois, dessa vez, além dos próprios sentimentos, estavam em jogo os sentimentos de mais duas pessoas. Chegou a pensar que o pai e o irmão estavam certos quando disseram que ela era uma aberração, uma desviada, que tinha uma doença. Nunca conseguia se conter, nunca conseguia dominar os próprios desejos, e agora as coisas pioraram ainda mais, pois estava envolvida, não com uma, mas com duas mulheres. Apesar de ter dito para Marina que a escolheria, não conseguia se imaginar vivendo perto de Clara como se nada tivesse acontecido. A última coisa que queria era magoá-la ou fazê-la pensar que tinha sido usada. Os questionamentos que a tomaram depois do que aconteceu com Patrícia, mais de um ano atrás, retornaram: “Conseguiria ter feito diferente? Conseguiria não ter entrado naquele quarto e confrontado Clara? Conseguiria ter resistido em beijá-la?” Se achando a pior das criaturas, fraca e vil, tomou uma decisão.
*****
Clara observava Marta mexendo uma panela no fogão e a invejava por estar absolutamente alheia a tudo que estava acontecendo naquela casa. Sentiu saudades de quando também era uma mera espectadora na vida das pessoas que viviam ali. Depois do beijo, não esteve mais a sós com Alice. Encontrou uma vez com Marina no corredor da casa e recebeu dela um olhar de desprezo que a atingiu mais do que se a patroa tivesse lhe esbofeteado. Racionalmente queria estar feliz, pois de alguma forma, desestabilizou Marina. Sabia que ela realmente gostava de Alice, a relação das duas era visivelmente diferente daquela que a patroa manteve um dia com Lena. Queria conseguir comemorar como um primeiro passo para a sua vingança, mas apenas sentia confusão, tristeza e uma pontinha de culpa.
Foi arrancada dos seus pensamentos quando Alice entrou na cozinha carregando uma mala. Como se tivesse sido combinado, Marina entrou pela outra porta. As três se entreolharam por um instante, mas quem quebrou o silêncio foi Marta:
— Vai viajar, doutora?
A pergunta inocente da cozinheira fez com que Alice respondesse gentilmente:
— Não, Marta. Na verdade… - Olhou para Marina e foi para ela que disse: — Queria conversar com você.
Clara acompanhou a conversa com os olhos baixos, fixos no pão que fatiava. Estaria mentindo se dissesse que o fato de Alice falar apenas com Marina e não ter lhe dirigido um único olhar, não a magoou. Mas estava tentando se preparar mentalmente para o que iria acontecer, pois sabia que mais uma vez seria a preterida.
Marina respondeu friamente:
— Pois não.
Alice continuou com o tom de voz calmo:
— Eu gostaria que fosse em particular.
Marina olhou para Clara ao responder:
— Tenho certeza que não há nada que você não possa me dizer na frente delas.
Alice suspirou rendida. A última coisa que queria era criar mais um conflito:
— Vou embora no próximo trem.
Sem que pudesse evitar, Clara parou o que estava fazendo e levantou a cabeça, olhando para a médica. Marina tentou não demonstrar nenhuma reação, mas seu semblante deixou escapar uma pontinha de surpresa, misturada com decepção. A única a verbalizar alguma coisa foi Marta:
— Embora? Mas doutora, foi alguma coisa que a gente fez? Tem alguma coisa que a senhora não está gostando?
Genuinamente comovida com as perguntas dela, Alice respondeu carinhosamente:
— Não, Marta… Eu nunca fui tão bem recebida e tratada em toda minha vida. É uma questão pessoal.
A cozinheira olhou para Marina esperando que a patroa contestasse ou tentasse fazer com que Alice mudasse de ideia. Marina percebeu que Clara também a olhava como se estivesse esperando e suplicando pela mesma coisa. Apenas olhou para Alice e respondeu, antes de virar as costas e sair da cozinha:
— Eu mesma te levo.
*****
Estacionou o automóvel em uma rua perto da estação de trem. Faltavam ainda quinze minutos para a condução que levaria Alice para sempre para longe de sua vida. Um silêncio quase sepulcral se instaurou, e foi Alice que o desfez:
— Eu queria te agradecer por tudo, do fundo do meu coração. Vivi dias que eu nunca imaginei que viveria aqui.
Marina continuou calada, olhando para frente.
Sem esperança de que ela diria alguma coisa, Alice completou:
— Me desculpe pelo que aconteceu, nada do que eu disser vai justificar, mas as coisas ficaram fora do meu controle.
O silêncio voltou a preencher o carro e Alice olhou para o lado de fora da janela, querendo gravar na memória os detalhes daquele lugar que foi uma das melhores surpresas que aconteceram em sua vida. Minutos haviam se passado com Alice imersa em seus próprios pensamentos, quando Marina disse:
— Olhe pra mim…
Mesmo se ela não tivesse pedido, Alice a olharia só pela surpresa, pois não esperava mais nenhuma palavra de Marina. Quase não acreditou quando a ouviu falar:
— Se eu te pedir pra ficar, você fica?
Abriu a boca para responder, mas Marina continuou antes:
— Eu aceito… Eu aceito do jeito que você quiser… Eu aceito que você fique com quem quiser, mas não vou conseguir ter você longe de mim.
Desde o momento em que Alice tinha contado sobre Clara, Marina travava uma batalha dentro de si mesma. Não sabia como lidar com o ciúme devastador que a consumiu, além do ego ferido em saber que foi traída com... Uma empregada. Por outro lado, não queria, não podia... Perder Alice. Mas se ela ficasse, como seria? O medo que sentia de perdê-la era maior que qualquer outro sentimento que estivesse dentro dela naquele momento. Se Alice fosse embora, estaria perdendo-a para sempre. Mas, se ela ficasse, teria ao menos uma chance de lutar por seu amor.
As lágrimas brotaram nos olhos dela. Alice rapidamente as enxugou com a ponta dos dedos e acariciou o rosto de Marina:
— Meu amor… Marina, não chora, eu não suporto te ver chorando.
As duas se abraçaram e ficaram assim por um tempo, apenas ouvindo as respirações uma da outra. Depois, Alice ouviu Marina sussurrar em seu ouvido:
— Eu te amo.
Se afastou para olhá-la nos olhos antes de dizer:
— A última coisa no mundo que eu quero é te fazer sofrer. Tenho medo de ficar e…
Marina a cortou:
— Fica… Nada no mundo vai me fazer sofrer mais do que estar longe de você.
*****
Clara estava varrendo as folhas secas em frente à casa, tentando inutilmente segurar as lágrimas e não pensar em Alice, quando ouviu o barulho do automóvel retornando da cidade. Seu coração apertou mais em saber que era definitivo, nunca mais a veria. Assim que o automóvel se aproximou, olhou disfarçadamente e percebeu que havia duas pessoas no veículo. Seu coração pulou com a esperança de que Alice tivesse desistido de ir embora. Não conseguiu mais disfarçar e olhou diretamente para o automóvel. Parecia que estava imaginando coisas quando percebeu que era mesmo Alice sentada ao lado de Marina. A médica estava olhando para baixo, mas Marina a encarou de volta, nos segundos em que o automóvel passou em sua frente. Sem conseguir conter a euforia e sem se importar com o olhar que recebeu da patroa, correu para dentro, para que chegasse à cozinha enquanto o automóvel dava a volta até a porta dos fundos da casa.
Assim que desceram do automóvel, Marina respondeu à pergunta silenciosa estampada na cara de todos:
— A doutora Alice e eu conversamos e ela vai ficar por, pelo menos, mais uns dias, até decidir o que fazer definitivamente.
Olhou para Alice que concordou com um pequeno sorriso, sendo abraçada por Marta logo em seguida.
*****
No dia seguinte, Clara estava no galinheiro tratando dos animais. Despejou o saco de milho no comedouro das galinhas e limpou as mãos na calça para tirar a poeira. Quando se virou em direção à porta, se deparou com Marina parada, de braços cruzados, encostada no batente. A patroa a olhou de cima a baixo antes de dizer:
— Só queria que você soubesse que eu e Alice conversamos e nos acertamos. Se isso for um problema pra você, pode dizer a Saulo… Ele vai providenciar tudo que é seu por direito.
Depois que ela saiu, Clara ficou tentada a realmente pedir as contas e ir embora daquele lugar, pois não sabia se suportaria vê-las juntas. Porém a ideia de nunca mais ver Alice parecia ainda mais dolorosa.
Além disso, ainda tinha sua vingança.
O pensamento durou apenas alguns minutos, pois logo parou de tentar se enganar e enfrentou a realidade de que, na verdade, nunca havia feito nada de concreto para se vingar de Marina, apenas usava a desculpa da vingança para se manter viva, para ter um motivo para continuar existindo. Era nisso que se agarrava todos as manhãs ao se levantar da cama, para que pudesse suportar o dia que teria pela frente. Jamais arquitetou realmente um plano ou fez algo que a impulsionasse para uma vingança real.
Deixou que o corpo escorregasse junto à parede e se sentou no chão. O que aconteceu entre ela e Alice foi como uma fagulha de esperança de que coisas boas poderiam acontecer em sua vida, mas se apagou antes mesmo de ganhar força.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 08/06/2023
Eita e agora Clara fica ou vai.
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Marta Andrade dos Santos
Em: 08/06/2023
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