Capitulo 16 - Missão Quase Possível
((( POV Isabella )))
Como sempre ouvir seu nome me trazia a lembrança do nosso último encontro, e essa memória era vívida… Quase podia sentir o olhar dela sobre mim, depois de eu quase suplicar para que não voltasse mais… Quando eu disse que esperava que ela fosse feliz e eu realmente desejava aquilo, assim como ela também desejou para mim quando foi embora pela primeira vez. Eu sabia que naquele dia, naquele quarto de hotel, eu havia colocado um ponto final na nossa história, se é que havíamos tido alguma afinal, mas… Ainda assim, eu nutria uma fagulha de esperança de um dia revê-la… nem que fosse só por um instante, saber como estava, aquele sentimento infantil e imaturo que você não controla, apenas aprende a lidar ou então tenta enterrar no fundo do cérebro fingindo que não existe. Sim, eu sei que isso não é saudável emocionalmente, mas…. Felizmente a minha racionalidade era algo louvável e eu aprendia comigo mesma todos os dias o quão bem estava me saindo no quesito esquecer o passado, era interessante ver o avanço que eu fazia a cada reflexão sobre mim, sobre minha sexu*l*idade, sobre meus relacionamentos. E Lis me tomava todo o tempo disponível, e involuntariamente contribuía para que toda essa reflexão diária não me consumisse.
Quando Túlio contou uns meses atrás sobre a possibilidade dela voltar, foi um choque, realmente foi. Mas não houveram mais notícias e então digeri a informação com mais calma.
- Belíssima do meu core, você sabe que só a sílaba “ela” já te entorta as perninhas…
Ouvir palavras assim de Ulisses não me desanimava, pelo contrário… Bom, pelo menos é no que eu acreditava. Eu tinha verdadeiramente essa vontade. Essa “missão”, como eu secretamente chamava, era algo que eu me agarrava com unhas e dentes nos últimos tempos: esquecer o passado. Mas claro que Ulisses não deixaria de me provocar sempre que o assunto surgia por acaso e eu revidava, exatamente como agora com ele rindo escandalosamente depois que eu joguei uma mamadeira vazia na sua direção. Ainda ganhou um beliscão da Verônica, que tinha acabado de fazer Lis dormir, mas era totalmente desnecessário por que meu pãozinho simplesmente desmaia quando dorme, só acorda quando lhe interessa, ou seja, perdi as contas de quantas vezes ela acordou somente pelo Tetê.
- Você nem cogitou a possibilidade de conversar com el…
Calei Fernando apenas com um olhar. Ele sabia muito bem que sua prima era um assunto proibido ali e só quem se atrevia a trazer esse assunto à tona era Ulisses, mas não por que eu permitia, e sim por se achar o Rei da cocada que poderia falar o que lhe vinha na cabeça e eu já tive discussões com ele que duraram horas sobre essa maldita mania. Mas isso não importa agora, enfim por qual motivo aquele assunto havia surgido DO NADA?! Vocês estão arruinando minha missão, droga!
- Bella, não se sinta mal… Acho que tem todo direito de sentir falta de quem quiser. - Verônica era empática como sempre e eu agradecia por se preocupar, mas supor que eu sentia falta?! Era demais!
- Concordo. E continuo achando que se elas conversass… — Fernando ainda continuou, me levando ao limite.
- E EU acho que vocês acham demais… gente, em que momento esse assunto surgiu, ein? - Levantei de supetão do sofá que estava e tratei de ocupar minhas mãos e minha mente com as roupinhas de Lis que eu havia recolhido do varal mais cedo. Era Domingo e eu aproveitava para descansar, colocar a casa em ordem, lavar umas roupas e claro, refletir.
Ulisses, Verônica e Fernando vinham nos visitar quase todo final de semana, eu e Lis amávamos a companhia deles e eu não queria soar grosseira, afinal eu amava todos que estavam presentes ali, só não precisava de ninguém sentindo pena de mim ou supondo coisas, por algo que já estava resolvido e esquecido. Ponto final.
- Calma mona, desse jeito você vai estragar as roupinhas…
Ulisses tirou o macacãozinho amarelo claro da minha mão. Num momento de distração eu torcia a roupinha com tanta força que quase arrancava os pequenos botões..
- Aquela magrela é passado e nem merece essa sua raiva toda, sabia?! Ela merece é i n d i f e r e n ç a. - Meu amigo sibilou e eu franzi o cenho controlando meu mau humor, tentando categoricamente ignorar que aquele assunto parecia um vírus quando surgia, se espalhava e ganhava força de forma silenciosa e contagiosa.
- Da onde você tirou que estou com raiva da Micaela? - De repente parei o que estava fazendo e cruzei os braços, realmente curiosa em saber da onde Ulisses tirara aquela constatação.
Todos olharam surpresos para mim, num misto de receio e solidariedade, aquilo me irritou ainda mais.
Sim, eu tinha raiva, mas de longe não era um “odeio Micaela”, com certeza estava mais para “odeio o que aconteceu entre nós”, ou melhor, “o que não aconteceu”. Micaela em si não era um monstro para mim, eu tinha diversos outros adjetivos para nomeá-la? Sim, positivos e negativos… talvez mais negativos. Mas posso afirmar com muita sinceridade que a Mapê me trouxe muito mais sentimentos tóxicos que me faziam sentir repulsa e raiva, do que meu curto “lance” com a filha do meu padrasto. Foi triste, foi trágico, foi rápido, dramático e difícil de superar? Foi, mas com certeza minha imaturidade ajudou muito para que tudo ficasse intenso demais, novela mexicana demais. Pelo menos era o que eu acreditava e me agarrava firmemente nisso.
- Sério, vocês é que devem estar nutrindo algum sentimento por ela, não é possível! Esse assunto sempre volta e já perceberam que nunca parte de mim? Eu já esqueci, façam o mesmo! – Meu rosto com certeza transparecia minha incredulidade com tudo aquilo, eles não faziam ideia sobre o que se passava na minha mente, muito menos no meu coração.
- Bella…
- Bella nada! É sério , gente… eu tô cansada de ser subestimada toda vez que esse “assunto” surge do nada! Eu amo vocês, mas esse papo já deu! - Eu finalizei voltando a me concentrar em dobrar as roupinhas da Lis.
Pronto. Mais um ponto final e todos se calaram diante do meu breve discurso inflamado. Se queriam tanto me ajudar a esquecer a prima do Fernando, então que pelo amor dos deuses PARASSEM de falar nela.
Era um martírio, por que inevitavelmente eu me lembrava dela, simplesmente ao olhar para Lis, pentear seus cabelos negros… Lisbela era Micaela numa versão miniatura e fofa. E o amor que sinto por minha filha reprime qualquer sentimento negativo que eu possa ter com minhas lembranças… Lis não poderia ter nascido parecida comigo só um pouquinho? Sim, poderia, mas a natureza é incontrolável e eu apenas aceito e tento não me concentrar nesse pequeno “detalhe”. E eu ainda tinha amigos que subestimavam minha capacidade de lidar com problemas emocionais, por que me tratavam como uma porcelana trincada prestes a espatifar, cada vez que alguém mencionava algo referente à “ela”.
- Cami volta pra casa amanhã! Não voltem nesse assunto, por favor… - Pedi ainda séria.
- Amore, é claro! - Ulisses beijou minha bochecha, me abraçando em seguida. Ele sabia o quanto eu e Camila estávamos lutando para manter o relacionamento, e como o (assunto) em questão era uma pedra montanhosa que vez ou outra aparecia em nosso caminho. Eu amava Camila. Sim, havíamos terminado e voltado um sem número de vezes, mas qual relacionamento não tem seus altos e baixos? Eu só não suportava vê-la sofrer, era um namoro/casamento perfeito e quando seus olhos transmitiam insegurança do que eu sentia… Me destruía por dentro. Éramos felizes e Lis a adorava, mas Micaela era um nome proibido ali e continuaria sendo, não por que eu não sabia lidar com meus sentimentos ou por que a odiava, mas por que eles superestimavam o que eu e ela tivemos e subestimavam minha capacidade emocional de conseguir superá-la. Ok, posso ter tido uma grande parcela de culpa nisso, por ter sido uma “emocionada” sem noção que implorava e me humilhava de muitas formas por qualquer “dose” de Micaela… porém, como eu disse e repito: esquece, era passado!
- Foi mal, Isa… - A voz do Fernando soou meio baixa, mas eu sabia que por trás dessa desculpa havia MUITA coisa não dita.
Suspirei enrolando umas meias e concentrei meus pensamentos em Camila. Depois que Fernando se mudou para o apartamento de Verônica nosso dia a dia era como de um casal qualquer. Sim, tínhamos nossas brigas, não vou mentir, até gostava de quando brigávamos, apimentava um pouco as coisas… Olhei minha pequena que dormia em algumas almofadas no chão e sorri, lembrando que toda minha libido tinha se perdido num limbo desconhecido depois que ela nasceu. Fernando e Ulisses me davam bronca, diziam que eu precisava viver mais, sair mais. Me expulsavam da minha própria casa, mas Camila me entendia, ela era tão paciente comigo… Eu não podia fazê-la sofrer, então nem que tivesse que costurar a boca de Ulisses, “aquele” assunto, se encerrava ali.
- Ela conseguiu finalizar as aulas no salão, Bella? - Verônica me trouxe de volta.
- Me ligou ontem avisando que não… Vai precisar voltar daqui duas semanas, talvez menos. - Eu peguei um shortinho lilás e dobrei umas três vezes.
O trabalho de Camila a fazia viajar por todo estado, as vezes fora dele, ela dava aulas em salões renomados, tinha apoio de várias marcas de produtos, o salário era maravilhoso, porém sua vida praticamente era trabalhar e trabalhar mais um pouco. Mas eu já estava tão acostumada que me organizava em sua ausência, era fácil, era simples, nos despedíamos e quando ela retornava era uma alegria saudosa, calma e genuína, eu a apoiava em todas suas decisões, me orgulhava demais por saber que aquela a quem meus pais não davam a mínima, hoje nos mantinha tranquilamente sem ajuda deles, era regozijador ver a cara do tio Fábio quando Camila chegava de carro ao almoço de domingo na casa da tia Elisa, e ele logo resmungava com mamãe que achava aquele modelo uma porcaria, o mesmo modelo que ele e Fernando “babavam” tempos antes quando viam a propaganda na televisão. Hipocrisia, era o nome.
Já eu, me desdobrava em duas clínicas particulares especializadas em pessoas queimadas. Era desgastante, mas eu amava. Depois de alguns meses fui designada a trabalhar com os pacientes infantis da clínica mais distante de casa, o que me fazia protelar cada vez mais em deixar um dos empregos. Cami insistia, me fazendo pensar sobre estar mais tempo com Lis, mais tempo em casa, diminuir a carga… Mas trabalhar com crianças era um sonho se realizando, eu simplesmente me desdobrava para conseguir trabalhar o máximo que conseguia. Ver meus pequenos vencendo obstáculos que fazem qualquer marmanjo chorar e gritar… Era surreal. Eu não podia simplesmente ignorar que a clínica era nova, e com isso não podia pagar muito, mas era visível a forma humana como lidavam com seus pacientes, os donos eram um casal de ingleses que vieram ao Brasil na década de noventa e só agora conseguiam finalmente verba e espaço para ampliarem seu trabalho. A filha deles cuidava de toda a parte administrativa e era a que mais ficava no local… Era realmente um ambiente familiar, com objetivos além do financeiro e eles lutavam com garra pelos pacientes, principalmente pelas crianças ao qual eu era responsável. Eu não podia abandoná-los e nem queria. A outra clínica era mais antiga, o dono era um médico um tanto arrogante, mas que pagava muito bem, eu poderia sustentar facilmente a mim e a Lis, se assim precisássemos. Eram prós e contras que só me faziam protelar na decisão e eu tinha discussões cansativas com Camila sobre isso.
- Seu trabalho é mais fácil, eu...
- Ah você acha que eu só meto a tesoura no cabelo da cliente, é isso? Olha Isabella, eu tô cansada do jeito que você menospreza meu trabalho.
Eu me lembrava desse diálogo, como se fosse ontem.
- Amor, nunca! Eu jamais pensaria isso do seu trabalho, eu acho incrív…
- Incrivelmente fútil?! - Ela debochava cruzando os braços, daquele jeito que eu temia, pois sabia que não tinha como voltar atrás, eu tinha falado merd*.
- Claro que não, Camila! Eu realmente acho que o que faz é tão necessário, quanto o que eu faço, só quis dizer que você não lida com tantos problemas que…
- Aahhh, sim… Meu trabalho é super tranquilo mesmo, Isabella! - Ela estava decepcionada.
Ok, tem momentos que até mesmo a Lis tinha mais tato em se expressar. Eu não achava fútil, de forma alguma. Mas ela jamais entenderia a sensibilidade necessária para ajudar uma criança a aceitar que seu rosto marcado por cicatrizes era tão belo quanto o das princesas perfeitas dos desenhos que elas viam. Que a falta de orelhas, cabelos, pele, dedos… Não interferia no amor que sentíamos por elas, pelo contrário, isso fazia com que as achássemos mais lindas e perfeitas ainda. Eu não tinha como mostrar, era preciso estar com eles para entender que estética para essas pessoas não era simples como fazer um corte mais curto, luzes, botox ou alinhamento dos fios. Para essas pessoas sorrir, andar, falar e conseguir fazer tudo isso sem sentir dor era mais importante que qualquer estereótipo padrão da moda.
O mais impressionante era que nossas discussões não haviam desfechos, Camila desistia de discutir e eu desistia de tentar fazê-la entender. Ela sabia que eu não desistiria do meu trabalho, da mesma forma que ela também não desistiria jamais do dela, mas felizmente para ela eu não a induzia a fazer isso. Eu sabia como ela tinha lutado por aquilo, desde quando o salão era apenas uma porta em um bairro qualquer daquela cidade retrógrada. Então se ela precisava sair e ficar dias fora, eu tinha orgulho e a apoiava totalmente. Mas se eu fizesse hora extra ela me cobrava, quando via meus olhos fundos e cansados, ela questionava o porquê de escolher sofrer quando o que ela ganhava poderia bancar tranquilamente a nós três. Mas o que Camila não entendia era que eu AMAVA isso, inclusive com os “olhos fundos e cansados”, pois eram o resultado de que o dia havia rendido, assim como quando ela voltava esgotada de uma viagem de aulas. Eu não trocaria minhas olheiras e dor nas costas por nenhum outro trabalho que não me fizesse feliz igual, independente do salário.
E era isso que eu queria ensinar para Lis, diferentemente do que tio Fábio e mamãe pregavam, uma vida “margarina” sem tempo ruim, perfeitinha... A vida real para mim não era assim, e todos os dias aquelas crianças me ensinavam isso e me mostravam que felicidade vai além de “perfeições”, cobranças ou pressões sociais. Conseguir dar um passo, pegar um copo ou jogar uma bola… Isso era felicidade para eles, logo era minha felicidade também.
- Túlio me disse que talvez seria só um boato. Micaela nem chegou a falar com ele diretamente, foi um amigo em comum deles que ouviu de uma prima que mora na capital.
O pai da minha filha murmurou baixo me fazendo voltar ao presente. Mal percebi que o dia findava, assim como nosso encontro dominical. Fernando abaixou-se para se despedir de Lis com um beijo suave na testa, Ulisses e Verônica já haviam descido, depois de se despedirem ainda encabulados pela “bronca” que lhes dei. Ele sabia que eu estava falando muito sério quando disse que (aquele) assunto estava encerrado, mas se atreveu a voltar-se em minha direção e ainda frisar.
- Não sofra por antecipação. - Ele era o irmão que nunca tive, meu melhor amigo, primo daquela que me assombrou quando eu ainda era só uma menina, e principalmente pai da minha filha. Ele também sofria, talvez ainda mais do que eu, o amor que eles nutriam um pelo outro desde pequenos era algo que ia além de consanguinidade.
- Eu prefiro não vê-la nunca mais, Fer. - Deixei escapar como um sopro entre os lábios .
- Eu sei.
- Eu não quero ouvir, não quero ver, não quero saber dela.
- Eu sei.
- Acabou.
- Eu sei. - Ele me puxou e me abraçou forte. Eu suspirei sentindo que podia enfrentar qualquer coisa, tendo ele ao meu lado.
- Eu sempre vou estar aqui… - Ele sussurrou dentro do abraço, confirmando meus pensamentos e eu sorri aliviada me livrando do seu abraço, tentando amenizar o clima.
- Amanhã você pega ela? - Mudei de assunto me referindo a quem buscaria Lis na creche.
Ele apenas sorriu concordando com a cabeça, sabendo que eu continuaria perguntando aquilo, mesmo sabendo que ele fazia todos os dias, como combinado desde sempre.
(((POV Micaela)))
Seu abraço apertado era mais do que uma despedida, era um pedido de desculpas. Éramos um triângulo amoroso peculiar, onde uma das pontas, no caso eu, se mantinha bem distante, mas por mais que eu tentasse culpar Talita, por ter entrado de forma tão permanente em nossas vidas… Eu sabia muito bem que a culpa desse trisal não ter dado certo, era totalmente minha, Júlia não tinha culpa de nada, muito menos Talita, era impossível culpar duas pessoas apaixonadas, por simplesmente quererem estar juntas. Particularmente minha preocupação e foco com o estúdio era maior, o que não permitia qualquer frustração da minha parte, eu dormia no sofá do meu estúdio todos os dias, basicamente só ia pro apartamento para matar as saudades, conversar com Júlia, ou guardar alguma coisa que no estúdio não caberia. Há anos que não tínhamos nada, e eu levava vez ou outra alguns “dates” para conhecer meu confortável sofá, mas não vou mentir que estava expert em me auto satisfazer, já que há meses não sabia o que era ter o corpo de outra mulher contra o meu, aliás em minha vida, empacotar tudo da mudança para Ribeirão Preto, cancelar contratos, decorar o novo estúdio… Eu não tinha cabeça para mais nada além de trabalho.
- Gatinha… - A voz de Júlia me trouxe de volta, então peguei seu rosto e puxei para um beijo repleto de saudades e gratidão.
- Te amo Jú. - Eu sorri enquanto limpava as lágrimas que corriam por seu rosto perfeito. - E virei visitar sempre… Talita não vai se ver livre de mim tão cedo. E você conhece o caminho, vai me visitar também, não é?!
- Óbvio! - Ela confirmou me apertando nos braços. - Não fica triste, mas Talita está com cãibras nas bochechas de tanto que sorri… - Ela confidenciou baixinho, mesmo sabendo que sua Tatá não estava em casa. Apesar da minha presença ali ser rara, o apartamento finalmente passaria a ser totalmente delas.
- Juro que NUNCA vou avisar quando vier visitar… Aaauu! Esse beliscão dói, para! - Ela me olhava com um sorriso contido, tentando parecer brava.
- Vocês ainda vão se dar bem, eu fiz promessa.
- Mais fácil eu dar para um homem, do que… Aaaaiiii, JÚLIA!!! - Gritei alto com o segundo beliscão mais forte.
Ela gargalhou me apertando mais um pouco, como se faz com um ursinho de pelúcia fofo, fiquei ali alguns segundos dentro do abraço dela, guardando na memória seu cheiro e sua temperatura.
- Tenho que ir, Seu Constantino já já me liga… - Me soltei devagar.
- Sabe que eu tenho um pouco de “rancinho” desse seu amigo…
Eu gargalhei.
- Ele é uma pessoa incrível, vocês só não se deram bem por pura implicância por ele indiretamente ter me tirado daqui de São Paulo, quando me ofereceu o espaço em Ribeirão Preto.
Ela fingiu lixar as unhas e eu já sabia que se não me despedisse ficaríamos ali a tarde toda. Puxei a mala em direção a porta, dei uma última olhada no que foi meu lar por tanto tempo. Eram lembranças e memórias que eu jamais esqueceria, eu amava aquele lugar, aquela cidade, as pessoas… Só Seu Constantino mesmo para me fazer voltar à Ribeirão Preto. Bom, talvez não só ele, mas não tenho tempo para pensar sobre isso agora.
Meu celular vibrou no bolso de trás da calça.
- Alô?! - “Não morre mais” Pensei sorrindo e respondi: - Oi Seu Constantino… Claro, já mandei as coisas na semana passada, hoje estou indo só com umas roupas e coisas pessoais, mas a mudança praticamente já foi. - A voz dele soou mais ansiosa do outro lado e eu me apressei em responder - Claro, eu mando fotos sim! Pode deixar, eu vou cuidar de tudo.
Quase quatro horas depois e eu entrava no perímetro urbano de Ribeirão Preto, além do Seu Constantino e Júlia, apenas poucos amigos de São Paulo sabiam da minha mudança para o interior. Sendo assim não estava tão ansiosa, pois as chances de encontrar alguém da minha família eram mínimas, o novo estúdio era totalmente fora de mão de onde meu pai e Silvia moravam.
Estacionei na garagem do condomínio e depressa peguei as últimas coisas no porta-malas. Suspirei cansada enquanto o elevador subia até o nono andar, nem acreditando que finalmente estava no lugar que chamaria de novo lar. Até que o prédio era bonito, silencioso, tranqui…
Retiro o que disse depois dos três pivetes que passaram por mim gritando no corredor. Abri a porta novecentos e dois inspirando o ar recém pintado do apartamento, era pequeno, mas aconchegante e muito bem planejado. Júlia iria adorar. Abri a geladeira e peguei uma latinha de cerveja que havia abastecido na semana anterior, tomei um gole sentindo os pêlos arrepiarem, essa cidade tinha a temperatura perfeita para churrascos e muita cerveja, não era à toa que toda aquela cidade cheirava a comida no final de semana. Sorri já imaginando Talita reclamando do ponto da carne, da marca da cerveja, da cor do apartamento. Ela era insuportável, só Júlia mesmo para gostar e suportar.
- Que silêncio… - Minha voz soou até alta demais. Eu estava sozinha depois de tantos anos dividindo o espaço com mamãe, depois Júlia, por fim Júlia e Talita, depois o pessoal do estúdio que chegava cedo demais e me acordava todos os dias no sofá... Pela primeira vez eu percebi como era silenciosa a solidão. Abri a sacada e a noite escura, estrelada e quente me recebeu de braços abertos, como me saudando por uma etapa que me aguardava. Depois de quase um ano planejando, reformando e organizando tudo, finalmente o estúdio tinha ficado pronto. Estava espetacular e eu jamais poderia agradecer Seu Constantino por aquela oportunidade. Eu mal havia começado e já haviam clientes na agenda - a maioria graças à sua neta Lorena - ela possuía contatos por quase todo interior de São Paulo e eu já iniciaria no dia seguinte à minha chegada, em um projeto fantástico com crianças de uma pequena comunidade do bairro Jardim Progresso. O entusiasmo me tirou completamente o sono e eu peguei minha câmera e desci sem rumo, em direção a qualquer coisa que fosse interessante o bastante para minhas lentes. Claro que essa se tornaria uma rotina comum nos meus dias ali.
E esses dias se passaram, precisamente quatro anos depois desde minha chegada… Foram muitos cliques, cervejas, contratos, romances rápidos e demorados. Muitos contratos interessantes e alguns fracassos, nunca nesse tempo tive contato com qualquer familiar ali, Júlia me visitava pelo menos duas vezes por ano e Seu Constantino idem, contudo seu falecimento no mês retrasado havia trazido muita tristeza para todos que o conheciam, eu ainda tentava digerir que o estúdio de emprestado passara a ser meu, por uma decisão dele em seu testamento. Lorena chorara junto comigo, de saudades e um sentimento que não sabíamos descrever… Ele havia feito por mim muito mais em poucos anos do que qualquer outro parente em toda minha vida, Lorena havia perdido o melhor avô que se podia ter e eu havia perdido meu melhor amigo. Ainda me recobrava do luto quando algo fora da rotina aconteceu. E isso claro viraria mais uma vez meu mundo de cabeça para baixo.
Fim do capítulo
Decidi que voltaria somente quando a estória estivesse completa e ela está finalmente! o/ Tem memória de peixe como eu? Então aproveita o feriado e dá aquela relembrada na estória das duas, nos vemos de novo daqui alguns dias! Beijos
Comentar este capítulo:
Rita Santos
Em: 30/11/2023
Marta Andrade dos Santos
Em: 30/04/2023
Que bom o seu retorno.
Resposta do autor:
E que bom sua leitura, mto obrigada s2
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