Opmet od aroF
Laura não reconhecia mais o reflexo no espelho. Na verdade, há tempos não se reconhecia mais com o que quer que fosse no passado. O que quer que tivesse ali, tinha se esvaído com o passar do tempo.
Tinha muitos arrependimentos, um mais latente do que o outro, e seus pensamentos negativos ficavam ainda mais nítidos quando as consequências de suas atitudes passadas ficavam cada vez mais afloradas. Estava cansada, exausta de si mesmo, deprimida demais para pensar no presente, infeliz demais para cogitar um futuro.
Em sua cabeça tinham muitos talvez. Se tivesse feito tal coisa, se tivesse falado tal coisa, se tivesse tomado tal atitude... Talvez sua vida fosse diferente do que era agora. Talvez, em algum momento, fosse verdadeiramente feliz ou tivesse um vislumbre de tal sensação, coisa que não sentia há tempos.
Estava há tanto tempo naquele estado que nem se lembrava se um dia fora feliz. Não que tivesse uma vida dura e difícil, na verdade tinha uma vida boa e abastada que a permitia fazer muitas coisas, mas ainda assim não era o suficiente, e talvez nunca fosse.
“Tantos talvez...Como se vive assim?” perguntava-se Laura olhando para as pequenas e tímidas rugas que apareciam em seus olhos. Já não era tão jovem como costumava ser, e com o passar do tempo, seu coração fora tomado só pelo sentimento de amargura e lapsos de euforia que não bastavam de uma tentativa de se enganar.
Vivia se auto sabotando. Era o que mais fazia desde a adolescência, quando soube que era diferente de sua melhor amiga e de tantas outras garotas ao redor. Elas olhavam para os garotos com olhares desejosos, e ela sequer entendia o que estava acontecendo com ela.
Só sabia que era muito errado, e que não deveria sentir isso, a não ser quando ela tinha a impressão de que alguma garota notava ela, a encarava ou a olhava dos pés à cabeça. Aí então ela sentia aquilo que não conseguia nomear.
Mas aquele sentimento era como um natimorto: não tinha sequer chances de crescer, sendo enterrado a cada olhar desgostoso de sua mãe quando ela se recusou a ter um namorado ou das cobranças do seu pai para ser exemplo para as irmãs mais nova. Ainda assim, não tinha coragem sequer de conversar isso com as pessoas mais próximas a ela: seu irmão mais velho e sua melhor amiga.
Apesar de seu irmão desconfiar, fazendo uma ou outra pergunta que sugeria isso, ela negava com afinco. Sequer pensou em conversar isso com Coralina por medo de que ela a julgasse mal, apesar de que ela já era simpatizante desde a tenra idade, e com o passar do tempo se mostrou ainda mais a favor do direito de pessoas como...
Ela poderia ter sido, mas já era tarde demais. Tudo já estava fora do tempo.
Não era mais jovem, não era atraente, não tinha feito metade das coisas que gostaria por medo, não tinha vivido nada que desejava até então. Nem mesmo a separação com seu companheiro de uma vida a fez se sentir melhor.
Guilherme era um cavalheiro, no bom termo da palavra. Apesar do casamento deles terem sido arranjado, afinal tanto Guilherme quanto Laura não desejavam casar, mas precisavam porque na época em que eram jovens, tais convenções ainda eram necessárias.
Ela queria ter falado que não queria, mas simplesmente aceitou como tudo na sua vida. Aceitou que não se atraía por garotas, aceitou que não queria trabalhar como radialista e se aprofundar no seu amor por música, e com isso aceitou que deveria casar com um homem e viver uma vida de feliz dona de casa que se dividia nos negócios com o marido, assim como sua mãe era, e assim como tinha que ser...Talvez se ela tivesse gostado de alguém a ponto de enfrentar os pais, ou se gostasse mais dela, poderia ter sido diferente para ambos, mas ela reconhecia que tinha a sorte dele ser um bom homem.
Respeitador, íntegro e companheiro, sempre respeitou seu espaço mesmo quando ela não quis dormir com ele. Ele sempre dizia que era tudo no tempo de cada um. Era um homem letrado, culto e gentil que sempre prezava em cuidar dela e do seu bem-estar e, voltando aos talvez, fosse por isso que ela se sentia tão mal no relacionamento.
Ele dava demais a ela, e ela não dava o mínimo. Guilherme adorava a levar para concertos, para jantar ou para passear. Era herdeiro de uma empresa e ainda assim era presente. Adorava a presentear, nunca tiveram nenhuma discussão feia ou se agrediram. Felizmente, ela não teve que passar por isso assim como tantas amigas suas passavam por situações nem tão favoráveis quanto a dela.
O único defeito era que ele tentava a todo custo afirmar sua masculinidade. Praticava tiro, caçava animais, bebia destilado, tinha um grupe de amigos que se portavam como animais e tinha uma aparência desleixada, o qual só era remediado quando Laura – que nunca era chamada por esse nome – chamava sua atenção falando que ele não estava tão bonito. Ele era vaidoso, e a única coisa que trazia prazer na relação deles para ela era vê-lo cuidado e bem arrumado. Era o único homem que ela prezava o bem além do seu irmão, mesmo que tivesse falas problemáticas que por vezes eram carregadas por preconceito, reflexo direto de sua família elitista tradicional.
Mas os pontos positivos contavam mais, e por conta disso que ela o aceitou depois como seu esposo, e tiveram seu único filho. Muito porque ele sonhava em ser pai. Já ela, nunca sonhou em ser mãe e, para piorar, passou por uma depressão pós-parto severa, a qual admitia para si mesmo que, se não fosse pelo marido, não tinha conseguido passar por isso. Por conta disso também ela não quis realizar o sonho dele em ser pai de uma garota também e dar a herdeira perfeita para os negócios de família deles.
Ela e Igor tinham uma relação péssima. Enquanto ela e o marido se davam bem, seu filho soava como alguém à parte, deixando ele aos cuidados de babás ou para quem o reparasse no geral. Não admitia para ninguém, às vezes nem para si mesmo, mas não conseguia ter qualquer vínculo afetivo com ele.
Não que ela o odiasse, longe disso, mas ela não conseguia se conectar e o amar do jeito que deveria. Pensou que estivesse sendo mãe errado, e por isso o cercou com tudo o que ele mais queria junto ao pai. E esse foi o grande erro deles, e ambos admitiam.
Porque com isso eles não tinham percebido o comportamento errático do filho, que só foi piorando com o passar do tempo. Relevaram ele ter matado um gato ou outro, ou ter batido em colegas do jardim de infância. Ela não se importava o suficiente para perceber, e ele achava que isso era normal, afinal fora criado com a ideia de que homens eram violentos por natureza, e só estavam colocando isso para fora.
E só perceberam que as coisas não eram assim quando decidiram se separar. Não, quando ela decidiu se separar dele, porque ele a amava, mas ela não gostava mais dele. Já tinham se passado quinze anos desde que tinha começado a fingir para si mesmo que estava satisfeita com a vida que levava, mas não estava.
Ele aceitou a contragosto, e Igor, por ser muito apegado ao pai – a única figura que lhe dava o mínimo de atenção – tomou as dores para si ao presenciar o pai sofrendo pelo término, e por isso começou a repudiar a mãe. Repudiava por seu amor por ela nunca ter sido correspondido, e a frustração ter sido deixada de lado para dar voz à ira, e essa era desenfreada.
Mas, por mais que seu filho fosse um estranho ao ninho e a relação com outrora seu grande amigo por tanto tempo estivesse um tanto conturbada por mágoas passadas, ela ainda criava afeição por algumas pessoas ao seu entorno. Ao exemplo de Pedro, filho do caseiro da ala do suntuoso condomínio onde morava. Ela o adorava e, apesar da diferença notável de idade, o considerava um amigo próximo. Por muitos dias ele a ia visitar apenas para conversar, fazer companhia, acompanhar no lanche da tarde, sem contar que ele era um homem sensível e extremamente querido, cuidadoso, zeloso.
Via um grande futuro nele, e procurava o ajudar como podia, seja na questão monetária ou com incentivo para que ele terminasse a escola e fizesse alguma faculdade de que gostava, pra assim dar um futuro diferente aos pais, com mais conforto. Ela o admirava por ter alguma esperança de futuro e por ter tantas oportunidades para fazer diferente, coisas que ela não tinha mais.
— Senhora? – ela ouviu a voz dele chamar de fundo. Tinha se distraído por muito tempo divagando em seus pensamentos – Está tudo bem?
— Sim, Pedro, só... – jogou água em seu rosto, tentando se reanimar o máximo que podia – um minuto.
Laura ali nem era mais Laura. Era senhora, madame, ou Akemi Salles como era mais conhecida, muito por conta de que seu ex-marido costumava a chamar assim afirmando que aquele nome dava a sensação de imponência que ela merecia, enquanto Laura Oliveira dava a impressão de que ela era uma qualquer. Ele podia até ter razão, mas ela preferia definitivamente quando era ninguém e não precisava carregar ainda mais o peso de um nome.
Porque aquilo só sacramentava ainda mais que ela viveria e morreria naquela redoma de vidro.
Saiu do banheiro e deu um sorriso amarelo pouco convincente ao rapaz, que cerrou os olhos com estranheza.
— A senhora tem certeza que está bem? – ele esmiuçou ainda mais os olhos, e ela deu com os ombros.
— Vou ficar...vamos? – Laura, que pelo menos dentro de si ainda podia ser tratada assim, pegou a chave do carro e apontou para fora, e assim eles seguiram para as compras.
— A senhora anda bastante pra baixo ultimamente – ele perguntou de soslaio, cruzando as pernas – tem certeza que está tudo bem?
— São só questões da minha cabeça mesmo... – ela logo negou – esse tipo de coisa passa.
— Com todo o respeito, envolvendo seu ex-marido? – Pedro arqueou as sobrancelhas, mas Laura negou.
— Não, até que não – ela respondeu parando o carro no sinal – meu problema anda sendo o Igor.
Pedro revirou os olhos. Laura sabia da antipatia mútua que eles tinham um pelo outro, mas se fosse para tomar um lado, seria o de Pedro. Sabia muito bem que o filho fazia aquelas coisas por pura implicância e, tem que dissesse que por puro ciúme.
— As mães dos amigos dele vem conversar comigo sobre, que ele não quer saber de nada com a vida e leva os outros no meio, sem contar que agora ele deu de ficar saindo sem falar pra onde vai, ou o que faz...
— A senhora sabe bem como seu filho é – ele cruzou os braços e ela deu um suspiro cansado, voltando a acelerar.
— Eu sei bem disso, e esse é o problema – Laura o olhou de relance – não consigo mais controlar esse menino.
— E o pai dele? – Pedro voltou a falar.
— O Gui que veio reclamar disso também – ela virou a rua, indo no caminho ao supermercado – mas agora nem ele anda conseguindo controla-lo, por isso mandou pra cá pra ver se um tempo comigo faz bem pra ele.
— Mas a senhora já chegou pra conversar com ele? – ele levantou uma das sobrancelhas novamente, pensativo – Vai que a senhora em específico ele ouça.
— Não tem como ter uma conversa com aquele menino – Laura voltava a dizer em tom cansado – ele só grita fecha a porta e vai embora no carro que o pai dele deu. Não tenho estruturas pra me bater com os dramas dele.
— Mas se não for a senhora, quem mais vai falar com ele? – Pedro deu uma batidinha no queixo e se virou pra ela
— O Guilherme que deveria cuidar dessas coisas, não eu, mas ele insiste em dizer que se nós dois formos mais presentes, ele melhora. Como? Por mim, colocava ele num internato e acabou.
Ela sequer percebia como aquilo saía de sua boca, deixando Pedro levemente chocado. Laura, ou como costumava chamar, a senhora era sempre calma e contida, parecendo serena, mas quando se tratava do filho, era pouca conversa, principalmente com o tom amargo de suas palavras. Ainda, se pudesse ousar mais, falaria que ela não parecia se importar com o que ele fazia, e sim como isso a aborrecia. Em suma, a impressão era que não gostava.
Mas poderia uma mãe não gostar do próprio filho, que saiu do seu ventre?
Pedro a acompanhava nas compras porque ela sempre o ajudava com isso, fazendo compras para sua casa. Como alguém tão solícito teria um lado assim? Isso não entrava em sua cabeça, e por isso tinha convicção que era só uma impressão errada. Ledo engano.
Ao chegarem na casa dela de volta e ele a ajudar com as compras, se despediram e ela, na companhia de uma garrafa de vinho rose, começou a arrumação da casa par a festa que iria dar. Apesar de não ser fã de convenções sociais, desejava um pouco de diversão para a tirar daqueles soturnos pensamentos.
Até que seu pequeno minuto de paz foi interrompido pela chegada de Igor, batendo a porta assim que chegou, o que a fez revirar os olhos.
— Mãe – Laura ouviu a voz dele ressoar de fundo – Está aí?
— Sim, Igor, estou – respondeu de forma ríspida enquanto ele se aproximava, suado, proveniente de ter vindo do futebol. Ele transpirava, a camisa estava molhada e ele se encostava nas coisas indo pegar água na geladeira. Até mesmo essa mera ação a incomodava.
— Qual é a dessa festa? – ele perguntou em um tom risonho, apoiando-se na bancada americana. Ela, do jeito que estava arrumando a mesa, não se virou para responde-lo.
— Coisa entre amigos meus, nada demais.
Igor cerrou as sobrancelhas, dando de ombros. Se a mãe já não era muito comunicativa, naquele dia estava menos ainda.
— Posso chamar os meus...
— Não – ela respondeu mais ríspida ainda, e sua feição logo mudou.
— A senhora não deixou nem eu terminar de falar!
— Não quero seus amigos nessa casa, e de preferência, Igor – e se voltou para ele – nem você.
— Por quê não?! – ele começava a ficar furioso. Não tanto pelas duras palavras de sua mãe, mas sim por como ela o olhava. Aquela era uma atitude que estava se repetindo por mais vezes do que gostaria de admitir.
— Porque já estou tendo problemas suficientes contigo pra você estragar até isso.
— Então pra senhora eu sou o quê? – ele batia contra o peito, com a garrafa em mãos – Um peso pra não mostrar pros amigos?
— Já vai começar, Igor? – ela bateu na mesa, impaciente, e ele logo grunhiu – Acha que estou com paciência para seus dramas?
— Drama? – Igor vociferava – A senhora não quer nem ficar perto de mim e agora eu sou o dramático?
— Igor, já chega! – ela deu as costas – Não vou discutir contigo.
— Engraçado que praquele merdinha a senhora dá toda a atenção do mundo, agora eu...
Ela sabia bem de quem ele estava falando, e por isso mesmo que não aceitaria que o que ele tinha dito sairia impune. Tinha se tornado um acúmulo de mágoas e decepções de ambos os lados prestes a explodir. Laura cerrou os punhos, se voltou a ele e o estapeou no rosto, que virou brevemente para o lado.
Seu filho a olhou desacreditado. Ela, por outro lado, suspirou e foi embora para a sala. Igor mal piscava. Não sabia o que pensar, o que falar, como agir.
Em um primeiro momento ele não acreditou no que tinha acontecido. Depois, desejou chorar, mas não o faria porque ele era homem e homens não choram. Não entendia como sua própria mãe era assim com ele. Não era algo ocasional, e sim que foi piorando com o passar dos dias. O que ele tinha feito?
Quando fazia o certo e era obediente, ela não se importava, e quando ele não se importava com nada, ela parecia ligar menos ainda. Agora, quando ele expressava o que sentia, apanhava.
— Qual é seu problema comigo?! – ele gritou, mas não teve resposta. Nunca tinha. Ela o ignorava na maior parte do tempo, e sempre foi assim.
Ele cerrou os punhos e esmurrou a geladeira ao lado, esperando que ela falasse alguma coisa, mas sem ação. Não sabia como ainda acreditava que sua mãe poderia fazer diferente naquele dia.
Ela pensou que talvez tivesse sido dura demais com o filho. Estava estressada, desgostosa consigo, e possivelmente tenha descontado nele, mas assim que olhou para trás, não o viu mais. Sentou, respirou fundo e seguiu com o dia, como sempre o fazia. Um arrependimento a mais, outro a menos não ia mais a atingir.
E o resto, já se sabe.
Laura estava sentada na terceira fileira quando viu o menino que tanto estimava, com as mãos trêmulas, subir no palco armado e as pessoas ao seu redor correndo. Viu seu filho ser morto, mas não esboçou nenhuma reação.
Possivelmente porque sabia que também iria morrer, e não teve medo. Não correu, não fez menção a nada, e no meio do tiroteio, sentiu a bala atravessar seu peito, assim como outra, e outra...Até que caiu no chão, ouvindo o grito de tantas outras pessoas e corpos estirados em um mar de sangue.
Pensou que seria pior, mas se sentiu aliviada de não carregar mais o peso de ser ela mesmo. Não tinha nada mais a acrescentar. O que tinha para dizer de uma vida cheia de “e se”? Talvez, se tivesse outra vida, as coisas poderiam ser diferentes do que foram, com menos amargor, menos arrependimentos. Talvez fosse até uma mãe melhor, ou uma boa esposa se casasse com alguém que realmente amava. Uma filha ou uma irmã melhor, mais presente, não uma cheia de ressentimentos que procurava a qualquer custo fugir de si.
Mas, como em tudo na sua vida, já era tarde demais para poder fazer diferente. Aos poucos foi sentindo seus olhos pesarem até o ponto de fecharem.
E não se teve mais nada além disso.
Fim do capítulo
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