12. Desordem
Júlia sempre acordava mais cedo do que suas colegas de quarto. Abria os olhos, deixava sua mente vagar por alguns minutos sobre o que tinha que fazer durante o dia e se levantava sem fazer barulho. Finalmente tinha conseguido dormir e, ao olhar para Ana Clara dormindo serena, se levantou.
Ela tinha chego em casa naquela noite com aquela expressão nas nuvens de quando uma coisa ótima acontece com alguém. Não precisou dizer nada para saber que as coisas entre as duas tinham se resolvido, e Coralina lançou o olhar curioso para Júlia, que se prestou a dar de ombros sem dizer nada.
Confirmaria suas suspeitas ao chegar na escola e ver que Laura, antes taciturna e avoada, parecia outra pessoa. Até o tom vívido em seu roto tinha voltado, e ela ao ver Coralina, acenou para ela, sorrindo. Cora correspondeu só acenando e sentando ao seu lado sem dizer nada.
“Então estamos com um problemão”, disse Júlia para ela. Júlia não era do tipo que brincava, então tinha certeza que seu posicionamento não seria dado sem um bom embasamento.
Mas, como falaria disso com Laura? Era um assunto delicado que provavelmente a amiga não gostaria de discutir com ela, levando em consideração que isso fora sequer levantado ou dado indícios. Revisitava em sua mente algum momento em que houvesse desconfiança disso, mas nada vinha.
Pelo menos a amiga estava melhor, e se estava bem... Era isso que contava.
Já em casa, Ana Clara se encontrava de pé, tomando café sozinha enquanto Júlia adiantava o serviço doméstico pesado. Estava perto da hora do almoço e Júlia a olhou pelos ombros, notando seu olhar perdido que terminava em um sorriso acanhado com continuava com ela tomando o café e pernas apoiadas na cadeira à sua frente como sempre o fazia.
— E então? – Júlia perguntou quando voltou pra cozinha, chamando atenção de uma Ana Clara distraída, submersa em suas lembranças recentes – Como você está?
— Ah, estou bem, valeu por perguntar – ela sorriu para Júlia, que arqueou as sobrancelhas colocando as roupas no varal.
Fechou os olhos e se lembrou daquele momento. Cada detalhe daquele beijo, sua respiração ofegante e quente indo ao encontro da dela, o toque de suas mãos contra seu rosto, o sorriso no final daquilo tudo, as unhas que roçavam timidamente por suas costas...
— Não acha que deveria conversar com ela sobre nós?
A voz de Júlia chamou sua atenção, fazendo-a voltar para a realidade.
— Da gente? – ela apontou para ambas – Por que eu falaria? Você mesmo diz que não devemos comentar isso com ninguém.
— Digo isso porque acho que ela pode nos ajudar Ana Clara, levando em consideração todo o contexto de... – Júlia se voltou para sua frente – envolvimento de vocês.
Ana Clara exasperou e relaxou os ombros, passando a ponta dos dedos sobre a borda da xícara.
— Não, é muita coisa pra lidar – Ana Clara falou pesarosa - e parece que tudo resolver acontecer ao mesmo tempo...
— Mas isso foi a coisa mais diferente que aconteceu esses dias – Júlia disse cruzando os braços – não acha que seria bom tentarmos?
Ana Clara cerrou as sobrancelhas, séria.
— Deveríamos ou você acha que deve?
— Eu só estou dizendo o que acho, Ana, não estou impondo nada – ela gesticulava no ar – e outra, se ela gostar mesmo de você, pode até julgar no começo, mas depois ela vai entender. É só provarmos como fizemos com a Cora.
Júlia dizia em seu tom sério habitual, mas suas palavras atingiram Ana Clara de uma forma afrontosa, e não como uma mera conversa.
— Por que tem que ser o que você quer? Não foi você mesmo que disse pra fazer o que eu acho certo? – e bateu os dedos na mesa, fazendo Júlia seguir os movimentos com os olhos – E agora acho certo não falar nada pra Laura e seguir com minha vida do jeito que está.
Júlia revirou os olhos, e Ana Clara deu um riso sarcástico.
— Vem com um papo de que eu tenho que fazer o que quero, mas pelo visto é só quando convém...
A convivência harmoniosa durante os dias tinha feito Ana Clara esquecer da personalidade aquém de Júlia. Ela poderia ser uma companheira e tanto, mas não era do tipo de pessoa que levava desaforo, o que ficou explícito no momento em que ela apoiou as mãos na mesa e se aproximou de Ana Clara com o olhar sisudo de uma fera contrariada.
— Eu não estou aqui em colônia de férias, Ana Clara, eu estou tentando mudar a nossa vida e de dezenas de pessoas.
— Fala isso como se fosse minha escolha estar aqui tanto quanto você – ela respondeu entre os dentes, tentando parecer tão firme quanto, mas sem sucesso. O olhar sério entre as sobrancelhas cerradas de Júlia e seus lábios franzidos faria qualquer um tremer na base.
— Se a sua brincadeira de casinha significa alguma coisa pra mudar o nosso destino, nosso – ela apontou para ela e para Ana – e de tantas outros, o que te faz achar que não vamos aproveitar cada oportunidade pra isso?
— Então pra ti isso não basta de um meio pro fim? – ela dizia pressionando os lábios, magoada – Me deu apoio só porque acha que isso vai dar em alguma coisa?
Júlia deu com as mãos para o ar, sem querer acreditar no que estava ouvindo.
— Não é isso que quero dizer. Parece que eu estou manipulando toda a situação em meu benefício...
— E não está?
— Ana Clara – ela voltou com seu tom ameaçador, tentando ignorar as acusações feitas – se acha que tudo isso gira em torno do seu próprio umbigo, a errada aqui sou eu?
— Meu próprio umbigo? – Ana Clara ria com sarcasmo – Disse a pessoa que me deu apoio pra me envolver com alguém só pra ver no que vai dar!
— Você já estava envolvida – Júlia falou em um tom mais alto – eu não te obriguei a nada e não menti quando disse que acho que é o certo, mas acho que está se esquecendo de que não somos daqui!
— Agora eu que te digo – ela fala em um tom indignado – o que eu tenho a ver com as suas escolhas?
— Ana Clara, quer saber de uma coisa? – Júlia já mostrava ficar sem paciência com aquela conversa e deu com as mãos para cima – Essa conversa não vai dar em nada.
Ela estava saindo da cozinha quando ouviu a voz de Ana Clara sendo sarcástica mais uma vez.
— Difícil lidar quando alguém não obedece ao que você tem pra falar, né?
Era o mesmo que a atacar com uma vara curtíssima. Júlia normalmente ficaria calada perante tal situação e iria embora, voltando a falar só quando estivesse de cabeça fria, mas por que deixaria que Ana Clara falasse com ela daquele jeito e para piorar, colocando tudo a perder a troco de nada? Ela se continha, colocava filtro em suas palavras, mas ali, não.
Deixou a raiva se esvair e se voltou para Ana Clara, que logo percebeu que Júlia tinha tomado uma postura ainda não vista, como uma tempestade pronta pra destruir o que tivesse em sua frente, apontando o dedo em sua direção, os dentes cerrados e o olhar tomado por uma fúria desenfreada.
— Sabe por quê você fala isso? Porque não viu o que eu v e não passou por um terço do que passei – ela apontava o dedo frívolo no ar – No dia que sua família inteira ser assassinada na tua frente, vagar sozinha e com fome e passar anos com medo de dormir ou procurando respostas que nunca chegam você fala alguma coisa. Enquanto isso, Ana Clara se os teus caprichos são mais importantes do que as nossas vidas, eu que sou a egoísta daqui mesmo?
Ela nada falou, se voltando pra trás enquanto Júlia balançava a cabeça em negativa.
— Faz o que quiser da sua vida, se quiser continuar com isso o problema é seu – ela deu com os ombros – mas ao menos seja madura o suficiente pra assumir suas responsabilidades, e não distorcendo tudo pra tentar justificar as coisas.
E saiu da cozinha, a passos pesados até chegar na porta da frente, abrir e a fechar com a firmeza de alguém possesso pela raiva. Ana Clara revirou os olhos, empurrando a xícara para o centro da mesa, descontente. Uma discussão com Júlia era a última coisa que precisava.
Mas ela também não entendia como ela falava de forma tão insensível. Não se importava com os sentimentos dela ou de alguém, e sim somente em como isso ia afetar os planos. Porque tudo era resumido só naquilo...
Ana Clara cerrava os dentes, exasperando. Não queria brigar com Júlia, mas era mais movida à emoção do que podia controlar, e odiava ser assim. Levantou-se e foi embora da casa, deixando com que Júlia a olhasse de soslaio assim que saiu, bufando.
Achava-a uma egoísta mimada. Como ela preferia continuar fingindo mesmo vendo todo o esforço que ela e Coralina faziam diariamente pra tentar resolver aquele mistério sem sentido algum? Enquanto Júlia se dividia entre tarefas domésticas e investigações junto a Coralina, que também tinha mudado sua rotina para se encaixar no que acontecia, Ana Clara vivia um sonho adolescente de viver no passado e ter um amor.
Aquilo não era justo. Tinha certeza de que a relação delas queria dizer alguma coisa já que não aconteceria a esmo naquele local, mas ela preferia se enganar e engar a garota. Pensou que tivesse errado em dar apoio para que ela falasse com Laura, mas logo negou isso a si. Falou o que achava que era certo. Júlia não era de mentir e muito menos admitia ser contrariada por alguém que não compactuava.
Fechou as mãos, e respirou fundo. Não ia se deixar levar por aqueles pensamentos inoportunos de ódio que provavelmente a cegariam, mas não queria falar com Ana Clara até que ela percebesse que suas acusações foram movidas a puro ego e emoções distorcidas de alguém apaixonado que teme por sua relação recém-nascida e tenta a proteger a todo custo.
Refletiu que Ana Clara só estava com medo de que Laura a chamasse de louca, não com receio de que acontecesse algo com elas duas ou até mesmo com Coralina que compactuava com tudo aquilo. Mais uma vez sendo egoísta, mas dizem que o amor nos deixa cego, surdo e louco, e seria o suficiente para que Laura acreditasse no que tinha acontecido a elas.
Não queria admitir que possivelmente o destino delas e de tantas outras pessoas estavam nas mãos de uma Ana Clara apaixonada e no que fosse fazer com isso, mas era a verdade. Até aquele momento, o relacionamento das duas fora a coisa mais peculiar que tinha acontecido na rotina. Uma pelo óbvio: Ana Clara não pertencia a aquele lugar e pelo ponto de que, ao se envolver com Laura, indiretamente a empurrou para fora do que mantinha em segredo.
Era naquela hipótese em que Júlia se agarrava. De que naquilo sairia alguma resposta ou outra pergunta para o que estava acontecendo. Viver naquela teia minimamente entrelaçada de eventos passados atrelados ao futuro a deixava tensa, mas não podia sucumbir a tal sentimento.
Estava cansada e queria voltar pra casa. Pensava nos seus pais diariamente, na hora que acordava até a hora de dormir. Questionava-se se eles estavam bem ou se já tinham a dado como desaparecida quando a resposta era olhar para trás. Seria atrás mesmo? Passar tanto tempo ali já confundia o senso de tempo de Júlia, mas ela lidava com tudo aquilo em silêncio. Ninguém sabia dos seus temores, porém precisava deixar eles para lá e ser paciente até se ter alguma resposta. O que tinha a ser feito, fora feito.
Na hora da saída, Laura acompanhou Coralina até sua casa com o pretexto de sempre ir com ela até sua casa antes de seguir para sua, mas era a situação perfeita para que fosse ver Ana Clara. Ela ansiava para ver a garota, mas não podia falar para ninguém.
No entanto, sua frustração ficara evidente no momento em que não a encontrou em casa.
— Onde ela foi? – perguntou Coralina para uma Júlia taciturna, com as mãos espalmadas entrelaçadas apoiando seu queixo, e o olhar penet*ante em nenhum ponto específico além do seu campo de visão.
— Não sei – fora sua resposta, ríspida e cortante. Com isso Coralina logo percebeu que tinha acontecido alguma coisa entre elas, ou como costumava dizer, que estavam griladas uma com a outra.
— Vai querer entrar, Lalá? – Coralina disse abrindo o portão, mas ela negou assim que percebeu o olhar de Júlia pairando sobre o seu, como se dissesse nas entrelinhas que sabia de todos os seus segredos e não hesitaria em conta-los assim que ela pisasse naquela sala.
Mas também porque queria procurar por Ana Clara.
— É, não, eu...Já vou indo, até mais – ela acenou se despedindo e saiu em direção à rua. Sua bolsa de lado apoiada nos ombros, a sombrinha a postos em sua mão direita a protegendo do sol e o uniforme seguiam pelas ruas na procura de Ana Clara.
“Onde será que ela se enfiou?” pensou Laura olhando de um lado a outro das ruas em que passava até que veio uma boa hipótese em sua mente. Seguiu a passos rápidos até a pracinha perto de sua casa, e ali a encontrou no seu lugar preferido: o mesmo onde saíram pela primeira vez, naquela tarde quente descompromissada que era tão cheia de significado para ela.
Com as mãos escondendo o rosto, o corpo curvo e os cotovelos contra suas coxas desnudas pelo short folgado preto que usava e a regata listrada, Ana Clara resmungava consigo mesmo até ser interrompida em suas lamúrias por Laura, que se sentou ao seu lado.
— Perdida?
— Sim – dizia Ana Clara em uma voz baixa pouco característica dela. Sim, estava perdida no tempo, espaço, em suas relações, dentro de si mesmo...
— Brigou com a Júlia?
Ana Clara concordou, e Laura lançou um sorriso afável mesmo sem ela ver.
— Mal de irmão ficar brigando, né? – ela passou a mão na costa de Ana Clara como em um afago – Vivo discutindo com os meus...
— Não é tão fácil assim...
Não, não era. Júlia era o único elo que ainda fazia lembrar que estavam ali, e ela ainda tinha feito a besteira de enfraquece-lo, mas também não achava que seus sentimentos tinham que ser deixados de lado e focados em só uma resposta que nem se tinha certeza se seria dada.
Mas Laura não fazia nada daquilo, e continuou afagando as costas de Ana Clara, que levantou o olhar e sentiu uma inoportuna pontada em seu coração lembrando das palavras de Júlia.
— Logo vocês fazem as pazes, te garanto.
— É... eu espero.
— Posso te dar um abraço?
— Por favor...
Laura envolveu Ana Clara com seus braços e um abraço apertado em seguida. Ana Clara podia sentir a fragrância floral que vinha dos pulsos e pescoço de Laura, e fechou os olhos para poder aproveitar aquela sensação leve como uma brisa em uma tarde quente.
Segurou seus dedos contra a roupa de Laura, que sorriu. Parecia que tinha passado anos longe de Ana Clara e que tinha passado no momento em que sentiu seu toque novamente. Ana, por outro lado, sentia o amargor da omissão em sua boca.
Talvez Júlia tivesse razão sobre o seu papel, mas não sobre seu egoísmo. Não era egoísta, só não queria se machucar mais, tanto que esquecia do seu lugar naquele mundo, e Laura a ajudava a esquecer de tudo isso não como algo ruim. Fora a melhor coisa que aconteceu a ela durante muito tempo, e sentia o pesar em ver que as circunstâncias não eram nada favoráveis a elas.
Nada era favorável, mas não impedia daquele sentimento florescer ainda mais, sobretudo quando Ana Clara apoiou a cabeça em seu ombro e ali ficou, com uma intimidade de que tinha feito isso várias vezes, e não a primeira.
Laura se prestou a acalentá-la, apoiando sua cabeça na dela. A bochecha colada no topo da cabeça, o respirar fresco naquele começo de tarde quente, as mãos que insistiam em querer se entrelaçar, mas não podiam a olhos de terceiros. Era arriscado demais por mais forte que o desejo por isso fosse.
Ana Clara a olhou de relance. E se Júlia tivesse razão sobre ela a entender se gostasse, deixando para lá todo o temor que corria por suas veias e pulsava vívido? Não poderia fazer aquilo agora, mas não podia excluir a ideia que já rondava em sua cabeça.
Mas, assim que ficava com Laura, deixava de lado que ela era a Ana Clara de um lugar à frente. Ali, ela só era Ana Clara, vivendo seu passado futuro. E quando Laura estava com Ana Clara, esquecia que ela era Laura, a mesma com tantas expectativas em cima de si e que não correspondia por metade delas.
Ali, quando estavam ao lado uma da outra, não precisavam ser nada daquilo que os demais queriam que fossem. Podiam ser elas mesmas, como em um jogo de amantes que se despem lentamente procurando por cada parte do ser amado, sem existir outro lugar em que gostariam de estar.
Porém, apesar de estarem em seu mundo particular, não estavam distantes a olhos curiosos de terceiros que passavam na rua, principalmente em um perímetro movimentado como aquele na hora da vinda das pessoas para casa para o almoço.
Em meio a essas pessoas, José, irmão mais velho de Laura, passava a passos lentos para casa quando reparou a irmã com uma garota a qual ele nunca tinha visto. Era acostumado a vê-la somente com Coralina, mas nunca vira aquela moça a qual estava tão íntima em seu toque, como grandes amigas.
Não quis intervir, prestando-se a olhar de longe e seguir para casa. A irmã estava tão distraída que sequer olhava para os lados, só para a garota. Sabia que garotas eram próximas, mas achou estranho ela, uma pessoa tão fechada, estar assim com alguém. Possivelmente estava a acalentando de algo que tenha acontecido e por isso a abraçou. Deveria ser alguma colega de classe passando por um momento ruim.
Mas ainda assim, aquilo não fazia sentido. Nunca a tinha visto por aí, e ele conhecia quase todo mundo da pequena cidade, e também não poderia ser alguém que estava de mudança pra cidade logo no final do ano. Se fosse, não teria como ir para a escola, e Laura basicamente só andava da casa pra escola e vice-versa. Cogitou a ideia de que fosse amiga em comum de Coralina, mas voltava ao ponto de que nunca a tinha visto.
Aquilo soava mais estranho cada vez mais que ele pensava e decidiu, assim que chegou em casa, que conversaria com ela para tirar essa dúvida. Eles conversavam sobre quase tudo, e com aquilo não seria diferente.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 02/08/2022
Lá vem problemas meninas.
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