10. Linhas cruzadas
Só que o clima desconfortável estava imperado nas duas amigas. Coralina sabia o que tinha acontecido, mas não falaria mesmo percebendo que Laura estava mais calada que o habitual. A mesma também não comentaria o ocorrido.
A aula se seguiu silenciosa até o momento em que tiveram que formar uma dupla para um trabalho avaliativo. Como o esperado, sentaram-se uma ao lado da outra e Cora, usando de sua caligrafia rebuscada, anotava o que tinha no quadro negro enquanto Laura tentava disfarçar a tensão em seus ombros.
Falaram o básico do trabalho, mas a angústia em Laura começou a ficar ainda mais latente.
— Lalá, você está bem? – foi inevitável o comentário de Coralina, e ela exasperou. Podia ser boa em esconder muitas coisas de sua vida, mas nesse caso, estava sendo impossível.
— Estou, é só que... Posso ir contigo pra sua casa?
Coralina cerrou os olhos, e balançou a cabeça despreocupada.
— Não precisa nem pedir – e apoiou a mão em seu ombro – quer conversar sobre alguma coisa?
Ela negou veemente, e Coralina viu que não deveria insistir mais do que aquilo. Não era com ela que queria conversar, e sim com a figura apreensiva que olhava Júlia trabalhando no quintal, balançando os pés. Sabia que Ana não tinha dormido nada, rolando a noite toda no colchão ao seu lado, resmungando consigo, suspirando descontente. E, da hora que se levantaram até aquele momento, ela pouco tinha falado, o que era estranho para alguém tão comunicativo.
Era evidente que aquela conversa tinha mexido com ela, mas não por receio de sua sexu*l*idade ser expostas. Era aquela outra coisa que não poderia ser confirmada ou apontada até que acontecesse. Ainda assim, não gostava de vê-la naquela condição, e para distraí-la, atirou em seu colo um saco das verduras recém-colhidas.
— Vai fazer alguma coisa em vez de ficar pensando só besteira aí – Júlia disse em tom grave, e Ana Clara revirou os olhos, levantando-se.
— Não estou pensando em nada.
Era uma mentira deslavada, mas Júlia fingiu que acreditou. Continuaram fazendo as tarefas domésticas incumbidas e, após o lanche da tarde, Ana Clara estava varrendo a frente da casa distraída quando escutou o barulho do portão.
E deixou a vassoura cair em seguida, fazendo com que Júlia olhasse da cozinha o que tinha acontecido. Coralina entrava, mas Laura continuava paralisada olhando para uma Ana Clara tão surpresa quanto.
— Oi – ela acenou timidamente para Ana Clara, que deu um leve passo para trás. Coralina, por outro lado, foi até Júlia que já estava apoiada na porta, encarando-a.
— Laura, fique à vontade que eu...Vou resolver umas coisas com a Ju.
Laura sentiu seu corpo tremer de medo. O olhar intimidador de Júlia a congelava, mas Cora segurou seu braço e gesticulou com a cabeça que a seguisse, mas sem antes se voltar para Ana Clara com as sobrancelhas baixas esperando um tipo de aval para que pudesse sair ou não.
No entanto, Ana gesticulou para que ela prosseguisse e, meio contra sua vontade, o fez.
— No que está pensando, Coralina? – Júlia disse em tom baixo, mas ela continuou a empurrando para dentro de casa.
— Deixa elas – ela murmurou de volta – se acontecer alguma coisa de mais, a gente se met*.
Júlia olhou por entre o ombro Ana Clara ainda parada, mas logo se voltou a olhar para frente.
— Podemos...conversar? – Laura esfregava as mãos uma na outra, apreensiva. Tinha passado a noite pensando no que falar, como agir, o que fazer.
Já Ana Clara não esperava que ela fosse querer conversar com ela. Pensou que ela a xingaria, a expusesse, coisas até piores do que isso, mas não que quisesse ter uma conversa. E isso foi a que a amedrontou mais.
— É... claro – Ana Clara balançou a cabeça aturdida, tentando mascarar o nervosismo. Só que, pelo que tinha notado, ela não queria conversar sob a suspeita de olhares das duas, e ela compreendeu que era a melhor escolha.
Viu que ambas estavam distraídas, e a acompanhou saindo pelo portão, caminhando pela rua com as mãos no bolso, tensa. Porém, se quisesse sair dessa situação, teria que tomar a iniciativa.
— Olha, Laura, me desculpe por ontem, eu não...
— Como você sabe que é?
Ana Clara parou de caminhar, e a encarou com seriedade e confusão. Laura estava tão angustiada que não pensou duas vezes antes de fazer a pergunta crucial, sem se importar em como isso soaria.
— Que eu sei que sou?
— O que me falou ontem... – ela se virou para ela sem se aproximar – como sabe que é isso?
— Ah, eu não sei... – ela balbuciou de leve, procurando as palavras mais exatas que poderiam ser ditas – Eu... – e cerrou os olhos – quando percebi, já gostava de garotas. Só aconteceu.
— E como sabe que gosta delas mesmo?
— É... – Ana Clara ria nervosa, tentando entender o contexto da conversa – é quando pensamos nela de um jeito diferente, eu acho.
— E como é esse diferente?
— De querer, não sei... – ela dava com os ombros, apreensiva – beijar, estar perto, desejar, essas coisas.
Laura parou suas perguntas por um minuto, refletindo sobre o que tinha sido dito.
— Você não tem medo de gostar de mulheres?
— De gostar não – Ana Clara pressionava os lábios, sentindo seu coração acelerar – mas da reação das pessoas, sim.
Voltaram a ficar em silêncio novamente, esse quebrado por Laura.
— Sua família sabe?
Ana Clara concordou com um aceno, e o silêncio imperou novamente.
— E você não tem problema com isso?
— Eu acho que fazem a gente acreditar que é um problema – ela voltava a falar envergonhada por estar se expondo – e eu não acho que tenho algum problema, isso é...normal, totalmente normal, mas...Por que está me perguntando essas coisas? – a voz de Ana Clara voltou a ficar emotiva novamente pelo temor que aquilo acabaria em mágoa e acusações.
— Eu só queria entender como... – ela engoliu em seco – funcionava.
— Não está com raiva de mim?
— Não, Ana Clara – ela negou veementemente com a cabeça, com os olhos fechados – não é nada a ver com isso.
Ana Clara levantou uma das sobrancelhas, confusa.
— Então é a ver com o quê?
Ela deu um sorriso sem graça, cruzando os braços.
— Não é nada.
Péssima mentirosa, assim como Ana Clara, que até mesmo percebeu que tinha alguma coisa de mais ali.
— Eu vou indo, tá bom? Era só isso mesmo... – Laura deu um passo para trás, mas antes de se virar, viu que Ana Clara segurou seu pulso com delicadeza, encarando-a com uma seriedade tal qual de sua irmã mais velha de mentira.
Só que ela não tinha pensado em nenhuma daquelas probabilidades que estavam acontecendo, e falou a primeira e única coisa que passava por sua cabeça.
— Não vá embora, por favor.
Laura sentiu seu coração bater descompassado, e o ar faltar por alguns segundos, e possivelmente inebriada pela atitude impensada de Ana Clara, também falou o que passou em sua cabeça sem filtrar.
— Desculpe, é que... – ela abaixou a cabeça – ando passando por um problema.
— Que problema? – Ana Clara voltou a falar assertiva – Pode conversar comigo e...
— Não acho que tenha solução pro meu problema.
E o evento que se seguiu fora tão inesperado quanto as palavras tortuosas de Laura, que deslizou a mão até a de Ana Clara e a segurou com firmeza. Já Ana sentiu o ar faltar por alguns segundos e suas mãos tremularem.
Laura, ao perceber o que tinha feito, logo soltou sua mão e seus olhos encontraram o de Ana Clara, que estava levemente arregalados, os lábios entreabertos, mas logo desviou o olhar. A eletricidade entre os corpos era latente, exposto, e ambas não souberam o que fazer com isso além de se afastar.
E assim Laura saiu sem dizer mais nada. Já tinha dito o suficiente, e dessa vez quem ficava estática era Ana Clara, que sentia seu coração bater rápido e o calor tomar conta do seu corpo, deixando um pequeno filete de suor descer pelo seu rosto e aquela carga elétrica do toque descendo por cada parte sua, dos fios de cabelo que balançavam com o vento a ponta dos pés, que se contorciam perante o ocorrido.
Só que a cena não passou despercebida pelos olhos treinados de Júlia, que olhou para tudo aquilo ao longe assim que percebeu que elas tinham se afastado.
E qualquer um sabia o que estava acontecendo ali, inclusive Júlia, que ao ver Ana voltando para a casa com a expressão conflituosa de alguém que procura a todo custo cessar a enxurrada de emoções que percorrem sua mente.
— Ana – sua voz era concisa, e ela com o olhar baixo se voltou para ela, sem dizer nada.
Júlia respirou fundo, e cruzou os braços, indo até ao seu lado, para que o que fosse dito fosse ouvido só por elas.
— Só tenha cuidado, tá bom? – e Ana Clara se voltou com os olhos confusos para ela.
— Por que está me dizendo isso?
— Porque você é uma péssima mentirosa – ela deu com os ombros, a olhando de relance. Ana Clara respirou fundo, passando a mão no pescoço, assim como o fazia quando estava nervosa.
— Eu não sei o que fazer, sério... – procurou se sentar no sofá ainda com o coração disparado e as pernas trêmulas, e apoiou as mãos no rosto, respirando fundo. Júlia era muitas coisas, mas passava longe de ser uma conselheira amorosa. Ainda assim, se prestou a sentar ao seu lado e, com a pose rente, expirou baixo.
— Eu, Júlia, acho que ela gosta de ti – ela continuou com o olhar sisudo e palavras tranquilas que fizeram Ana Clara sentir seu rosto queimar, e levantou as mãos para o ar.
— Para com isso, Júlia.
— Eu estou falando sério – e se voltou para ela séria – Por que não conversa com ela?
— Como se fosse simples assim...
— Mas é simples – voltou a olhar para ela com seriedade – a nossa cabeça é que complica.
— E aí, Ana? – Coralina disse saindo da cozinha, indo logo se sentar ao lado delas – No que deu?
— Ah... – ela voltou a falar envergonhada – não sei, normal, eu acho.
— A Lalá não te falou nada demais? – Ana Clara negou com a cabeça, e ela respirou aliviada – É, eu imaginei, ela é muito mente aberta, só a família dela que são uns preconceituosos de merd*, com todo o respeito.
Júlia olhou de relance para Ana Clara, que voltou a ficar tensa, e se levantou.
— Só não consigo entender como isso influencia em alguma coisa, mas enfim... – Coralina se levantou em seguida – vamos comer?
— Estou sem fome – Ana Clara murmurou desanimada, mas Cora logo estendeu a mão para que ela segurasse e se levantasse.
— Saco vazio não para em pé, vamos logo.
E, a contragosto, Ana se levantou junto a elas e seguiram para a cozinha para ao menos por alguns instantes se desvencilhar daqueles acontecimentos.
Mas, enquanto Júlia e Coralina assistiam televisão com a família e conversavam sobre coisas ocasionais, Ana Clara olhava para a janela da sala, com o pensamento longe dali.
Na sua cabeça, uma cena se repetia com mais afinco do que gostaria.
“Meu problema não tem solução”. Ela entendeu isso do jeito certo? E, para piorar, toda vez que lembrava do toque de sua mão, sentia seu coração palpitar de um jeito que não queria que o fizesse.
Júlia tinha razão. Para aquilo, a única solução era conversar com ela sem se preocupar com os resultados porque, àquela altura, não era algo que estava no controle.
Aquele era o tipo de coisa que não tinha como conter, por mais que se desejasse, porque o desejo era outro.
E Laura tinha plena convicção disso, tanto que chegava a doer seu peito à noite, sozinha em seu quarto, com a imagem da forasteira vívida em sua mente. Todos os detalhes do seu rosto, da sua pele contra a dela, a sua voz... Até parecia poder sentir a presença dela em seu quarto.
Porque era exatamente isso que ela queria, mas não podia admitir em voz alta.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 26/07/2022
Só resta correr para o abraço Laura.
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