Capitulo 2. Sunshine
A sangue-frio fitou-a antes de afrouxar a mão no pescoço dele. Depois abaixou um pouco o braço e o soltou no chão.
O homem caiu. Encolhido, os joelhos dobrados, tossia e apertava a garganta com as duas mãos. Charlye deixou-o ali e se aproximou de Niamh.
- Você está bem? - perguntou delicadamente, bem diferente do tom que usara com Adam, passando a mão no rosto dela, carinhosamente.
- Estou. Obrigada... - fitava a morena, a respiração acelerada devido à mistura de emoções vividas ali.
Fitaram-se por alguns momentos. Que garota extraordinária era aquela jovem humana! Clifford não merecia sua compaixão e, mesmo assim, ela intercedia por sua vida.
Niamh queria fazer-lhe muitas perguntas, mas estava quase hipnotizada por aquele sorriso, por aquele olhar e pelo efeito das atitudes da morena. Que mulher era aquela...!?
O encanto foi quebrado pela voz esganada de Adam.
- Je... sus... - tossiu. - Vo... cê... - voltou a tossir.
Elas olharam para ele.
- Levante-se e suma daqui! E seja grato à Niamh, pela chance que lhe dei de continuar respirando - o tom de Charlye era de desprezo total.
Ele levantou arranhando a garganta, tossindo e massageando o pescoço. Fitou as duas e se afastou, saindo dali.
- Charlye... - Niamh chamou baixinho.
- Sim.
- Eu... nem sei como lhe agradecer.
- Já me agradeceu, antes.
- Nunca... será o suficiente... - pôs-se a chorar e Charlye a abraçou.
- Calma, Niamh, está tudo bem, agora, você está a salvo. Pronto. Ele se foi e não vou permitir que a machuque.
Elas permaneceram algum tempo abraçadas, até que ela se acalmasse.
- Ele pode não ser o melhor homem do mundo, mas nunca imaginei que fosse capaz de... - parou.
- Eu sei.
Ela fitou Charlye nos olhos.
- É a segunda vez que me salva... Nunca poderei agradecê-la o suficiente... E... também...
- O quê?
- Não sei como consegue aparecer na hora exata, nem tampouco de onde vem toda essa sua força.
Charlye sorriu, embevecida com a aparência ingênua dela.
- Niamh, ele não passa de um covarde canalha e não a merece. Você não precisa me agradecer mais, fico feliz de vê-la bem.
Niamh sorriu, um meio sorriso.
- Viu? É esse sorriso que ilumina tudo à sua volta. Você é meu raio de sol. My Sunshine.
Niamh balançou a cabeça para os lados, ainda mais encabulada, aquela mulher a desconcertava, às vezes.
- Mas... Você não estava fora? Não ia ficar duas semanas?
- Voltei antes, mas cheguei no início da noite e tive que lidar com algumas coisas - mentiu. Pretendia ir vê-la, amanhã, de dia. Então, vim passear no local em que a conheci para... ter um pouco de sua companhia - isso já não era uma mentira completa.
Niamh calou-se por um momento, surpresa com aquelas palavras que refletiam o que ela também pensara sobre a morena, ela também fora ali em busca da companhia de Charlye.
- Mas... - disse em seguida. - E quanto à maneira que levantou Adam, como se fosse um boneco...? E não me diga que eu o vejo mais alto do que é realmente, por ter ficado impressionada demais, com o susto...
Charlye riu.
- Não ia dizer isso.
Fitaram-se em silêncio. Charlye sorrindo, Niamh intrigada.
- O quê? Do que está rindo? De mim?
- Nunca. Venha, Niamh, vamos sair daqui. Depois conversamos - estendeu a mão e a loira aceitou.
Caminharam de mãos dadas.
- Parece que seu joelho está bem melhor, não está mais mancando.
- Ah, sim... foi só na hora, a dor da pancada.
- Fico feliz.
- Obrigada.
Quando chegaram ao carro da loira, ela parou, parecendo um pouco perdida.
- Eu... Acho que não devo... voltar para lá...
- Claro que não! Mas se quiser podemos ir buscar sua mãe...
- NÃO! Eu... falo com ela depois. Vou para um hotel.
- Claro que não, Niamh. Você vem para casa comigo.
- Mas... Eu não quero te dar mais trabalho.
- Não me dá trabalho nenhum, Niamh.
Niamh sorriu abertamente, pela primeira vez, desde o ocorrido com Adam.
- Ah, eu amo esse seu sorriso, My Sunshine, ele a ilumina e "me" ilumina.
Niamh desviou os olhos.
Charlye sorriu.
- Vamos. Eu dirijo.
- Seu carro tá do outro lado de novo?
- Isso.
Rúbia ficou feliz de ver a loira e horrorizada com a atitude de Clifford.
- Mas que rapaz horrível! Você não deve se casar com ele, criança! Espero que tenha arrancado as bolas dele, Charlote! - exclamou em seu sotaque espanhol, sentadas as três na sala da mansão, à luz da lareira.
Niamh riu.
- Eu pretendia, mas Niamh me pediu para poupá-lo - a sangue-frio respondeu com ar sombrio.
- Não devia, criança, ele não merece...
- Eu sei que não, Rúbia, mas não foi por ele. Eu jamais me perdoaria se Charlye tivesse que responder por um crime por minha causa. Mesmo que fosse a morte de alguém como Adam.
O ar sombrio abandonou o rosto da sangue-frio, ao mirar a loira.
A espanhola olhou para a amiga e pensou que sua expressão era meio surpresa e meio boba. Sorriu e assentiu com a cabeça.
- Nesse caso, Niamh, só posso louvar sua atitude.
Niamh e Rúbia bebiam, mas Charlye apenas fingia beber. Os alimentos humanos não eram próprios para ela e o melhor era evitá-los. Por isso, estrategicamente, Rúbia servira em copos de cor escura e o de Charlye apenas pela metade.
A espanhola ficara feliz em ver que Niamh estava bem, é verdade, mas também preocupada com a estadia da loira na casa.
- Mas, condessa, ela vai ficar... "aqui"?! - perguntou à Charlye, longe de Niamh.
- São somente por dois dias, até que o pai retorne para Nova Iorque. Ela disse que precisa conversar com ele pessoalmente.
- Entendo, mas... não acha melhor levá-la a outro lugar? Penso que Grace não se importaria em recebê-la, por um ou dois dias.
- Não. Ela fica aqui.
- E o que direi a ela, amanhã pela manhã, quando indagar por você?
- Não dirá nada. Eu estarei aqui.
- Você vai...?
- Vou.
Rúbia fitava-a, preocupada.
- Mas a condessa se lembra de que será somente por três dias, não é?
- Claro que me lembro. Não se preocupe, Rúbia, vai dar tudo certo.
- Você disse a mesma coisa daquela vez e quase morreu...
- Eu estou mais esperta dessa vez.
- Ainda ficaria menos preocupada se a enviasse à Grace.
- Grace é um amor de pessoa, mas quero Niamh aqui, me sentirei mais tranquila tendo-a por perto.
- Vai ao menos cuidar para que ela volte à Nova Iorque, exatamente no prazo de dois dias?
- Não sei ainda, Rúbia, ela quem precisa decidir o que deseja fazer. Mas... Espero, sinceramente, que fique comigo até a terceira noite.
- Vejam só que coisa... Para quem não queria ser babá...
- Não precisa tripudiar...
Após o terceiro drinque, a espanhola pediu licença às duas e se recolheu.
- Gosto dela, Charlye - Niamh disse de maneira espontânea.
- E ela de você.
- Ela é sua empregada... ou...?
- Ela foi empregada de minha família, mas eu a "libertei" - sorriu, arregalando os olhos. - Agora é uma amiga, meu anjo da guarda.
- Libertou? - Niamh riu.
- Rúbia é alguém especial, é muito leal. Conheceu a minha família ainda jovem, quando meus pais moravam na Europa - a sangue-frio não podia dizer que, na verdade, fora a ela que a espanhola conhecera em sua juventude. - Eles a ajudaram em uma situação ruim e ela nunca mais quis deixá-los. Assim, eu a herdei, mesmo quando quis libertá-la de sua "dívida moral", como ela diz.
- É bem bonita a amizade de vocês.
A noite foi longa, mas serviu para que elas soubessem um pouco mais da vida uma da outra. Niamh contou à Charlye sobre a pressão que sentia por parte dos pais, para se casar com Adam.
- Meu pai ia abrir falência, havia dois compradores em potencial, um era ele, mas papai sabia que ambos iriam desfazer tudo o que ele construiu. Havia os funcionários, muita gente dependendo dele... E ele me pediu, ao menos, para considerar as intenções de Adam...
- É muito sacrifício para pedir a um filho. Na minha épo... digo, antigamente isso era comum, mas hoje em dia...
- Antigamente, os pais não pediam, mandavam e pronto. Mas meu pai me pediu, pensando nos funcionários, todas as pessoas que estão com ele há tantos anos e também na nossa família, em minha mãe...
- E você não soube como recusar.
- É...
Elas estiveram caladas por algum tempo, Charlye pensava na tristeza que via no olhar da loira, na voz dela... Poder-se-ia pensar, em princípio, que Adam Clifford gostava da noiva, visto que não precisaria ficar com ela, só com a empresa. Porém, que espécie de amor era aquele, que comprava a outra pessoa? Que homem era aquele que queria ficar à força com alguém que não o amava? Que tentava estuprar a mulher com quem se casaria? E que espécie de pais eram os dela? Como podiam exigir-lhe tanto...?
Como se lesse os pensamentos dela, Niamh absolveu Jorge Hodge.
- Mas papai apenas me pediu, não "exigiu" e me disse que entenderia, se eu recusasse o compromisso - fitou a morena. - Tenho a certeza de que ele entenderia, sim.
Charlye amava aquele ar ingênuo dela.
- Tenho certeza de que sim, Niamh - mentiu.
- E que ele não vai gostar nada de saber o que houve esta noite...
- É... terá que dizer a eles. Tem certeza de que não quer falar com sua mãe? Talvez não seja seguro deixá-la sozinha com alguém tão violento...
- Você não entende...
- O quê? Explique-me, então.
Niamh suspirou longamente antes de falar.
- Adam... Eu o vi com a secretária dele, uma funcionária que ele tem aqui em LA... aquele dia que nos conhecemos. Eu vi os dois mais cedo, ela tinha ido lá para levar uns documentos pra ele assinar...
Charlye não contou que já sabia daquilo, pois ouvira no outro dia a discussão dos dois e a conversa com a mãe.
- Por isso chorava?
- Sim. E não. Com certeza não foi por ciúme, Charlye. Vê-lo com a secretária me fez pensar no que eu estava fazendo. Uma vida de mentiras, em um casamento sem amor... Mamãe ainda ficou do lado dele, me disse que homens são assim mesmo e que o amor vem com o tempo... - balançou a cabeça para os lados, desacreditada das próprias lembranças. - Quando conheci Adam, eu o achei um cara legal, educado, um gentleman, enfim... Mas nunca me interessei por ele. Com um pouco mais de convivência, aprendi o quanto ele é arrogante e vaidoso, eu vi atitudes dele que me enojaram... E na verdade, entre ele e o outro comprador, papai preferia o outro, mas Adam prometeu devolver a empresa ao papai, fazendo dele o sócio majoritário. Desde que eu fique com ele, é claro... É isso que eu sou, Charlye, uma moeda de troca, um preço a ser pago.... - suspirou. - E isso me fez sentir ainda mais nojo dele... Charlye, eu acho que ele só cismou comigo porque eu nunca o quis; ao contrário de outras mulheres, que se jogavam em cima dele, eu queria distância e isso mexeu com seu ego. Foi mamãe que me "incentivou" a sair com ele, mais do que papai, ele me dizia que eu é que deveria decidir, mas... Quer saber? Pensando bem, agora, acho que ele apenas se fez de mouco e deixou que ela fizesse o trabalho sujo... "Um excelente partido, um ótimo rapaz", ela dizia. Minha amiga... Minha melhor amiga, Jody, sempre me disse que eu não devia ceder às chantagens dos meus pais... Eu devia tê-la ouvido, desde o começo...
- Eu sinto muito, Niamh. Mas pelo menos agora você sabe exatamente do que ele é capaz e pode se livrar desse fardo que lhe impuseram.
- É, agora eu sei, e acho que não é só ele. Hoje, mais cedo, eu ouvi uma conversa entre ele e mamãe...
Ela hesitou um pouco, mas respirou fundo e se pôs a contar.
"Eu desci para o desjejum e me aproximei da sala de jantar, a porta estava aberta e ouvi Adam dizer meu nome, antes que eu entrasse.
- Obrigado por conversar com ela, foi ótimo, Sra. Hodge.
Parei para ouvir.
- Ela teria que entender, Adam, eu jamais a deixaria terminar nosso acordo. O importante agora é garantir o casamento, antes que ela mude de ideia.
- Garantir? Mas já está próximo.
- Mas depois do que houve, o melhor é garantir que ela não tenha como escapar. Se ela contar a Jorge que você a trai, ele poderá ficar do lado dela, mesmo em detrimento dos negócios.
- Entendi, Shirley. Mas... garantir como?
- Você sabe... Meu marido é um homem das antigas, se vocês consumarem antes, ele exigirá que se casem e Niamh não terá como recusar, ela não vai querer decepcionar o pai.
- Hmmm... Certo. Mas ela não quer fazer antes.
- Ah, Adam, você é um homem experiente, sabe como seduzir uma garota ingênua, como minha filha. Se você dormir com Niamh, ela vai me contar. Eu a incentivei a se casar virgem, depois que ela perder a virgindade, direi que ela está diferente e ela vai confessar. Eu me mostrarei horrorizada e a convencerei da necessidade de se casarem, antes que o pai dela saiba também e morra de desgosto.
- A senhora é um gênio! Shirley Hodge e um gênio!
- Apenas seja esperto, seduza-a aqui, antes que voltemos à Nova Iorque. E, na cabeça dela, o casamento de vocês estará praticamente realizado, sem margens para retroceder...
- Brindemos a isso!"
Niamh chorava, ao fim da narrativa.
Charlye estava penalizada por ela. Aproximou-se e lhe segurou a mão.
- Eu realmente sinto muito, Niamh. Acho que sua mãe tem muito a lhe explicar e isso eu não nego, nunca. Mas, apesar de tudo, ela não deve imaginar que ele chegou a tentar a violência.
Niamh fungou.
- Não importa, ela não merece nada de mim... Muito menos que me sacrifique, me casando com um cara que só me inspira asco.
O celular de Niamh tocou e ela o pegou.
- É ela.
Hesitou, mas atendeu. Falou rapidamente, dizendo apenas que não iria voltar, naquela noite, desligando em seguida.
- Chega. Não quero mais falar com ela ou sobre ela.
- Mudemos de assunto, então, Niamh. Venha. Quero mostrar-lhe algo.
- O quê, Charlye?
Charlye pegou-a pela mão e a levou a um tour pelas paredes do hall de entrada, da sala e ao longo da escada.
- Conheça os Corbyn.
A sangue-frio apresentou-a à dinastia de sua família, entre algumas gerações, trocando seus pais por antepassados e escondendo os títulos de nobreza.
- Nossa, Charlye, é muito bacana isso. - Niamh mostrava-se encantada, fazendo perguntas, atenta a cada explicação.
- Obrigada, por tudo, Corbyn. - disse, na alta madrugada, quando decidiram se recolher.
- Eu que lhe agradeço, Niamh. Havia muito que eu não tinha uma companhia tão agradável.
Despediram-se à porta do quarto de hóspedes que a loira ocuparia, mas sem vontade real de se afastarem.
Niamh acabou perguntando sobre algo que, realmente, a intrigava.
- Desculpe-me a curiosidade, Charlye, mas... De onde vem tanta força?
- É uma anomalia, na verdade, por isso, tento evitar usá-la, o mais que posso. Mas... Te explico isso outra hora. Pode ser?
- Claro, eu... apenas...
- Tudo bem, te entendo.
- Ok... Hã... Posso te fazer só mais uma pergunta?
- Duas - sorriu.
- Você me acha... boba ou... antiquada...?
- Claro que não. Por que acharia isso?
- Por eu ser virgem, aos vinte e cinco anos...
- Claro que não, Niamh, isso é a sua vida, sua intimidade, sua decisão.
- Não foi só porque mamãe me incentivou. Foi algo que eu quis. Porque eu decidi que seria com a pessoa certa. Mas...
- Mas?
- Essa pessoa ainda não apareceu, até... Agora. Salvo uma paixão de menina que não deu certo...
- Eu tenho a certeza de que o homem certo para você está por aí e você vai encontrá-lo, quando menos esperar.
- É... Eu também acho que... essa pessoa tá por aí... Boa noite.
- Boa noite, Niamh.
Charlye ainda ficou alguns minutos parada diante da porta fechada, os pensamentos em polvorosa.
Ela insistiu em dizer "pessoa" e não "homem"... Ahhh, por favor, vá dormir, Charlye Corbyn, e tire essas ideias da sua cabeça...
Niamh encontrou uma camisola preta sobre a cama e ficou admirando a decoração do quarto amplo. Era tudo lindo, mas muito sóbrio, assim como o resto da mansão.
Na manhã seguinte, elas acordaram tarde, mas Rúbia chamou Charlye um pouco antes da loira despertar.
O quarto escuro, protegido da luz do sol por grossas cortinas, seria como qualquer quarto da mansão se, ao lado da cama, não houvesse um caixão, cuja tampa foi aberta por fora.
- Bom dia, bela adormecida - a espanhola cumprimentou-a, brincando.
Vestindo uma camisola preta, Charlye sentou-se no caixão.
- Bom dia, mas... Bela adormecida?! Faça-me rir, estou bem longe de ser uma princesa inocente. E por falar nisso, Niamh já acordou?
- Não, condessa, mas eu resolvi chamá-la antes, para lhe dar a chance de dizer a ela que já tomou seu desjejum antes que ela acordasse, assim você não precisa comer.
- Obrigada por sua preocupação, Rúbia, mas seria muita indelicadeza de minha parte.
- Eu posso acompanhá-la, depois.
- Sei que sim, Rúbia, mas você entende que faz muito tempo que não tenho outra companhia, além de você e, às vezes, minha amiga Grace? Ainda mais uma assim... Como "ela"?
Rúbia sorriu.
- Está bem, condessa, eu entendo sim. Claro que eu entendo.
- A única coisa de que preciso agora, minha amiga, é da poção mágica da bruxa Darla.
- Eu sei. Aqui está. - a velha espanhola sacou a poção do bolso e a estendeu para a sangue-frio.
Charlye pegou o frasco cor de âmbar e sorriu, recordando-se das recomendações da feiticeira.
"- Está pronta para isso, condessa? Você perderá um poder e ficará mais fraca, a cada dia, precisando dormir por três dias depois, para uma pronta recuperação.
- Estou sim, Darla.
- Lembre-se, condessa. Um gole e você poderá suportar a luz do sol, por três dias seguidos. Apenas um gole é o suficiente, nada mais do que isso ou a poção terá um efeito contrário e você poderá dormir por muito tempo.
- Certo. Muito obrigada, Darla. Eu estou realmente feliz por poder ver o sol novamente.
- Sim, mas se atente a essas palavras: "VER a luz do sol", não "TOMAR sol", como qualquer mortal. Os raios queimariam sua pele.
- Entendi.
- Tome um gole, proteja-se e verá a luz, por três dias.
- Muito, muito obrigada, Darla, minha amiga!"
Tomou apenas um gole da poção mágica e, em poucos segundos, levou as mãos ao estômago e se dobrou sobre si, gem*ndo. Doíam-lhe as entranhas e, ao mesmo tempo, um forte enjoo acometia-lhe.
Quando Niamh acordou, encontrou uma muda de roupa cinza em seu quarto, uma calça e uma blusa de manga comprida. Sorriu. Dormira direto, nem parecia que havia acontecido aquele terrível confronto com o crápula do Adam...
Mas queria mesmo se esquecer de tudo aquilo. Abriu a janela, descerrando as grossas cortinas e sorriu ao ver que o sol brilhava. Perfeito para um passeio, apesar do frio. Era bonito o exterior da propriedade, havia um amplo jardim, que devia ser bem florido na primavera.
Charlye a esperava, toda vestida de preto.
- Bom dia, Niamh. Dormiu bem?
- Bom dia! Estranhamente, sim. Acho que aqui, na sua casa, sob sua proteção, eu relaxo, me sinto segura.
- Que bom. Fico deveras feliz em ouvir isso. Está com fome?
- Morrendo!
- Ótimo, Rúbia esmerou-se para preparar um desjejum saboroso para nós.
Quando entraram na sala de jantar, Niamh pôde confirmar o que Charlye dissera.
- Nossa, Rúbia, você realmente caprichou! Essa mesa está digna da realeza!
- Pelo menos da nobreza, eu sei que está - Charlye brincou.
- Obrigada. Espero que gostem de tudo. Se me derem licença, tenho afazeres, mas podem me chamar se precisarem de algo mais.
- Não come com a gente? - Charlye perguntou.
- Não, obrigada. Eu já tomei meu desjejum, mais cedo. Com licença.
- À vontade, Rúbia. Obrigada.
Ela se retirou e elas se puseram a comer, com muitos elogios aos dotes culinários da espanhola.
Porém, o que Niamh nem desconfiava era que Charlye não encontrava prazer algum naquele ato. Para a sangue-frio, alimentar-se da comida dos humanos era o mesmo que comer terra ou papelão. Por isso, ela comeu devagar e pouco. Com o café ela usou do mesmo artifício que usava com qualquer bebida, serviu-se de pouca quantidade e apenas fingiu sorver o líquido. De fato, beber não era uma opção porque, se o alimento sólido lhe daria um revertério em questão de hora, o líquido a faria passar mal quase que imediatamente, como acontecera pouco mais cedo, com a poção mágica da bruxa Darla.
Em determinado momento, Niamh percebeu o olhar sorridente de Charlye sobre si e perguntou.
- O que foi?
- Eu gosto do seu sorriso, é um raio de sol, você é um raio de sol para mim.
- Você sabe que consegue me encabular, de um jeito único?
- Eu me desculparia, se não achasse isso muito bonitinho.
Niamh riu e balançou a cabeça para os lados, baixando o olhar e tratando de mudar de assunto.
Após comerem, Niamh quis ver o lugar, à luz do dia.
- Podemos? Eu espiei pela janela e sua propriedade me pareceu muito agradável, à luz do sol.
- Ahhh... claro que sim. Eu apenas vou pegar algo...
Niamh também foi ao seu quarto, pegou o casaco e as luvas porque fazia frio, mas surpreendeu-se com Charlye, que, além de mais agasalhada, voltou com um chapéu preto de abas largas e uma sombrinha da mesma cor.
- Espero que não se importe com minha indumentária, mas eu não posso tomar sol, Niamh. Por causa de uma doença rara de pele.
Niamh pensou que aquilo explicava a alvura extrema de suaa pele e, talvez, a preferência por roupas escuras...
- Ah, claro que não... Eu acho que você ficou muito charmosa assim.
- Obrigada. Você é muito gentil.
A loira aproximou-se dela e a fitou nos olhos.
- Mas é verdade. Você é uma mulher muito atraente e esse chapéu... Dá um charme a mais.
Niamh pensou que aquilo era a coisa mais verdadeira que já havia dito para alguém, na vida. Mas a demora da resposta da morena quase fez com que se arrependesse.
Os olhares dela ficaram presos, um no outro. Charlye gostou de ouvir o que ela dissera, porque sentiu sinceridade nas palavras e no modo como a fitava.
- Não mais do que você - a sangue-frio respondeu, finalmente.
- Eu?! Ah... Que nada... - a loira afastou-se, em direção à porta, visivelmente encabulada. - Vamos, então?...
Andaram um pouco, conversando sobre coisas sem muita importância e outras mais relevantes. Niamh falou sobre seus sonhos, inclusive um de menina, de encontrar um príncipe.
- É verdade, eu achava que, um dia, encontraria um príncipe num cavalo branco, igual nos contos infantis.
Charlye a ouvia, enlevada.
De repente, Niamh aproximou-se e se pendurou no braço da mão com que a morena segurava o cabo da sombrinha aberta.
- Sabe, Charlye, esse passeio assim, sob essa sombrinha, nesse jardim extenso, nesse dia calmo...
- Sim...?
- Não se ofenda, mas parece que viajamos no tempo, parece aqueles filmes de época... Sabe... ?
- Sei, sim - parou e a fitou nos olhos. - E por que me ofenderia?
- Eu não sei...
Um barulho de carro chamou a atenção de ambas.
Elas voltaram para junto da casa. O carro teve permissão de Rúbia e estacionou à porta da mansão.
Shirley Hodge desceu e foi ao encontro delas, que já estavam a meio caminho.
- Mamãe...?
- Bom dia, senhora Hodge.
- Bom dia - o tom era seco e ela não fitou Charlye, olhava apenas para Niamh. - Eu sabia que a encontraria aqui. E vim buscá-la.
- Perdeu seu tempo, mamãe, eu não vou voltar com a senhora.
- Eu não vim discutir, Niamh. Coloque suas roupas, agradeça a hospitalidade dessa bondosa senhorita e vamos.
- Você não está falando com uma criança, mamãe. Já disse que não vou.
- Pois tem agido como criança. Isso não tem o menor cabimento, Niamh, abusar assim da hospitalidade de uma estranha e deixar a mim e a seu noivo esperando.
- Meu ex-noivo.
Shirley teve um movimento de impaciência com a cabeça.
- Posso falar com minha filha, a sós?
- Não. Charlye fica.
- Mas o que é isso, Niamh? O que tivermos para falar não deve ser dito na frente de estranhos. Não se deve tratar de assuntos de família na frente de terceiros.
- Charlye não é uma estranha, é minha amiga.
- Hãaa... Tudo bem, Niamh, sua mãe tem razão, converse com ela, eu estarei logo ali.
Charlye afastou-se o suficiente para um mortal não ouvir a conversa, mas ela não era mortal, era uma sangue-frio e podia ouvir tudo daquela distância.
Percebeu, porém, que sua superaudição começava a falhar. Era o poder que perdia em seu primeiro dia de poção da bruxa Darla.
Maldição! Odeio restrições humanas... - irritou-se, apurando o ouvido.
- Isso não é jeito de falar com sua mãe. E que roupas esquisitas são essas? Parece um defunto, toda de cinza. - o desprezo era evidente, na voz da Sra. Hodge.
- Mamãe, a senhora é inacreditável! Vá embora, já disse que não vou com você e pronto!
- Não diga bobagens, Niamh. Vamos voltar e conversar. As coisas podem ser resolvidas.
- Não, não podem mamãe. O que Adam me fez, não pode ser resolvido.
- Minha filha...
- Ele tentou me estuprar!
Shirley parou por um momento.
- O que está dizendo?
- Isso que você ouviu. Charlye me salvou. Se não fosse por ela...
- Eu não acredito em você.
- Que ótimo... Mas por que será que não estou surpresa? Pergunte à Charlye, se não acredita em mim.
- Não pergunto nada a essa Charlye, eu nem a conheço e certamente é ela que está virando sua cabeça contra sua família. O que disse a ela? Que você é uma coitadinha? Que está fazendo um sacrifício enorme? Ela concordou em mentir por você, para que não se case com "quem não ama"?
- Vá embora, mamãe!
- NÃO! VOCÊ VEM COMIGO! - aos gritos, Shirley pegou o braço dela e tentou puxá-la.
- NÃO VOU, MAMÃE, NÃO VOU, ME SOLTE! - Niamh desvencilhou-se da mão da mãe.
- VEM, SIM!
Elas não perceberam, mas Charlye aproximou-se delas rápido demais, usando sua supervelocidade, e se colocou entre elas, falando calmamente.
- Senhora Hodge, não faça isso. Niamh tem motivos para não querer voltar.
- Não adianta, Charlye, eu disse a ela o aquele filho da puta fez, mas ela não me acredita! MINHA PRÓPRIA MÃE NÃO ME ACREDITA!
- É verdade, senhora Hodge. Eu mesma vi. Pode acreditar.
- Eu conheço minha filha, você está virando a cabeça dela contra mim, contra nossa família! Até "palavrão" você fala agora, Niamh?! Só espero que volte à razão, antes que seu pai venha a saber desse seu comportamento. Saiam da minha frente!
Voltou para o carro e saiu da propriedade.
Elas ficaram olhando o carro afastar-se. Charlye segurou-a delicadamente pelos ombros e fitou os olhos azuis.
- Você está bem, My Sunshine?
- Estou... Eu não quero chorar por causa dela... Não agora.
Charlye assentiu com a cabeça. Sentia orgulho daquela jovem mulher, que começava a amadurecer, de forma tão drástica.
Porém já se passara uma hora desde que tomaram o desjejum e ela começava a se sentir enjoada.
- Vamos entrar, sim? Eu me ressinto do sol.
- Claro, me desculpe...
- Não há o que desculpar, Niamh.
Charlye pediu licença para descansar um pouco. Rúbia a seguiu até o quarto dela.
- Ahhh... Rúbia, minha... amiga...
Ela correu para o banheiro e vomitou tudo o que havia comido, ao café. Rúbia ficou ao lado dela.
- Calma, minha querida, você vai melhorar.
Meio zonza, a sangue-frio deitou-se em seu caixão.
- Tenho a impressão de que não tenho mais entranhas...
- Durma um pouco, vai acordar melhor.
Quando acordou, duas horas depois, Niamh lia um livro da biblioteca dela, na varanda. "The handmaid's tale", de Margaret Atwood. Ela tinha amado a biblioteca de Charlye. Havia uma imensidão de títulos, de todos os gêneros.
A sangue-frio assomou à porta, observando-a. Como era linda...
Após alguns minutos, Niamh deu-se conta de que era observada.
- Olá. Está melhor? - disse levantando-se.
- Estou sim, obrigada. Mas não quero interromper sua leitura.
- Espero que não se importe, Rúbia me autorizou a entrar e escolher qualquer título. Aliás, amei sua biblioteca, difícil até de escolher um só, em meio àquela imensidão de livros.
- Claro que não me importo. Excelente escolha, aliás. "O conto da aia"...
- Você já o leu?
- Já sim, adorei.
- Estou amando. Faz um tempinho que está na minha lista, após me apaixonar pela série - fechou o livro. - Mas estava lendo apenas enquanto você dormia.
- "Enquanto você dormia" é o nome de um filme muito bonitinho.
Niamh riu.
- Verdade. Com Sandra Bullock e Bill Pullman. Apenas amo.
Charlye sorriu.
- O que você quer fazer agora, My Sunshine?
- Eu não sei. Você não tem nada mais sério para tratar, além de mim?
- Não.
- Bom, sendo assim... Eu pensei em jogar - disse, desviando os olhos do olhar intenso de esmeraldas sobre si. Aquele olhar provocava "coisas" dentro dela.
- Jogar? O quê?
- Xadrez. Eu vi que tem um jogo na biblioteca.
- Sério? Você joga xadrez, Niamh?
- Como assim? Eu não tenho cara de quem sabe armar estratégias?
Charlye riu.
- Não é nada disso. Está bem, vamos jogar uma partida.
- Ótimo. Quero ver do que você é capaz, Charlye Corbyn. - a loira brincou.
Elas colocaram o tabuleiro na mesa da sala e estiveram entretidas durante algum tempo.
Charlye surpreendeu-se com a habilidade da adversária. Venceu, mas teve muito trabalho.
A partida também serviu para que elas se observassem. Uma flagrou um olhar da outra sobre si, mais de uma vez. Ambas estavam amando aquela manhã passada na companhia uma da outra.
- Vou querer uma revanche, Srta. Corbyn.
- Com prazer, Srta. Hodge.
Rúbia queria que ela não almoçasse, que desse a desculpa de não estar se sentindo bem. Mas Charlye estava decidida a ir até o fim.
- São só três dias, Rúbia, nada mais. Eu os quero completos, para guardar na memória.
Charlye comeu pouco, conversando com ela, observando-a comer, seus movimentos, seu riso, sua intensidade, a vida transbordando de seus poros.
Uma hora após o almoço, o ritual do enjoo repetiu-se, mas dessa vez ela dormiu menos. Tal ritual se repetiria durante os três dias. E a cada dia, ela ficaria mais fraca, perdendo um poder, diariamente, conforme a bruxa Darla lhe avisara.
À tarde foram ao shopping, Charlye queria aproveitar para ver os mortais, à luz do dia. Niamh aproveitou para comprar algumas coisas. Charlye riu consigo, Niamh era mesmo uma garota do seu tempo. A sangue-frio não demonstrou o cansaço que sentiu ao esperar por ela, nas lojas. Até porquê estava adorando vê-la desfilar as roupas à sua frente, em cores alegres, ao contrário do preto e do cinza que lhe emprestara.
- Do que está rindo? - Niamh perguntou quando caminhavam para a praça de alimentação.
- De nós, mulheres. Esse ritual universal das compras. Você "só" está levando essas peças, que não são poucas, mas experimentou trocentas.
- Verdade - Niamh riu também. Mas depois perguntou preocupada. - Exagerei, né? Você deve ter se cansado.
- Não, My Sunhine, eu amei vê-la em cada peça.
Niamh sorriu, tímida. Charlye realmente sabia como desconcertá-la.
Corbyn recusou o lanche, mas divertiu-se apreciando-a lanchar, pensando que a loira parecia resolvida a saborear donuts pelas duas.
- Você devia comer algo, Charlye - Niamh preocupava-se com sua saúde.
- Não se aflija, não estou com fome, mas como em casa, assim que chegarmos.
Ao fim da tarde, elas foram andar na praia, de onde podiam ver o penhasco que as reunira.
- Você tem certeza, Charlye? Você deve estar cansada, nem comeu nada. E o sol...
- Está mais fraco agora, é o horário ideal para um passeio ao ar livre, assim como pela manhã, hoje cedo. E eu realmente não estou com fome, ainda.
Ela queria ver o sol.
Estavam agasalhadas para o frio, com roupas escuras, as roupas de Charlye. Ambas usavam cabelos soltos, Niamh vestiu uma touca sobre eles e Charlye usava o mesmo chapéu da manhã.
Ao contrário do shopping, a praia estava quase deserta, não era a temperatura preferencial para um passeio, para a maioria das pessoas. O vento frio balançava as pontas dos cabelos e das roupas delas. Elas se espremiam embaixo da sombrinha que Charlye segurava, Niamh pegou no braço dela, como fizera pela manhã. Elas estavam gostando da proximidade que desfrutavam, falando de coisas bobas, rindo à toa, apreciando a paisagem, as ondas quebrando na praia, o cair da tarde, era lindo o findar do dia.
Charlote Corbyn quase se esquecera das sensações de viver... Mas nada daquilo faria sentido, se não fosse a companhia de Niamh Hodge. Era ela que lhe fazia ferver o sangue novamente, que lhe causava arrepios aquecendo sua pele gelada, que fazia correr fios de lava em sua espinha, que revolvia seu estômago, como se revolvesse pequenos vulcões.
Eram as sensações que seu corpo esquecera, que sua alma perdera...
E eram as mesmas sensações que ela provocava em Niamh, que também se sentia mais viva perto dela, vendo ainda mais beleza à sua volta, estando ao seu lado.
- Uma estrela do mar! - Niamh exclamou, de repente, soltando-se dela e se abaixando para pegar o estranho e belo animal aquático. - Não é linda, Charlye?
- Linda...
Niamh percebeu que ela se referia a si, mas fingiu não entender, a timidez, mais uma vez aparecendo. O que aquela mulher tinha que a deixava daquela forma, toda atrapalhada?
- Vou devolvê-la.
- Faça um pedido, antes.
- Um pedido?
- Uhum. Ele vai se realizar.
Niamh riu, incrédula, mas gostando da brincadeira.
Ela fechou os olhos e fez um pedido.
- E você?
- Você a achou, a sorte é sua.
Niamh devolveu a estrela ao mar e voltou para junto da morena.
- Quer saber o que eu pedi?
- Quero, mas não devo. Guarde segredo ou não se realizará.
Niamh sorriu.
- Você não acredita mesmo nisso, não é?
- Piamente.
Niamh riu, incrédula.
- Sei...
Charlye deteve-se no rosto dela, hipnotizada por aquele olhar azul. Tirou alguns fios loiros do rosto dela, com delicadeza.
- Você é tão bonita, Niamh. Como um raio de sol.
Niamh ficou séria, fitando-a.
Os olhares ficaram presos e as bocas aproximaram-se devagar. Foi apenas um roçar de lábios macios, o primeiro gosto, ao primeiro toque, o suficiente para saberem ser o que desejavam, o que sonharam.
Fitaram-se, os rostos muito próximos, toda a atenção e visão, todos os sentidos concentrados apenas na outra, o resto do mundo apagado, os olhares escorregando dos olhos para a boca de lábios sedosos, desejosos de senti-los novamente.
As bocas aproximaram-se uma segunda vez, irresistíveis ao magnetismo que as atraía. Outro roçar, mais intenso dessa vez, o abrir dos lábios, um novo toque, um novo encontro, uma nova maciez, as línguas de gosto ímpar, um novo acender de brasas, de um fogo pujante.
Tudo o mais perde o poder da existência, existem apenas aqueles dois seres, naquele momento acrônico e mágico, não a magia do sobrenatural, mas a magia da natureza, do desejo humano, de caráter carnal e espiritual.
As respirações aceleraram-se substancialmente, as mãos apertaram o outro corpo, querendo, cada par, reter a outra mulher para si, desejando experimentar sua pele e seu corpo da mesma forma que a língua provava os recantos da boca da outra mulher.
O beijo suave transformado em intenso, gradativamente, no contato crescente, à medida que se experimenta e se apaixona pelo sabor, à medida que se perde a consciência do resto para se viver somente dentro daquela boca, daquele gosto...
Separaram-se com a respiração acelerada, os olhares ainda capturados, o corpo aceso, as entranhas em polvorosa, os braços ainda envolvendo o outro corpo feminino.
Niamh fitou sua boca, os lábios semiabertos. Ela não era gelada por dentro. Sua boca era quente, a língua dela tinha uma brasa viva, que acendia todas as brasas em seu corpo, até as mais escondidas, nos lugares mais íntimos. Que mulher era aquela? O que ela tinha que a derretia como lava? Afastou-se temerosa. De sentir o que sentia por outro ser humano. Queria-a para sempre. Como podia ter certeza do infindo, com alguém que acabara de conhecer?... Havia tanta força, tanta energia emanando daquela mulher.
Quem é você, Charlye Corbyn? - questionava-se em pensamento, olhando o mar, de costas para ela.
Charlye fitava-a, capturando seus movimentos, registrando cada mínimo gesto, enlevada por aquela mulher de aparência frágil, de jeito ingênuo, mas de tanta coragem e que possuía uma luz própria que incidia sobre ela, inflamando seu corpo, aquecendo seu interior, iluminando sua escuridão.
O sol acabou de se pôr, escondendo-se em definitivo atrás da linha do mar.
- Não é um espetáculo? - Niamh perguntou, apreciando, ainda de costas para ela.
- O maior de todos.
Niamh não sabia se ela estava mesmo se referindo ao pôr do sol, ao se virar e encontrar o olhar dela sobre si.
- Podemos ir embora? - Niamh perguntou, voltando-se, sem encará-la.
- Eu ia propor a mesma coisa. Estou cansada.
Charlye fechou a sombrinha.
- Noite. Esse é o meu momento. - falou em tom de brincadeira.
Niamh sorriu, mas percebeu que as palavras dela encerravam alguma verdade.
A morena estendeu a mão. Niamh a segurou e, de mãos dadas, elas caminharam silenciosamente para o carro.
Niamh estendeu a mão, pedindo a chave.
- Eu dirijo dessa vez.
- Sim, senhora.
Riram.
- Quando eu era criança, meu pai me trazia sempre para ver o mar - a sangue-frio exclamou, já com o carro em movimento.
Niamh sorriu.
- Posso imaginar você criança correndo na areia.
Charlye sorriu também.
- Pode?
- Uhum. Sua doença ainda não tinha se desenvolvido, não é?
- Não, Sunshine, nessa época eu tinha uma vida e pensava que ela seria eterna. Mas vamos falar apenas de coisas boas. Em criança, eu gostava muito de brincar na areia...
Conversaram descontraidamente, até chegarem à casa.
Niamh estacionou em frente e elas se entreolharam. A sangue-frio sentia uma enorme necessidade de se alimentar. Mas a vontade de estar junto à Niamh era ainda maior.
- Você está bem, Niamh?
- Estou. E você?
- Um pouco cansada... preciso me deitar um pouco.
- Então vamos entrar.
- Eu só queria ter certeza de que não está zangada ou assustada.
Niamh sorriu de um jeito engraçado.
- Nem uma coisa nem outra. Apenas... um pouco confusa...
- Não precisa acontecer de novo, Niamh, não precisa acontecer nada que você não queira.
- Mas eu quero. Isso que me está deixando confusa, Charlye. Eu nunca antes tinha me sentido atraída por outra mulher. Mas... com você... - suspirou. - Você mexeu comigo, desde a primeira vez que a vi, aquela noite no penhasco.
Charlye queria beijá-la mais do que qualquer coisa. Aproximou-se mais dela e os olhos se encontraram. Podia sentir a respiração dela acentuar-se.
Niamh queria beijar aquela boca de lábios frios que se esquentavam tão rápido, ao seu toque.
Elas se deixaram levar por aquela atração exercida em seus corpos e refletidas em suas bocas. Um beijo suave, mas ao mesmo tempo ardente, os lábios da humana doando vida aos lábios da sangue-frio. Um abraço apertado, as mãos procurando reter o corpo da outra.
- Você está febril, Charlye...!
- Estou... você me deixa febril, você me empresta o calor da vida, my Sunshine...
- Não, Charlye, falo sério! Vamos entrar!
Charlye sorriu, com ela nos braços.
- Também falo. Não se preocupe, é só o efeito do sol e do esforço a mais - deixou um beijo rápido em seus lábios. - Mas é melhor entrarmos mesmo. Vamos.
Rúbia subiu com ela, ao quarto e a ajudou a se alimentar com sua dose diária de sangue, não sem antes repreendê-la.
- Você está abusando, condessa. Já devia estar em casa para se alimentar, quando o sol se pôs.
O rosto dela estava cansado, o olhar fundo, a respiração forçada, mas ela sorria.
- E perder o melhor pôr do sol da minha vida? Não, obrigada.
Rúbia fitou-a e balançou a cabeça para os lados.
- Você está "muito" caidinha por ela.
- Estou, Rúbia, estou.
- Eu faço muito gosto. A vida retornou a essa casa e aos seus olhos.
- Apenas não se iluda, espanhola. É só por esses dias.
- Você é quem decide, mas sabe o que eu penso.
- Sei. Você é uma romântica incurável.
- Como ela está? - Niamh perguntou, preocupada.
- Bem. Descansando. Não se preocupe, sabemos o que fazer nessas ocasiões.
- Mesmo assim, acho melhor que ela não se esforce mais, como hoje, Rúbia. É melhor ficarmos em casa, amanhã, ou sairmos somente à noite.
- Acho uma ótima ideia, tente fazer com que ela concorde. Charlote pode ser tão teimosa quanto uma mula.
Niamh riu.
- Pode deixar, eu vou tentar.
Niamh também resolveu descansar um pouco em seu quarto e, após um banho relaxante, continuou a leitura da manhã. Margaret Atwood, definitivamente sabia como prender o leitor.
À hora do jantar, Charlye já estava de pé, bem mais disposta, com feição renovada e, a despeito dos protestos de Rúbia, sentou-se à mesa com ela e Niamh.
Mal principiaram a comer e foram interrompidas por uma visita. Rúbia disse a Charlye que sossegasse, que "a" receberia. Niamh teve a curiosidade aguçada. Quem seria "ela"?
A espanhola ficou feliz em ver Grace Cena, a amiga delas, e disse que não se espantasse com o que ia encontrar.
- Jantando?! Charlye Corbyn?! Uau, que novidade! Isso só tem uma explicação: rab* de saia.
Rúbia limitou-se a rir.
- Eu sempre chego em boa hora - Grace declarou, bem-humorada, entrando na sala de jantar, seguida de Rúbia.
- Verdade. Por isso te admiro tanto, você tem uma noção ímpar de entradas triunfais - Charlye parecia contagiada com o humor dela.
A sangue-frio levantou-se para abraçá-la, enquanto Rúbia ia guardar a encomenda que Grace levara para Charlye.
Trocaram algumas palavras afáveis, sob o olhar atento de Niamh. A jovem loira pensou que a mulher negra de estatura baixa, cabelos ruivos, corpo cheio e olhos alegres era muito bonita. Charlye apresentou-as.
Cumprimentaram-se educadamente e Grace aceitou jantar com elas.
- Eu sei que estou atrasada uns dias, Charlye, mas trouxe sua encomenda.
- E eu nem me preocupo, porque sei que você sempre entrega.
Rúbia voltou à sala de jantar, quando Grace Cena contava à Niamh que era médica. Ela explicou que cuidava da saúde e dos remédios de Charlye, quando esta encontrava-se no país. Ela era agradável, bem-humorada e contou à loira algumas peripécias da amiga.
Niamh riu com elas, mas calou-se um pouco, prestando atenção na interação entre as três amigas, especialmente Charlye e Grace.
Ao fim do jantar, Grace quis examinar a amiga e as duas se fecharam na biblioteca. Porém, na verdade, elas queriam era conversar a sós. Cena era, na verdade, a fornecedora de sangue de Charlye, no país.
- Tive dificuldade para retirar o sangue, dessa vez, Charlye. Por isso, a demora. Tive que esperar o chefão se distrair para poder falsificar os papeis.
- Eu sei, tem época que o Dr. Marcha Lenta fica extremamente eficaz, não é?
- Exatamente.
Elas riram do apelido que Grace dera ao chefe.
- Então, Charlye Corbyn arranjou um novo brinquedinho?
- É... Basicamente é isso.
- Só que não.
- Como não?
- Você não me engana, Condessa Corbyn. Está caidinha por ela.
- Está louca... Certamente influenciada por alguma bobagem que Rúbia falou. Mas não leve essa velha espanhola a sério, ela já está caducando.
- Ela não me disse nada, apenas eu te conheço bem.
- Conhece-me nada... E então, como vai aquela sua esposa magricela? Ela já desistiu de sentir ciúme de mim?
- Ela vai cada vez mais sexy e gostosa. E não é de você que ela sente ciúme, é de mim. E não posso culpá-la, além de eu ser fodástica, ela me ama.
- Ah, sim, essa coisa de amor... Faz até algumas pessoas apaixonadas chamarem uma magricela seca de sexy e gostosa. E, apesar de tudo, eu é que deveria sentir ciúme dela, considerando que você me trocou por ela.
- Até parece, você sempre foi safada demais, para que eu te levasse a sério. Já a Niamh... Parece ter arrebatado seu coração.
- Não diga bobagens...
Grace fitou-a, séria.
- Não a deixe escapar, Charlote, ela está te fazendo bem.
- Acho que está na hora de mudarmos de assunto.
- Charlye, estou pasma, você se dispôs a tomar a poção da bruxa Darla! Eu nunca tive esse privilégio... - disse com falso ar de lamento. Aliás, não conheço nenhuma mulher que o tivesse...
- É só... É... - suspirou. - Tá bem, ela é especial, mas não vai durar. Ela não merece que eu a meta nessa minha semivida.
- Isso é discutível.
- Não é não.
Niamh percebera-se irritada, com a presença de Grace, durante o jantar e, por mais que Charlye tentasse incluí-la na conversa, ela não sentia vontade alguma de participar, limitando-se a sorrir e responder o que lhe era perguntado. Aborrecia-lhe aquele jeito atirado da médica e a resposta de Charlye a ela, rindo de qualquer bobagem que ela falava. Aliás, parecia-lhe mesmo que havia muitas piadas internas entre elas.
Aquilo piorou após o jantar, quando Charlye e Grace retiraram-se para uma suposta consulta. Precisavam mesmo ficar a sós? E por que demoravam tanto?
O que está havendo comigo? Você deveria estar feliz, Niamh, por ela ter vindo. Charlye precisa mesmo de uma assistência médica, você mesma viu como ela ficou debilitada, por conta do sol. Ok, ok... Mas precisava ser uma assistência justo dessa baixinha, com quem ela parece ter muito... muita... intimidade? Mas você não tem nada a ver com isso. Tem?... Droga... e elas precisam mesmo demorar tanto?...
Ela ajudou Rúbia com a louça, embora a espanhola tivesse recusado o auxílio, em princípio. Depois esperaram na sala, mas Charlye não voltou, começava a se sentir mal e foi se deitar. Grace declarou que em breve ela estaria sentindo-se melhor e logo foi embora.
Pensativa, Niamh resolveu recolher-se.
- Não vai esperar por ela? - Rúbia perguntou, intrigada.
- Não, também estou cansada, o dia foi mesmo exaustivo.
- Ah, tadinha, o dia foi mesmo puxado - Charlye diria à Rúbia, mais tarde.
- E você acreditou nisso? - Grace perguntou e Rúbia sorriu.
- E por que não acreditaria?
A médica olhou para cima, demonstrando impaciência.
- Por favor, condessa Corbyn, você costumava ser mais perspicaz.
- O quê?
A condessa suspirou antes de perguntar.
- Condessa, não é obvio para você que ela só foi dormir cedo por ciúme de Grace?
- Ciúme?! De Grace?!
A médica balançou a cabeça para os lados e fez um gesto de afetação com as mãos.
- Ah, o amor deixa uma sangue-frio experiente de mais de 160 anos totalmente cega e tonta...
Charlye fitou-a, intrigada e depois olhou para a espanhola.
- Ela lhe disse alguma coisa, Rúbia?
- Nadinha.
- Então... como sabe?
- Por isso mesmo.
- Será...?
- Eu adoraria ficar aqui olhando essa sua cara de sangue-frio apaixonada, mas preciso ir, minha esposa me espera.
Mais tarde, antes de dormir, Charlye perguntava-se: Será?!
Na manhã seguinte, sorriu ao avistar a loira, os olhos pareciam ainda mais azuis pareciam, a pele mais suave, os lábios mais convidativos.
Niamh mostrou preocupação pela saúde da morena e Charlye não julgou que ela estivesse agindo diferente. Rúbia e Grace estavam imaginando coisas.
- Eu me sinto ótima, obrigada, mas não precisa se preocupar.
- Fico feliz, Charlye. - disse aliviada.
- E você, My Sunshine? Descansou bem?
- Sim, obrigada.
- O suficiente para iniciar sua revanche depois do desjejum?
Niamh riu.
- Pode apostar.
- Que bom, My Sunshine... Ia propor isso ontem à noite, pensando que fôssemos ter mais uma noite agradável.
- Ah, você pensou isso?
- Pensei, mas achei bom que você descansasse, para não ter desculpas, caso viesse a perder.
- Eu não precisarei de desculpas, Charlye Corbyn.
- Sei não...
- Mas eu também achei que fôssemos ter outra noite agradável.
- Pensou?
- É. Mas... Talvez...
- Talvez o que, Niamh?
- Pensei se não preferiria ter uma noite agradável com sua amiga Grace...
- Com Grace?! Não. Por que eu ia prefer... Ei, você não está achando que Grace e eu...
- Eu não estou achando nada. Mas para uma simples conferência de temperatura, vocês demoraram bastante.
- Niamh, não! Ela é minha amiga, apenas.
- Vocês parecem bem íntimas.
- E somos. Quer dizer, não desse jeito que você está pensando. Somos amigas. Mas só amigas, nada mais.
Niamh fitava-a, com uma expressão duvidosa.
- Ela é casada, Niamh. E muito apaixonada pela esposa. Nem eu, nem ninguém teria chance, mesmo que quisesse. E... inferno! Não quer dizer que eu queira...
- Também, não importa, não é? Você, na realidade, não me deve nada, não é...?
- Mas não quero que pense algo que não é real, sobre uma amiga.
- Ok.
Entraram em um silêncio incômodo.
- Mas... vocês nunca...? - Niamh perguntou, por fim.
- Já. Mas faz muito tempo, não foi importante e acabou.
Calaram-se novamente.
- É apenas passado, My Sunshine. E hoje somos apenas amigas.
- Então... tá!
- Tá?
- Tá.
Mas quando chegaram à biblioteca, Charlye fechou a porta e se aproximou muito dela.
- Ainda não te convenci?
- Convenceu, sim. Eu... acredito em você - de repente, Niamh sentia que o ar lhe faltava.
- Era com você que eu queria ter uma noite agradável, Niamh Hodge. E só com você - puxou-a para si e a beijou, sem esperar resposta.
Niamh correspondeu.
- Eu também, mas... Não sei o que me deu... - respondeu, com a respiração alterada.
- Eu sei - sorriu. - Isso se chama ciúme.
Niamh fez uma careta de indignação.
- Ciúme?! Eu?!
- Uhum...
- Você se acha muito, Charlye Corbyn - tentou livrar-se dela, mas o abraço da morena não se afrouxou.
- Eu me acho sim. Me acho caidinha por você, Niamh Hodge, My Sunshine.
Fitavam-se.
- Eu nunca tinha sentido ciúme de ninguém. Eu não sabia me sentir dessa forma.
- Eu senti ciúme de você, no momento em que me falou que tinha um noivo, e quando o vi a primeira vez... Senti inveja dele.
- Não devia. Eu nunca sequer gostei dele.
- E de mim? Você gostou?
- Desde a primeira noite.
Beijaram-se.
Charlye abriu espaço na gola da roupa dela com a mão e desceu a boca para seu pescoço, beijando a pele macia.
Niamh gem*u, sentindo-se excitar, os mamilos enrijeceram-se, seu sex* umedeceu-se.
Era difícil para Charlye controlar-se, o desejo a consumia. Queria aquela mulher com todas as forças que possuía. Passou a língua em seu pescoço, lambendo toda a extensão alva que seus dedos conseguiram pôr à mostra. Suas veias pulsavam em resposta àquele contato, podia sentir o sangue fervilhar dentro de si, com a crescente excitação de sua intimidade. A forma humana de seu corpo reagia àquela mulher com intensidade e sua compleição selvagem de sangue-frio também. Suas presas coçavam em sua gengiva, pedindo para nascerem, queriam penet*ar naquela maciez e alcançar as veias que se destacavam sob sua língua, dali jorraria o sangue quente, a água vermelha da vida...
- Charlye... - sussurro suave escapava dos lábios rosados, arrepiando a sangue-frio.
Desceu a mão por cima da blusa dela e tocou os seios sobre o tecido, sentindo no tato que Niamh estava tão excitada quanto ela, devia estar tão úmida quanto ela.
Por fim, fechou os olhos e afastou os lábios do pescoço, encostando ali a ponta do nariz.
- Você é tão linda, my Sunshine...
Beijaram-se de novo, longamente.
Terminaram sorrindo uma para a outra, com os rostos muito próximos.
- Vamos jogar? - perguntou à loira.
- Vamos. Eu vou aproveitar minha revanche e te dar uma surra.
Charlye riu.
- Pago pra ver.
E assim passaram aqueles dias, ao lado uma da outra, entre jogos, livros, com muitos beijos e carícias, com muito carinho e risos. Estavam felizes, como se aquilo não fosse acabar. Ou melhor, estavam felizes e desejavam que aqueles dias não acabassem.
Naquele segundo dia, a sangue-frio percebeu sua superforça abandoná-la, era o segundo poder que perdia. Elas apreciaram o pôr do sol do jardim da casa e saíram somente à noite, deram um passeio curto de carro pelo centro da cidade.
Niamh, apesar de querer muito falar com o pai, resolveu adiar a volta a Nova Iorque, queria aproveitar um pouco mais a companhia de Charlye.
No terceiro dia não saíram, Niamh estava preocupada com a saúde da morena que, em sua opinião, deteriorava-se a olhos nus.
Naquela terceira noite, Corbyn acabou recolhendo-se cedo, seu corpo pedia um descanso reparador. Rúbia acompanhou-a até seu quarto e a ajudou a entrar no caixão.
- O bom é que vai repor suas forças e reconstruir os três poderes perdidos. - Rúbia preocupava-se com aquelas olheiras fundas e aquele ar cansado dela.
Sorriu fragilmente para a espanhola.
- Obrigada, minha amiga. Você sempre atenciosa. Mas é bom mesmo voltar à velha forma, não poder sentir o perfume de Niamh a qualquer distância é lamentável...
O superolfato era o terceiro poder que ela perdera naquele terceiro dia.
A espanhola sorriu.
- Boa noite condessa, durma bem. Logo estará restabelecida.
- Tome conta dela, sim? Eu vou dormir só por dois dias. Me chame depois de amanhã, ao pôr-do-sol, por favor.
Rúbia fitou-a com reprovação.
- Sabe que o ideal são três dias para realmente repor suas forças, não é?
- Não importa. Não quero deixá-la por muito tempo.
- Condessa...
- Por favor, Rúbia. Prometa-me que me chamará.
- Está bem, eu prometo. Fique tranquila, vou contar a historinha que combinamos para ela e cuidar para que a espere. Agora, apenas repouse.
Ao acordar, Niamh apressou-se em se aprontar para descer e encontrar Charlye. Porém, ficou surpresa e decepcionada com as notícias que Rúbia tinha para ela.
A espanhola informou-a de que Corbyn pedia desculpas, mas precisara ausentar-se às pressas, para resolver negócios urgentes.
- Ah... de novo?
- Era mesmo muito urgente, mas não se preocupe, serão apenas dois dias e ela já retorna.
- Deve ser mesmo bem urgente para sair sem nem ao menos se despedir. Mas... espere, ela não estava bem, como pôde viajar assim?
- Então, ela acordou sentindo-se bem melhor, na verdade e...
- Desculpe-me, Rúbia, mas acho impossível que ela tenha se recuperado tão rapidamente.
- Ela tem dessas, os remédios costumam fazer efeitos repentinos.
- Mas... Ela foi sozinha?
- Ah... não, na verdade...
- Já sei. Grace?
- É, é mais seguro que ela viaje com sua médica para qualquer eventualidade. Mas como eu lhe disse, Charlote logo vai estar de volta.
- Eu entendi, mas... ela não podia me acordar e dar um tchau?
- Foi realmente muito às pressas.
Nada daquilo fazia sentido para ela.
- Claro... Eu entendo. - mentiu. - Mas... Ela vai, ao menos, entrar em contato comigo? Me ligar, me mandar uma mensagem? Posso ter o número dela?
- Então... Ela estará... incomunicável, por enquanto. Mas fará isso, assim que possível.
- Ok...
Niamh não podia entender os mistérios de Charlye.
Incomunicável? - pensava, intrigada - Viajou com Grace e está incomunicável... Aaahhh... não pense bobagens, Niamh, ela já explicou que não há nada entre as duas, além do mais, pelo menos ela não foi sozinha e Grace é a melhor companhia para ela, por conta da saúde delicada... Você, Charlye Corbyn, é muito misteriosa e esquisita...
Após o desjejum, disse que iria embora, mas Rúbia a convenceu a ficar e esperar pela morena.
- É o que ela espera, que você continue a aceitar seu convite e hospitalidade.
Ela queria ficar, mas Charlye era muito folgada, não era não? Nem sequer se despedira e esperava que ficasse ali, à sua disposição. Se, ao menos, tivesse se despedido dela...
- Está bem. - respondeu, a contragosto.
Ela tentou se concentrar em outras coisas, leitura, internet, redes sociais, mas era difícil concentrar-se totalmente. Após o almoço, Charlye entrou em contato e elas trocaram rápidas mensagens que, na verdade, não mudaram a estranheza e o mistério daquela situação. A morena fora evasiva e não dera espaço para perguntas ou explicações. O que Niahm não podia imaginar era que, na verdade, quem se comunicara com ela fora Grace, participando do plano da amiga.
À tarde, Niamh assistiu a filmes antigos com Rúbia. Mas todas as vezes que ficava sozinha, punha-se a pensar em como tudo aquilo era estranho. Charlye Corbyn era uma mulher muito diferente de todas as pessoas que conhecia. Tinha uma força descomunal e possuía a estranha habilidade de aparecer nos lugares, na hora que ela mais precisava; e sempre sem muita explicação de onde vinha...
Mas... tudo bem... ainda vou saber o que você esconde, Charlye Corbyn...
Após o jantar, ela foi à biblioteca devolver "O conto da aia" que já terminara de ler e pegar outro título. Olhou os livros, e se deparou com um, de 1897, que lhe fez ter uma ideia esquisita. Pegou o livro e passou a mão na capa, como se o examinasse, depois o folheou.
"Drácula" do irlandês Bram Stoker... - leu, em pensamento.
Riu consigo.
Devo estar louca, claro... Mas... você se encaixa tão bem nessas características...
Sorriu, mais relaxada, sua imaginação era absurda. Onde ia com a cabeça?
De qualquer maneira, não muito conformada, pensou em outros livros que tratavam do mesmo tema, "Crepúsculo", "The Vampire Diaries", entre outros e, percebeu que Charlye tinha todos ali, numa mesma estante.
Pegou o celular e, com a ajuda do Google e da própria memória, começou a listar as características de vamps que existiam em cada um. Algumas eram inerentes a todos e percebeu que Charlye encaixava-se perfeitamente em muitas.
Depois de algum tempo, naquela tarefa, chegou à conclusão de que enlouquecera.
Pare com isso, Niamh, isso só pode ser excesso de ociosidade... -tentou convencer-se do absurdo que propunha.
Mas a verdade é que um fiozinho daquela ideia tinha lhe penet*ado a alma e uma pequena suspeita ficou ali em algum canto, a lhe incomodar, como pulga atrás da orelha.
Dormir naquela noite custou-lhe um pouco. Sentia uma falta efetiva de Charlye, era uma sensação estranha, ir deitar sem se despedir dela à porta do quarto, depois de um dia inteiro juntas... como se seu corpo já estivesse se acostumado com ela. Já deitada, lembrou-se de fazer uma ligação.
- Oi, minha filha, como vão as coisas, por aí? Mamãe diz que tem sido tudo maravilhoso.
- Tem sim, papai....
Não teve coragem para lhe dizer a verdade e logo quis desligar, era melhor falarem pessoalmente.
- Tem certeza de que tudo vai bem, minha filha?
- Claro que sim, papai.
Despediu-se e voltou a tentar dormir.
Mas o sono não vinha e aquele pensamento louco a respeito de Charlye voltou.
E se ela fosse mesmo uma vamp, o que você faria, Niamh?
Sorriu largo.
Eu não ia me importar de ser mordida por você, Charlye Corbyn, nem um pouquinho.
Teve então a ideia de ir explorar a casa. E se Charlye não tivesse mesmo viajado? Talvez no porão ou no sótão houvesse um caixão...
Desceu as escadas com cuidado, pé ante pé, sem acender as luzes, usando apenas a lanterna do celular. O porão estava aberto e desceu os degraus com cautela redobrada. Acendeu a luz. Havia baús antigos e armários. Mas nada parecido com um caixão. Ia abrir o primeiro baú, mas estava trancado. Todos estavam, assim como os armários.
Droga...
Saiu dali e ia ao sótão, mas ainda no corredor, levou um susto. A luz acendeu-se e ela ouviu uma voz no alto da escada.
- Precisa de algo, querida?
- Ai, que susto, Rúbia...! - riu, nervosa. - Hãaaa... não... eu apenas... Estou sem sono e vim tomar uma água...
- Quer uma bebida ou talvez um chá? - perguntou a espanhola, já descendo as escadas.
- Não quero incomodar.
- Não é incômodo. Também perdi o sono e ia fazer um chá.
- Ok então.
Sentadas na cozinha, uma de frente para outra, sorvendo a bebida quente, elas conversaram.
- Você tem sido uma benção para Charlote. Fazia muito tempo que ela não trazia ninguém em casa. Seu coração tem estado fechado há tempos.
- Ela é alguém muito especial para mim, Rúbia.
Após o chá, Niamh dormiu com facilidade, mas no dia seguinte, sentia-se agitada, até receber um telefonema da mãe, no meio da tarde.
Foi falar com Rúbia.
- Você tem certeza, criança? Acho melhor esperar que Charlye volte.
- Não. Está tudo bem. Vou pegar minhas coisas e, depois de amanhã eu volto para Nova Iorque, pra conversar com meu pai. Só não vou hoje porque quero ver Charlye e me despedir.
Rúbia não queria que ela fosse, mas não teve como impedi-la.
- Quer eu vá com você, então?
- Não precisa, Rúbia, mas obrigada, eu volto logo mais.
- Cuide-se, qualquer coisa pode me ligar.
- Está bem, obrigada.
Shirley mostrou-se feliz em receber a filha. Ela garantira que Adam não estaria e que Niamh poderia pegar suas coisas sossegadamente, queria apenas ter uma última conversa entre mãe e filha com ela.
Niamh queria o mesmo, mas logo percebeu que seria algo impossível, Shirley insistia, queria que ela repensasse e voltasse com o ex.
- Perdoe-me, mamãe, mas não dá pra termos uma conversa civilizada e coerente sobre esse assunto, o melhor mesmo é eu pegar minhas malas e sair. Com licença.
- Vai voltar para a casa daquela mulher?
Niamh já estava na escada e achou melhor não responder. Porém, tão logo chegou ao patamar superior, foi surpreendida com a figura de Adam.
- Diga para sua mãe porque é tão importante você ficar na casa de uma estranha, Niamh?
- ADAM?! - virou para trás e viu que a mãe já subia atrás dela. - Você disse que ele não estava em casa, mamãe...
- E por que não devo estar na minha própria casa, Niamh? Por que você agora mudou de lado? Só por que agora você quer ficar com sua namoradinha?
Ela perdeu a fala.
- Isso é mesmo verdade, Niamh? Você, minha filha, se esfregando em uma mulher? - Shirley já estava ao lado deles.
- Mamãe...
Clifford aproximou-se muito do rosto dela e falou demonstrando muita raiva.
- Responda, Niamh, não negue! Vocês duas foram vistas na praia, no outro dia, me contaram esta manhã! Agora, responda, sua mãe!. Diga pra sua mãe porque inventou aquela história de estupro!
O sangue dela ferveu de ódio.
- Não vire as coisas, não Adam! Isso não tem nada a ver com sua canalhice!
- Ah, "minha" canalhice?! E eu que sou o mau caráter aqui?!
- Meu Deus, Niamh... Minha filha, jamais esperei isso de você. Essa mulher só pode ter te enfeitiçado. Você precisa se afastar dessa mulher pervertida, minha filha...
- Não, mamãe, não é nada disso. O que aconteceu entre mim e Charlye não tem nada de pervertido. Mãe, ela é uma excelente pessoa, ela é a pessoa mais doce que já conheci. Foi ela que me salvou desse... calhorda do Adam.
- Isso é o fim da picada, Niamh! Ponha a mão na consciência, sua mãe tem razão, essa mulher te enfeitiçou e te envenenou contra mim!
- O que você está fazendo minha filha? O que seu pai vai dizer se souber disso? Pare com isso, antes que seja tarde...
- Ouça sua mãe, Niamh!
- Pare, Adam, PARE! Você é um MONSTRO! - olhou para a mãe e disse, um pouco mais calma. - Eu vou pegar minhas malas e sair daqui, mamãe. E eu vou voltar para NOVA YORQUE, amanhã ou depois e conversar com papai e explicar toda a situação para ele.
- Está louca?! Você perdeu o juízo de vez! Seu pai vai morrer ao saber dessa sua nova tendência! E você não vai voltar para o antro daquela mulher, Niamh! Eu a proíbo!
- Mamãe, eu sou adulta, você não pode me proibir de NADA! - tentou andar para o quarto, mas Adam a segurou.
- Chega, Niamh! Você está fora de si! Nós vamos cuidar para que você não faça mais nada de que se arrependa! - ele falava, enquanto a arrastava pelo corredor.
- Me solte, Adam! Mamãe, mande ele me soltar! - ela se debatia.
- É para o seu bem, minha filha.
Shirley os seguiu até o fim do corredor. Ali, ela subiu uma pequena escada e abriu uma porta. Adam pegou Niamh no colo, mesmo com ela se debatendo e a seguiu.
- Me solte, Adam!
Era o sótão. Ele a jogou sobre uma cama de solteiro que havia ali e correu para fora. Shirley trancou a porta.
Niamh correu a bater na porta e forçar a fechadura.
- Mamãe! Adam! Abram essa porta já!
- É para o seu bem, minha filha. - ouviu-a dizer, do outro lado.
- Não! Mamãe, você está louca? Me tire daqui! Você se juntou a esse monstro? Me deixe sair, mamãe, por favor!
- Não até que você tenha juízo, minha filha.
- Mamãe! Mamãe, por favor!
- Só quando você voltar a si, Niamh. - era a voz de Adam.
Ela ouviu passos afastando-se.
- NÃO! NÃO! MAMÃE! ADAM!
Gritou ainda por alguns minutos, mas não obteve mais resposta alguma. Ela conhecia o pequeno compartimento, Adam tinha mostrado cada pedaço da casa para ela. Virou-se para a janela.
- Não... - foi até lá, sem acreditar.
A janela tinha tábuas pregadas nela, pelo lado de dentro. Tentou puxá-las, mas não tinha força para aquilo. Procurou algo para usar, lembrou-se do armário, havia ferramentas nele. Mas... o móvel não estava mais lá, só tinha mesmo a cama.
O armário sumiu e essas tábuas não estavam aqui antes. Eles prepararam esse lugar para mim. Minha mãe... Como pôde? Mamãe... Como você pôde?...
Jogou-se na cama e começou a chorar.
Charlye... minha esperança é você... Ah... Mas como você me acharia aqui?... Estou perdida...
Fim do capítulo
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Andreia
Em: 10/09/2021
Muito lindo sua história, quero te parabenizar autora é facinante está lindas personagens e suas lutas.
Está mãe da Niamh é uma tremenda ordinária aposto q tá fazendo tudo isso por dinheiro e será q não tá ficando com o cara pq não é possível um pessoa ser tão mal com o próximo assim. Tão baixa com própria filha, mais o pior que tem seres humanos muitos mesquinho e baixo capaz de qlq coisa sem se importar com próximo.
Está de parabéns mais uma vez vai ter continuação desta linda história autora....
Bjs e abraços nossos.......
Resposta do autor:
Verdade, Anfreia, tem gente assim mesmo, infelizmente...
Obrigada pelo carinhoso de vcs com esta história. Fico feliz que tenham gostado.
Bjss e abçs!
Marta Andrade dos Santos
Em: 23/08/2021
Mamãe é um bruxa.
Resposta do autor:
Né...? Com uma mãe assim, quem precisa de inimigos?
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