Primavera
Sofria dos nervos e de melancolia, diziam, e alguns ainda acrescentavam à última adjetivos como crônica ou profunda. Passara por tantos tratamentos que se tivesse que enumerá-los não conseguiria. Mas primeiro foram os banhos em água quase fervente, depois os em água gelada. Sem efeito, partiram às restrições alimentares e assim se seguiram anos a fio em contínuas tentativas desesperadas de salvar Cristina.
Vendo sua mais antiga paciente definhar sobre a cama, Eduardo recomendou que Estêvão desse férias a esposa, um local calmo, longe da gente, da gritaria e da correria da capital. Quis opor-se àquela recomendação que o levaria a distanciar-se da mulher que tanto amava ter, mas o médico insistiu tanto que Estêvão se viu obrigado a acatar.
Os empregados, quando ficaram sabendo da mais boa nova, apenas não comemoraram porque estavam em horário de serviço: não suportavam Cristina que, além de nervosa e melancólica, se punha sempre agressiva e melindrosa, impossibilitando qualquer diálogo a respeito do andamento da rotina doméstica, sendo necessário que Estêvão intervisse e conduzisse a casa na ausência psíquica da esposa.
Da viagem, tudo foi acertado com alguns parentes do interior que, mesmo sabendo do gênio controverso de Cristina, não hesitaram em aceitar sua presença, uma vez que isso poderia ajudá-la a curar-se.
Cristina, no entanto, foi a última a saber. Inteirou-se da viagem somente duas semanas depois, na noite anterior à sua partida. Primeiro, xingou o marido, esbravejando que não poria os pés fora daquela casa se assim não fosse sua própria vontade, e gritou com os empregados, a quem chamou de cúmplices sórdidos. Depois, tentou apelar para o lado sentimental do marido, dizendo-lhe que não queria ficar longe do filho, que, coitado!, era tão pequeno ainda; não queria também ficar longe do marido, que tanto queria bem. Mas nada surtiu efeito sobre a decisão já tomada de Estêvão, que nunca voltava atrás em sua palavra. Por fim, sabendo que não havia modos para dissuadir o marido da ideia, aceitou a contragosto.
Despediu-se do filho, que à época tinha doze, e fez recomendações amorosas que somente a ele, criatura inocente, eram reservadas.
Após horas de viagem, o carro estacionou em frente a um casarão, onde estavam os tios do esposo, que a esperavam com certa cisma. Os senhores fizeram, porém, o possível para que Cristina se sentisse bem e confortável, qualquer pessoa no lugar dela teria se sentido acolhida, mas ela não, pois não suportava ser mandada, controlada e naquela casa sentia-se não somente dessas formas, mas também vigiada. Não passou do segundo dia lá.
Aos tropeços, em noite garoenta, saiu da casa e dirigiu-se ao único hotel da cidade, situado numa rua estreita e pouco movimentada. Ao entrar, percebeu que a qualidade era tão duvidosa quanto supusera. Assinou um cheque para quatro diárias e entregou à idosa recepcionista. Quando finalmente deixou a mala no quarto, voltou à recepção para usar o telefone, precisava falar com o marido, insistir que a buscasse, pois não suportava mais. Ele a ouviu atentamente e então, quando chegou sua vez de falar, apenas disse que não havia como, que se a esposa não quisesse ficar na casa dos tios, que então ficasse no hotel. Não esperava que o esposo simplesmente lhe negasse aquele pedido sem nem ao menos considerar. Começou a chorar e quando ia partir para os xingamentos, Estêvão foi quem gritou, dizendo não poder sempre fazer as vontades da esposa, que estava cansado, que queria ao menos uma vez naquele casamento não ter que aguentar as lamúrias da mulher, que ela ao menos se esforçasse para sarar porque ele não poderia o tempo todo fazer isso sozinho por ela. Desligou sem se despedir. Irritada, resmungando e chorando de raiva, Cristina bateu o telefone no gancho sob o olhar atento não somente da recepcionista mas também de uma moça recém-chegada ao seu lado. Batendo os pés, subiu para o quarto e lá ficou, andando, dormindo e despertando, na esperança de que Estêvão ligasse e dissesse que estava indo buscá-la, que não a deixaria ali sofrendo.
Mais tarde na mesma noite, ouviu alguém bater à porta, ao que ela, acordando de um cochilo, tardou a responder. A pessoa do outro lado então disse:
— Sou Inês, estava lá embaixo mais cedo durante seu telefonema. Trouxe seu jantar, mas não precisa abrir se não quiser, posso deixá-lo aqui.
Cristina ficou em silêncio, deitada. Se não era seu resgate, não lhe importava. Fechou os olhos, ouvindo passos se afastarem. Tempo depois abriu a porta apenas para conferir se a bandeja estava lá, mas não comeu, deixando-a onde estava.
— Senhora? É a Inês novamente. Trouxe seu café. — E repetiu o processo do dia anterior.
E assim como na noite anterior, Cristina não comeu, nem o café da manhã, nem o almoço. No jantar, já preocupada com a falta de alimentação da hóspede, Inês resolveu ser mais gentil com a mulher, apelando à vaidade feminina:
— A senhora é tão bonita que é até pecado não comer. Olha, trouxe uma canja gostosa, a senhora vai gostar. Vou deixar aqui.
Bonita! Há quanto tempo ninguém usava esse adjetivo consigo. Sentiu brevemente até certa raiva da mulher por tê-la chamado assim, mas depois ponderou. Decidiu por fim, abrir a porta e pegar a bandeja, não lhe custaria nada comer um pouquinho e, ademais, as pernas já estavam fracas de tanta fome.
No dia seguinte, Inês trocou a bandeja vazia por outra com o café, depois por outra com o almoço e esta pela do jantar, todas voltavam vazias. Em cada uma delas, de improviso, escreveu um bilhetinho. O primeiro foi uma surpresa para Cristina, mas o segundo e o terceiro foram esperados com certa ansiedade. Os textos eram simples: “Vejo que gostou da canja”, “À noite teremos pato, gosta?”, “Sabe o que também é um pecado? Estar presa nesse quarto enquanto a cidade está cheia de cachoeiras. Se quiser, levo a senhora".
Então, pela manhã, quando Inês foi levar seu café, Cristina abriu a porta para ela.
Continua...
Fim do capítulo
Spoiler de Verão, a próxima parte:
“ — Ano que vem eu faço trinta. Trinta de uma vida monótona, deprimente, desprovida de qualquer alegria. Sempre me pergunto qual o sentido de uma vida coberta por uma sombra. Deus não me reservou nada de especial. — Então mirou Inês, que não tirou os olhos de si nem por um segundo, e quase se arrependeu da confissão que fizera, temendo, também por ela, ser tida como louca.”
Comentar este capítulo:
Alex Mills
Em: 19/06/2021
Olha só, as cachoeiras vão atrair a dona Cristina para fora :D
Bora aproveitar a companhia da senhorita Inês!
Ansiosa pelo próximo!
Resposta do autor:
Vamo ver agora como vai ser esse passeio rs Logo logo tem continuação.
Obrigada por comentar <3
Beijo!
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keique
Em: 19/06/2021
Bem interessante! Um pouco de atenção e um elogio..
Já quero saber onde isso vai dar...kkk
Abraço
Resposta do autor:
Que bom que gostou! E aos poucos vamos desvendo melhor essas duas mulheres incríveis.
Obrigada por ter comentando e logo logo tem continuação.
Beijo! <3
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