ATENÇÃO!!
ESSE CAPÍTULO CONTEM ASSUNTOS QUE TALVEZ PESSOAS SENSÍVEIS A ABUSOS PSICOLÓGICOS/EMOCIONAL NÃO SE SINTAM CONFORTÁVEIS EM LER!
Quem quiser pular, tudo bem, não irá atrapalhar no desenvolvimento da história, farei referência a esse capítulo nos próximos somente como "DR de Hera e Lorena". Quem quiser pular sinta-se a vontade.
BOA LEITURA!
CAPÍTULO 21
Quando Hera saiu do banheiro minha mente já tinha imaginado vários cenários diferentes para o que iriamos fazer a noite. Saber que estaremos só nos duas, pela forma como ela disse, deixou as coisas com um cenário preocupante, ao invés de romântico.
Hera sai do banheiro, e avalio seu humor da melhor forma que consigo de onde estou. Ela usava uma calça jeans azul colada e um tope preto. Como ela consegue usar uma calça com o calor que faz? Queria saber, mas não perguntei. Apesar de simples, as roupas de Hera chamam atenção pois combinam perfeitamente com ela e com seu humor sombrio. Seu olhar pousa em mim e corre da minha cabeça aos pés, quando retornam para os meus olhos, onde ela mantem o olhar firme, já estou a beira de um colapso por conta da ansiedade. Hera veste a camiseta que estava quando chegou e pigarreio desconfortável com o silêncio.
- Miranda não veio... - Hera mantem seu olhar hipnotizante em mim, sem dizer nada. Cruzo as pernas na beirada da cama totalmente desconfortável pela atenção ininterrupta. - Ela está bem?
- Está. - Hera se aproxima da cama arrumando os cabelos, seu olhar ainda fixo em mim. - Pedi que ela viesse outro dia, quero ficar com você hoje. Ela provavelmente ia demorar e eu não queria esperar.
- Hum... - Foi tudo o que consegui dizer. - Tem algum assunto que você queira conversar comigo? - Perguntei vacilante, apesar de no fundo estar mais curiosa do que insegura realmente.
- Não preciso de um assunto ou motivo especial para querer ficar a sós com minha companheira. - Semicerrei os olhos insatisfeita com a resposta.
- Trocou as ferraduras?
- Deveria? - Ela pergunta no mesmo tom.
- Você entrou no banheiro de um jeito e saiu de outro, acho que talvez eu devesse trocar as minhas. - Dessa vez ela semicerra os olhos sem dizer nada, somente depois de alguns minutos de silêncio Hera se pronuncia.
- Precisamos conversar.
- Sobre? - Pelo tom que Hera usou, desconfiei sobre o assunto a que se referia, ainda assim perguntei para ter certeza, e para me preparar.
Hera passa as mãos pelos cabelos, os jogando para trás dos ombros. Seus bíceps saltam quando ela passa as mãos uma última vez pelos cabelos, num gesto charmoso.
- Tudo. - Arqueio uma sobrancelha pela resposta.
Depois de mais dois ou três minutos, saímos do quarto. A casa nova não tem muito em comum com a que estávamos, tirando a decoração totalmente diferente, a planta em si deveria ser a mesma. A casa em que estávamos era decorada com cinza, branco e preto, deixando todo o ambiente com a sensação de limpeza, como de um consultório particular ou o escritório de uma revista da Moda & Casa. Já está casa não. Está casa tem tons marrons com amarelo pastel, deixando o ambiente alegre sem ser enjoativo, a sensação é de aconchego. Quando descemos as escadas para o primeiro andar nos deparamos com uma grande sala de estar e uma porta de cada lado do cômodo, provavelmente uma para cozinha e sala de jantar, a outra, não fazia ideia.
Não tive muito tempo para olhar o ambiente já que assim que pisamos no primeiro andar, a multidão de pessoas na sala parou seu assunto para nos olhar. Estavam olhando para mim, e meu estômago se contorceu ao perceber o medo e a ansiedade nos olhares de cada um. As únicas pessoas que me olhavam com nada mais que preocupação eram Anna e Luís.
Desde que cheguei a essa alcateia - a quatro anos atrás -, essa alcateia nunca chegou a ser atacada por tantos vampiros como na noite anterior. O ataque de ontem foi um recado claro de guerra, e isso me revolta ao extremo. Por quê duas sociedades tão poderosas e avançadas como os vampiros e os lycans não podem simplesmente viver em seus mundos, sem incomodar um ao outro? Por que permitir que tantas pessoas morram por uma guerra que sequer se lembram quando começou, ou por que começou? O que os vampiros pretendem conseguir se matarem toda a família do Supremo Alfa? Poder? Mesmo que consigam demonstrar poder para o clã das bruxas e para seu povo, jamais conseguiram exercer esse poder sobre os lycans. Na natureza, os lobos são predadores perigosos, que caçam em grupo, vivem em grupo e tem um líder, um Alfa, na espécie lycan, obviamente não é diferente. Mesmo que matem o Supremo e sua família, outro irá se levantar no lugar do que se foi, e a espécie nunca estará indefesa, ou sem um líder. É inútil insistir numa guerra que não se baseia em nenhum princípio lógico, no mínimo. Mesmo que muitas guerras tenham sido travadas por motivos supérfluos, e outras por motivos genocidas, os vampiros não tem porque insistir nessa guerra se não for para a extinção dos lycans, o que é impossível. A espécie lycan é a única espécie com mais de um milhão de habitantes por país. Os lycans são de longe a única espécie que está longe de ser extinta. Diferente dos vampiros, que provavelmente estão buscando meios de mudar essa realidade. Lycans procriam com facilidade, já as mulheres vampiras passam por dificuldades durante o parto e muitas vezes não resistem a ele, os bebês, infelizmente, também não resistem na maiorias das vezes. O porque disso acontecer só com eles, somente a mãe-natureza sabe dizer.
Anna é a primeira a se aproximar de mim e de Hera. Ela dá um beijo no rosto da filha e volta sua atenção para mim, Hera, como se entendesse o recado, nos deixa sozinhas, se juntando a multidão de Guardas e os demais no centro da sala de estar estilo vitoriana.
- Como se sente? - Anna me olha preocupada.
- Estou bem. - Lanço um sorriso que para muitos, pode-se chamar de falso, para mim: sorriso neutro.
- Não, não está. - Corro o olhar pela grande sala de estar, evitando olhá-la nos olhos. - Sinto seu medo.
- Como sente?
- É o meu dom, posso sentir os sentimentos das pessoas ao meu redor.
- Pensei que somente uma Profeta tinha essa habilidade.
- Sim, profetas tem, porém, profetas tem muitos outros dons, eu só tenho esse, é a única coisa que consigo fazer. - Junto as mãos na frente do corpo, desconfortável com sua franqueza. - Sei que você não está acostumada a ter pessoas se preocupando com você, fazendo perguntas para você, cuidando de você, e espero que não estranhe e não se incomode com as minhas perguntas. Você é parte da família agora, Hera vai cuidar e ser protetora com você assim como é comigo, e sei que em muitos momentos vai parecer que nós estamos nos intrometendo em sua vida, mas na verdade só estaremos cuidando de você.
- Por quê você está me dizendo isso? - Meu coração bateu acelerado. Apesar de Anna estar com um tom calmo, e até apelador, a sensação que tive é de que estava levando uma bronca. Não gostei da sensação.
- Porque você não sabe como é ser cuidada. - Abro a boca para retrucar, mas permaneço quieta com a boca aberta em choque. Quando o choque se esvai de mim, a tristeza toma o seu lugar. Fechei firmemente a boca, engoli a saliva e suspirei numa tentativa de não me abalar naquele momento, na frente de todas aquelas pessoas. O que saiu da boca de Anna não me surpreendeu, o que me surpreendeu foi ouvi-la falar tão francamente sobre um assunto que acredito estar imperceptível para as pessoas que convivem comigo. Aparentemente nada escapa do olhar de Anna.
Como posso saber o que é ser cuidada e amada quando tudo o que conheci foi desprezo e ódio? Como posso saber? O mais assustador não foi constatar esses fatos, até porque, tenho conhecimento deles a muito tempo, ouvir Anna jogando eles na minha cara foi mais chocante do que o fato em si. Que eu não sei o que é o amor de uma família? Isso não é novidade para mim.
- Imagino que você vá achar estranho e invasivo tudo isso, então pensei em esclarecer isso com você. - Anna se aproxima invadindo meu espaço pessoal e segura minhas duas mãos entre as suas. - Agora você tem uma família Lorena, não precisa se esconder mais, ou se esconda, se quiser, a questão, é que sempre estaremos aqui por você e faremos o que pudermos para te proteger, assim como você fez isso por nós ontem. - Ela aperta minha mão dando ênfase no que disse. Um sorriso carinhoso surge em seus lábios me deixando ainda mais constrangida. Meu lábio inferior treme com a vontade de chorar, e pisco os olhos repetidamente numa tentativa de fazer as lágrimas voltarem para o lugar de onde vieram. Engoli um bolo de sentimentos tristes que se acumularam em minha garganta, numa vontade enorme de sair como um choro.
Um misto de sentimentos e emoções dançaram em mim, sentimentos que a muito tempo estavam adormecidos, e que mal me lembrava mais. Sentimentos que escondi com toda a força de vontade que juntei durante a minha vida, para prendê-los bem no fundo do meu coração. Agora, ressurgiram quando as palavras de Anna me atingiram como tapas na cara. Mesmo querendo me entregar a tais sentimentos, que insistiam em meu interior para confiar que daria tudo certo no final, uma parte muito grande de mim - a maior parte - venceu a batalha que travava internamente, me dizendo que nunca devo confiar em ninguém. Essa parte me disse que não devo me importar em não ter uma família, porque não estou perdendo nada. Ter uma família é passaporte para me magoar e estressar. Pelo menos a que tive foi assim.
Com mais uma respiração profunda, sorri de volta, mesmo sabendo que meu sorriso estava totalmente vacilante e falso. Apertei de volta a mão de Anna e a olhei nos olhos, satisfeita pelas lágrimas terem sumido.
- Obrigada. - Nada mais que isso sairá da minha boca. Estou chocada, insegura, triste, e confusa demais para meu cérebro formular frases completas. O olhar de Anna se tornou triste, junto com seu sorriso.
- Não faça isso. - Meu coração se acelerou.
- Isso o quê?
- Não se feche para as pessoas. Não precisa mais usar essa máscara de simpatia, principalmente na minha frente.
- Me desculpa Supr...
- Anna, só Anna. Por favor.
- Desculpa. - Pigarreei para firmar a voz, que ainda estava rouca devido a vontade de chorar. - É a única coisa que sei fazer, me esconder, não sei nada além disso.
- Eu sei querida. - O olhar de Anna suaviza e ela aperta mais uma vez minhas mãos. - Está com a gente agora, e precisa aprender a se abrir. Não estou dizendo isso por nós, estou dizendo por você, isso vai fazer mais bem a você do que a nós, entende o que quero dizer?
- Sim. - Infelizmente, entender não significava querer.
O assunto se encerra quando Hera se aproxima contornando minha cintura com um dos braços.
- Tudo bem? - Hera olha de Anna para mim curiosa.
- Sim, só estava conversando com minha nora. - Anna da duas batidinhas em minhas mãos antes de soltá-las.
- Sobre o quê? - Hera arqueia uma sobrancelha.
- Não te interessa. - Anna diz suavemente, totalmente inalterada pelas palavras que proferiu, com isso Anna se afasta se juntando ao Supremo na sala de estar. Hera simplesmente suspira, mas um sorriso tímido desponta no canto dos seus lábios.
- Imagino que não queira falar com ninguém agora, certo? - O olhar escrutinador de Hera me avalia.
- Certíssima.
Hera concorda com a cabeça e me leva pelo lado contrário a multidão de Guardas, Alfas e Betas da sala. Estávamos saindo pelos fundos. Ao chegar a rua nos deparamos com sua BMW. Já dentro do carro decido puxar assunto. Não queria pensar na conversa que tive com Anna, e queria aproveitar os últimos momentos antes de Hera me encher de perguntas sobre o assunto que ela sabia que não queria conversar: meus pais.
- Onde vamos? - A noite já havia caído, as luzes das casas iluminavam as ruas estreitas do condomínio, os poucos postes de luz dispostos nas calçadas eram cobertos pela folhagem das grandes árvores nas calçadas, deixando a iluminação fraca.
- Vai ver quando chegar. - Hera sorri misteriosa. - Sabe o que andei reparando?
- O quê? - Ela sorri novamente, mas dessa vez, não tão animada como antes.
- Que você quase não sorri. - Não sabia onde Hera queria chegar com aquele comentário, mas pude imaginar os caminhos que ele podia levar. Caminhos que eu não queria entrar. - E agora que comentei, piorou. Agora você está emburrada.
- Não estou emburrada, só estou me perguntando o porque do comentário.
- Disse que essa noite queria ficar a sós com você, para conversar sobre tudo, essa é uma das coisas que quero conversar. Não vejo você sorrir, vi você sorrir algumas vezes com a sua amiga, mas fora isso, só umas duas vezes, talvez. Por quê?
Dei de ombros sem saber o que responder. Por que uma pessoa não sorri? Existe uma resposta para isso?
- Não sei, mas pelo que vejo, você também não anda esbanjando sorrisos por aí. - Hera manuseia o volante do carro com naturalidade, e sem tirar os olhos da rua ela confirma com a cabeça, como se concordasse comigo.
- Sabe o que eu acho? Que você sabe o porque. Eu, sei o porque. - Revirei os olhos.
- Sabe? Então qual é o motivo? - Fiquei tão absorta na conversa que não notei quando chegamos ao centro do condomínio, onde os mercados e lojas deviam estar abertos, pois apesar de ser noite, ainda era cedo para que tudo estivesse fechado. Somente quando olhei de relance para as ruas notei os estragos. A vitrine do único supermercado na alcateia estava quebrada, as lojas, farmácias, lojas de roupa, lojas de conveniência, também tinham suas portas quebradas, como se tivessem sido depredadas. Uma árvore que ficava no estacionamento de uma farmácia estava derrubada em frente a porta de uma loja. Hera percebeu minha distração e esclareceu minha dúvida.
- Era um pouco mais da meia noite quando atacaram ontem, tinha algumas lojas abertas. Quando o alarme de invasão tocou os civis que estavam nas ruas se abrigaram nas lojas, os vampiros que vieram para esse lado da alcateia tentaram invadir as lojas, quando invadiram e viram que muitos tinham se escondido nos tanques subterrâneos, começaram a lançar bombas onde podiam, mas não foram muito longe, Lucas mandou um grupo grande da Contenção para cá para proteger os civis. Ainda assim, conseguiram fazer alguns estragos. - Algumas das lojas no centro da alcateia possuem tanques subterrâneos para civis se abrigarem em casos como o que ocorreu, ainda são poucas, mas estão trabalhando para que todas tenham um.
Meu coração se entristeceu com a cena. O condomínio é algo precioso para os lycans. Não só um símbolo de proteção, é um símbolo de união, graças aos condomínios nossa espécie se uniu e conquistou coisas que nunca chegou perto a milênios atrás, mesmo que a milênios atrás tivéssemos sido muito mais numerosos que agora, e que muito tempo atrás, grupos de humanos se uniam para caçar e exterminar lycans, dificultando nosso crescimento. Foi uma época triste e tenebrosa, muitos lycans morreram, mas isso provou ainda mais que lycans viverem separados só mostra nossa fraqueza. Os condomínios são o símbolo da nossa união, da nossa proteção e da nossa força. Nos provou o quanto a mãe-natureza nos quis sempre unidos, e não separados.
Hera e eu não conversamos mais o restante da viagem, me afundei em meus pensamentos totalmente alheia ao caminho que Hera fazia. Minha confusão deve ter se estampado em meu rosto quando Hera estacionou o carro em frente a minha casa.
A minha casa. A minha maravilhosa casa.
Meu coração se acelerou animado e cheio de saudades.
- Deduzi que talvez, depois de toda aquela confusão. - Hera com certeza se referia a madrugada turbulenta. - Que talvez você quisesse muito o conforto da sua casa. - Hera me olha satisfeita.
"É... A filha da mãe deduziu direito, de novo..."
- Quero dizer, nossa casa. - A olho carrancuda. - Tá bom, sua casa. - Hera ergue as mãos em rendição sorrindo. Saio do carro animada para estar dentro do meu cubículo. - Pode ir esperando. - A voz de Hera me para na porta. - Vamos entrar juntas.
Suspiro e dou de ombros. Hera destranca a porta de entrada dando espaço para eu passar. Quando entro o cheiro de lavanda que sempre usei para limpar a casa me atinge, uma nostalgia enorme toma conta de mim, não fazia muito tempo que estava longe, mas foi a sensação que tive. A sensação de que estive longe por meses. Quatro portas são vistas da entrada, a primeira é da cozinha, a segunda da sala, a terceira é um banheiro para visitas, e a última, meu modesto quarto. Um sorriso brotou tímido nos meus lábios, e conforme mais entrava na casa mais largo meu sorriso ficava.
- Está sorrindo. Essa é a terceira vez, deixa eu anotar para não perder as contas.
- Vai se ferrar. - Ambas rimos.
- Por aqui, madame. - Hera abre a porta da cozinha entrando no cômodo. Entro logo em seguida desconfiada.
Minha boca forma um 'o' em surpresa diante da cena em minha frente. A pequena mesa quadrada que sempre deixei encostada na parede para não ocupar tanto espaço na cozinha, e para não atrapalhar a locomoção dentro do cômodo, estava no centro da cozinha com uma toalha de mesa branca por cima, pratos, taças e talheres preenchiam a mesa dispostos como num restaurante. Um pequeno e simples candelabro com três velas se posicionava na lateral da mesa para não atrapalhar a visão de quem se sentasse. Guardanapos vermelhos vivos estavam dobrados e arrumados ao lado dos talheres milimetricamente calculados. Se não tivesse participado de jantares da alta sociedade lycans com meus pais na adolescência, jamais saberia como usar todos aqueles utensílios. Sei que Hera não cobrará de mim os recatos de uma aristocrata na mesa, por isso continuo olhando a mesa um pouco confusa.
- Apresento sua mesa de tortura. - Hera diz puxando uma das duas cadeiras para me sentar.
Mesa de tortura foi um bom nome, porque é exatamente o que seria, uma mesa de tortura, onde serei obrigada a conversar com Hera sobre coisas que não quero conversar. Me sentei na cadeira apreensiva. Hera, naturalmente, se dirigiu ao meu fogão de quatro bocas, tirou uma travessa de vidro de lá a depositando em cima da pia, ela voltou até a mesa, retirou meu prato e o dela, na pia novamente ela serviu o que supus ser lasanha e voltou para a mesa com os pratos. Dentro da geladeira Hera pegou gelo, numa taça delicada Hera serviu a água, e em outra taça mais robusta e rústica, serviu o que supus ser Bourbon.
- Lia me contou que você gosta de Bourbon. - A examinei desconfiada mais uma vez. Hera está falante demais, despojada demais, tranquila demais para a minha sanidade.
- Sim. - Depois de servidas Hera se sentou em minha frente, pousou os cotovelos na mesa, e o queixo sobre as mãos, total falta de decoro, segundo os aristocratas. Não que me importe.
Arqueei uma sobrancelha.
- Direto para o prato principal? - Pergunto ignorando o olhar sério de Hera.
- Achei que fosse ficar muito pesado servir a entrada e depois o prato principal, então vamos pular a entrada.
- Porque achou que fosse ficar pesado?
- Porque o que vamos conversar é pesado o suficiente para o jantar. Temo que você passe mal depois que terminarmos. - Suspirei apreensiva, já me sentia cansada psicologicamente, e já imaginava do que se tratava tal produção. - Mas, vamos comer antes que esfrie.
Comemos em silêncio, comi o mais devagar que pude, no entanto, era inútil tentar adiar, é fato que dessa noite não passará. Quando ambas terminamos, Hera se levantou retirando os pratos, bebi toda a taça de água enquanto comia, e quando terminei a lasanha passei para o Bourbon. Precisarei dele essa noite. Quando Hera se sentou novamente na mesa estava tensa, e eu mais ainda.
- Você sabe o que quero saber. - Hera descansa o queixo nas mãos novamente.
- É você sabe que não quero falar sobre isso.
- Quero saber.
- Para quê? Que diferença vai fazer?
- Para você? Nenhuma talvez, mas para mim? Muita quando matar seu pai e seus irmãos. - Engoli o nó que se formou em minha garganta. Não estou mais com a "Hera minha companheira", estou com a "Hera líder da Guarda e assassina do Supremo". O olhar contido de raiva que vi em Hera foi uma prova do quanto Hera pode ser perigosa e mortal.
- Não me importo com eles, só quero seguir com a minha vida.
- Você vai, nós vamos. Mas não espere que eu simplesmente não faça nada quando eles descobrirem sobre você, e quando vierem atrás de você.
- Se eles não soube...
- Você é minha companheira, não vai viver se escondendo deles. - Fecho os olhos angustiada, não querendo entrar nessa discussão nunca. Só quero viver o quanto puder, e esquecer esses "detalhes" da minha vida, o máximo que puder.
Massageei as têmporas sentindo uma pontada atrás dos olhos. O suspiro de Hera me fez abrir os olhos e a encarar novamente.
- Por que eles faziam isso com você? - A voz de Hera soa baixa e perigosa, dessa vez, não escaparei da pergunta. Não quero conversar sobre, mas o que menos quero é uma briga com Hera.
- Não sei.
- Quando começaram a te tratar assim?
- Não sei, desde que me entendo por gente.
- Nunca foram amáveis com você?
- Não.
- O quê exatamente eles faziam com você? - Suspiro desconfortável.
- Me batiam.
- Como? - A olho incrédula. Que tipo de pergunta é essa?
- Como assim "como"?
- O quê eles faziam com você?
- Me batiam.
- Batiam quanto Lorena?
- Isso não importa.
- Importa. Você importa. O que você sente importa. O que você gosta importa. O que te machuca me importa. - Hera estava com as mãos fechadas em punhos em cima da mesa, fazendo parecer que ela se continha para não jogar a mesa longe. Eu, apesar de estar com minha postura relaxada, com as pernas cruzadas e brincando com o guardanapo em cima da mesa, não me sentia calma e tranquila em nada. - Quanto Lorena? Quero saber para matá-los com mais prazer.
- Esse ódio não é certo. - A risada de Hera causa calafrios pelo meu corpo e meus pelos se arrepiam. É uma risada tenebrosa, fria e maldosa.
- Você quer mesmo falar do que é certo para mim? Então vamos lá, comecemos por esse medo paralisante que você sente deles quando qualquer pessoa toca no assunto. Acha que não percebi quando paralisou na frente dos meus pais quando eles perguntaram?
- Não tinha o que perceber.
- Talvez se não fosse sua companheira não tivesse percebido, porém, eu senti Lorena. Senti a porr* do medo que você sente deles, senti nos meus ossos, senti na minha pele! - Meu coração se acelera com a revelação.
- Isso não é possível, saberia se nossa união tivesse... atingido esse nível.
- Sim saberia, se não estivesse tão concentrada em esconder seu medo deles. - Massageei novamente as têmporas.
"Mais que inferno..."
- Responde a minha pergunta. - Por mais difícil que fosse falar sobre eles, não senti vontade de chorar no momento, talvez seja um pouco de choque pela revelação de Hera, talvez seja cansaço, talvez seja a vontade gritante de sair correndo daquela situação o mais rápido possível, assim como fugi da psicóloga da alcateia.
- As vezes ficava... Acamada por dias... Eles... quebravam meus braços, as vezes pernas... As vezes ficavam só hematomas. De qualquer forma, ainda não tinha passado pela primeira transformação, então não conseguia me curar tão rápido.
- Mesmo não tendo passado pela primeira transformação, você teria se curado no máximo em três dias. - Não concordei com a afirmação, só deixei que Hera falasse. - Por que você levava dias? Isso não é normal para lycans.
- Por que eu não comia todos os dias, eles não deixavam. - A mesa chacoalha quase derrubando as taças e o candelabro quando Hera se levanta da mesa possessa, o cheiro do ódio dela pinicou meu nariz e desviei o olhar de seu rosto irritado. Ela caminha de um lado para o outro passando as mãos pelos cabelos. Depois de alguns minutos andando de um lado para o outro Hera me olha mais séria do que achei que fosse possível.
- Eles abusavam de você? - Meu estômago se contorce, uma náusea começa a se formar e sinto algo quente subir até parte da garganta e descer novamente.
- Não.
- Não minta para mim!
- Eu não...
- Sinto o que você sente Lorena! - Respiro fundo para não perder o controle da minha irritação. Uma de nós irritada já é suficiente.
- Não quero falar sobre isso.
- Filhos de uma puta! - Hera esmurra a mesa, fazendo os pratos tilintarem. - Quem? Quem foi?! - Tento controlar a respiração, que começava a dar indícios de uma crise, ficando mais rápida que o comum.
"Não quero me lembrar... não quero..."
"Por favor, por favor..."
Supliquei mentalmente para me esquecer daquelas horas tenebrosas da minha vida, mas não tive mais controle sobre a enxurrada de emoções que me atingiu juntamente com as infernais lembranças. Os flashes foram passando pela minha memória, como um filme. Pus as mãos nos olhos tentando impedir que as memórias voltassem, mas eram mais fortes que eu. Senti meu coração nos ouvidos, frio me atingiu de repente, senti meu corpo tremer.
"Respira... Respira... Respira..."
"Acabou... acabou... Estou bem... Estou longe... acabou..."
Não sei por quanto tempo repeti o mantra, em algum momento a voz de Hera chegou até mim, e tentei voltar para o presente, para a realidade.
- Lorena? - No início a voz de Hera soou distante, e depois, aos poucos a ouvi do meu lado. Senti suas mãos em meus pulsos tentando tirar minhas mãos do rosto. Quando percebi que estava tensa demais tentei relaxar o corpo. Abaixei as mãos trêmulas. - Eles vão pagar por isso. Eles não fazem ideia do que sou capaz. - Simplesmente concordei com a cabeça, cansada demais para discutir com ela.
Quando fomos para o quarto não sentia vontade de dormir, por isso me tranquei no banheiro e procurei pelos tranquilizantes que costumava tomar, no entanto quando abri a pequena gaveta do móvel do banheiro não encontrei nada além das minhas cartelas vazias. E por mais que quisesse, não consegui sentir raiva de Hera por ter me privado dos comprimidos. Não consegui sentir nada. Me senti... flutuante... Flutuei pelo corredor até o quarto, flutuei para o banheiro e depois flutuei até a cama, onde me deitei em posição fetal, de costas para Hera. Não fiquei muito tempo assim, meu estômago se revolveu, a náusea voltou, e em instantes despejava tudo na privada. Hera segurou meus cabelos e massageou minhas costas enquanto a presenteava com a cena. Não consegui me sentir envergonhada por faze-la ver aquilo, minha mente se contentou em pensar que era um tipo de vingança por ter me feito falar e reviver tudo aquilo. Para quê? Para que ela tivesse mais prazer em matá-los? Uma assassina não precisa de incentivo para matar.
- Tudo bem, pode me odiar. Mas vou fazer um favor ao mundo tirando esses merd*s dele. - Hera diz como se ouvisse meus pensamentos. Me lembrei de nossa união rara, Hera pode sentir o que sinto, e pelo que ouvi falar, talvez logo começará a escutar meus pensamentos. Outra coisa para me preocupar, porque quando esse momento chegar Hera vai poder ver tudo o que passei, até mesmo as coisas que "escondo" de mim mesma.
- Cala boca. - Foi a única coisa que disse antes de me inclinar sobre o vaso novamente.
Depois de talvez uma hora sobre a privada, voltamos para a cama. Estava prestes a me virar de costas para Hera novamente, quando ela me impede. A olho irritada. Já tinha me incomodado demais numa noite só. O que mais quer? O olhar triste em seu rosto me deixou muda.
- Aqui. - Hera me conduziu lentamente até seu peito, onde deitei minha cabeça e peguei no sono depois de horas ouvindo o retumbar do seu coração.
Fim do capítulo
I! OI! GENTE!
Esse cap foi bem tenso de escrever, e confesso que estou tensa com como vai ser a reação d vcs tbm ????
A Lorena não teve uma vida fácil, e a única forma que ela encontrou de "superar" tudo o que passou é "esquecendo temporariamente" o que passou, ela ignora pra poder seguir com a vida. E mesmo que ela tenha treinamento e poderes pra se defender dos pais, falar e lembrar o que ela passou a faz reviver o passado, e no passado ela não era a pessoa capaz de se proteger que é agora, ela não enxerga que agora é capaz de se proteger e se cuidar. Vamos ver como ela vai enfrentar esses traumas e o próprio passado. Abuso sexual, psicológico e verbal são assuntos bem delicados e vou tentar tratar da melhor forma possível, mas preciso ressaltar que a Lorena não trata isso com um profissional, ela prefere esquecer e viver como se nada tivesse acontecido, a menção dos pais dela é um gatilho pra essas lembranças e por isso ela evita o assunto a todo custo, é a forma dela de lidar com isso.
Também vou lembrar que: já que ela não fala sobre o assunto, vocês não ver ele com frequência na história, até porque a história da Lorena de agora não vai focar nisso, mas adianto que futuramente (nos próximos livros) ela vai ter que confrontar esse trauma, e se curar dele.
Bom, espero muito que tenham gostado do cap ♥?♥?
Curtam e comentem para eu saber o que estão achando ???—
Se virem erros podem me dizer, críticas são bem-vindas ????
Boa semana p todos! Se cuidem! Até quarta que vem ♥?????
Quem tiver interesse em acompanhar minha rotina de escrita e saber mais sobre o processo de lançamento desse livro (pois vai virar livro físico ???????—), me segue no insta: diario_deumaescritora_
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