Irrefreável
Foi algo no teu sorriso, o jeito de que ele é perfeitamente reto, dentes brancos, boca rosada, algumas pintinhas no nariz, olhos escuros, ou quem sabe o jeito que os olhos ficam levemente fechados quando sorri? Se bem que tem também o jeito de como você fazia uma piada tímida, que precisa de um ouvinte atento para fisgar e rir, e assim me fazia sentir especial. Ou, quem sabe, a tua recusa em se arrumar do jeito da moda padrão, tão inadequada para um salto, para um vestido, o jeito de como dava de ver, assim de olhar, o quão desesperadamente você queria tirar aquilo tudo e voltar pros tênis, pra camiseta, para o teu cotidiano.
Nunca vou conseguir saber no exato o que foi que gerou a faísca, porque dessas coisas de alma e corpo, não existe régua que consiga medir e definir o que foi que senti, que pensei, naquele dia, na tua casa, depois da festa de quinze anos de nossa amiga. Eu e você na mesma cama, dormindo, com dor nos pés por causa do sapato de festa, cansadas da noite, repassando os motivos das risadas.
Lembro que nessa noite, a da festa, passei atenta a tudo, me esforçando ao máximo para captar as fofocas, os boys, o que fosse... Mas o maior centro das atenções era você. Eu queria saber o que você fazia, com quem falava, pra onde ia, pra quem tava rindo. Algo normal da amizade, afinal, éramos bem amigas. Será?
Eu estava no céu, por saber que ia dormir na sua casa, que poderíamos rir de tudo quando acordássemos, que poderíamos tomar café juntas, que eu teria sua amizade só pra mim naquela manhã. Era tudo o que eu queria, eu só não sabia o porquê. Normal, de amigas próximas.
Lembro que acordei antes, como sempre na minha vida, acordei, inclusive, antes de ti. Abri os olhos, dividíamos a mesma cama. As janelas estavam fechadas, persianas de madeira encostadas. Entrava luz fraca pelas frestas. Olhei para frente, deitada, com a cabeça no travesseiro, e estava você, no décimo quinto sono, talvez. Eu estava apurada, me arrastei para o banheiro e quando voltei você tinha acordado.
Deitei na mesma posição que eu estava e não consigo lembrar muito bem o que conversamos, sei, por teoria, que era algo da festa, das fotos que tiramos na câmera digital que eu tinha, as palhaçadas, rimos a toa. Eu sei que eu não tinha nenhum pensamento sobre o que aconteceria a seguir. A única coisa que eu pensava é que eu amava nossa amizade, que eu te achava linda e amava ter uma amiga linda como você. Com esses seus dentes, teu sorriso, teu cabelo, sei lá.
Mas, o que antes era uma conversa animada de amigas, mudou drasticamente quando o assunto acabou. Acabou assim mesmo, repentino, um silencio total tomou conta de nós. O interessante é que eu não me esforcei para encontrar nenhum outro tópico, logo eu... Que puxo assunto até com cobrador. Eu e você, deitadas na cama de casal, cada uma em seu travesseiro, frente a frente, quietas. A luz fraca das persianas, a porta aberta do quarto, silêncio na casa toda também.
Até hoje, mesmo tantos anos depois, eu não consigo encontrar palavras para exprimir exatamente como aconteceu a dinâmica, de maneira que descreva os pensamentos, as ações e o calor da próxima hora... Mas vou tentar.
O assunto acabou e o que ficou foram os olhares. O meu olhar estava completamente fixo na sua boca. Na linha rosada e delicada dela. No jeito que ela estava entreaberta. Eu não tive coragem de erguer o olhar em nenhum momento, não queria te encarar, porque o foco eu já tinha. Mas também, não achei nenhuma palavra pra dizer nada. Analisando assim, friamente, anos depois, talvez tenha sido um pouco invasivo? Porque, nessa hipnose que foi te observar, faltou palavras, sobrou olhares. Lembro que escorreguei o olhar para tuas saboneteiras, ocultas pela roupa. Voltei para a boca. Nesse silencio que se instalou entre nós, eu ouvi tua respiração, curta e forte. A minha não diferia muito disso.
Meu corpo, sozinho, sem eu dar a ordem expressa, foi chegando milímetro por milímetro mais perto de ti. Sem quebrar o silencio, sem interromper o olhar no que me estava enfeitiçando completamente naquela hora... E que tanto tempo depois ainda viria me hipnotizar... Até hoje, ouso dizer.
Somente quando a distancia entre mim e ti era menor que um palmo, que eu entendi o que ia acontecer. Nós iriamos nos beijar. Quer dizer, naquele momento, eu entendi que eu queria te beijar. Quinze centímetros ainda nos afastavam. Eu já queria que fosse nenhum centímetro. Mas, se antes o silencio e o movimento involuntário de proximidade era completamente natural, na hora que percebi que o eu queria – que era encostar minha boca na sua – se tornou uma aflição.
Eu temia violentamente que você levantasse. Que você mudasse de posição. Que você falasse. Que você me tocasse, obrigando a eu olhar para teus olhos e perder o foco, que eu já secava há mais de meia hora, sem parar.
Se eu tive medo? Na hora, eu só pensava no que eu queria. Queria aqueles lábios no meus, aquele cabelo nos meus dedos, sentir os pelos fininhos do seu braço. Hoje entendo, mas na época eu não entendi, que você provavelmente também teve receio, pensou no que ia acontecer...
O mais curioso é que nenhuma das duas acelerou. Mesmo quando faltava um centímetro para o beijo acontecer, nenhuma puxou, se mexeu, atacou, fez qualquer movimento brusco. Lembro que quando encostei minha boca na tua, ainda demorou alguns segundos até virar um beijo.
Não pensei no que aquilo significava, pelo menos não até eu sair da sua casa. Lembro que eu estava dividida entre o prazer imenso que era o sabor do beijo e o medo enorme de alguém aparecer na porta aberta do seu quarto. Eu disse que ia fechar, mas você disse as palavras magicas...
“Fica tranquila, tá todo mundo na missa.”
Minha mão escorregou pelas suas costas, eu não sabia o que fazer com ela. Nunca tinha sentido uma menina em minhas mãos, só sabia que eu queria você inteirinha, num abraço enorme, queria dar conta de exprimir todos os arrepios, montanhas russas e suspiros que você me causava.
Você sempre teve esse corpo incrível, miúdo, mas curvilíneo, torneado por esporte, mas humano, com dobrinhas, bunda, coxa, seios, barriguinha lisa... Eu queria descobrir ele todinho com minhas mãos, com o peso do meu corpo.
Nunca tinha pensado em beijar uma menina, muito menos passar a mão, mas naquela hora, era somente isso que eu queria. Descobrir tudo sobre ti, tudo aquilo que eu não sabia ainda.
Paralisei na hora de descer a mão para tua bunda. Pensei que eu já tinha tanta sorte de conseguir te beijar, e se quando eu pegasse na sua bunda você desistisse? Ficasse assustada? Quisesse me expulsar dali?
Mas mesmo assim peguei. Que delícia. Durinha. Grande. Por cima do short justinho. Minha palma não dava conta de pegar a nádega inteira. Te pressionei para perto do meu quadril.
Subi em ti, nem lembro o que eu fiz com meu cabelo. Amarrei? Deixei solto? Te abracei com força e encaixei minha perna entre as tuas. Senti teu calor, por entre os tecidos. Arrepiei inteirinha. Te beijei com mais força. Te abracei inteirinha.
Não lembro porque paramos. Chuto que foi medo de alguém aparecer. Lembro que eu nem quis tomar café, saí corrida dali, antes que tivesse que explicar qualquer coisa. Me despedi de ti, a distancia, na soleira da porta, peguei a bicicleta e fui para casa.
Foi somente quando dobrei a esquina e não te vi mais que a realidade me atravessou que nem raio. E se eu tivesse passado de todos os limites? E se você nunca mais me olhasse na cara? E o que era aquilo? Amizade? Amigas fazem isso?
Cheguei em casa e me tranquei no quarto. Completamente surtada, deitei na cama e me pus a refletir... Que eu tinha beijado uma menina. Que tinha sido bom. Que estava quase certa que amigas normalmente não fazem isso. Que eu já queria aquilo há dias e não sabia. Que eu queria mais, muito mais. Que eu não queria perder sua amizade mesmo assim. Que eu não poderia falar sobre aquilo com ninguém.
Será que mulheres faziam aquilo? Será que era normal?
Meu maior medo era que você parasse totalmente de falar comigo e meu maior desejo era que você quisesse me beijar de novo. Mas, se você quisesse fingir que não tinha acontecido nada, e que virássemos apenas amigas normais, eu aceitaria também. Eu só não queria correr o risco de te perder por completo por algo que eu nem sabia como explicar.
Mandei mensagem no Orkut? Se bem me lembro, sim. Mas lembro também que você não falou nada. Absolutamente nada. Nenhuma palavrinha. Nem um toquinho no celular. Nada.
Dormi essa noite sentindo como se perdesse um pedaço de mim, chorei no travesseiro sozinha. Pensei no tamanho do vacilo que eu tinha dado. No sorriso teu que eu não veria nunca mais. Nem no olhar doce. Nos rolês que não daríamos mais. Chorei copiosamente, silenciosa, para não chamar atenção de ninguém... Não entendia, mas já te amava, temia pelo o que poderia não ser.
Acordei muito cedo no dia seguinte, com um chamado, através da porta, vindo da minha vó. Ela anunciou o que eu não esperava... Eu achava que me chamava para o café, mas anunciava algo diferente. A sua visita. Ainda deitada na cama, te vi entrando no quarto.
Meu coração enfartou de leve, eu que dormi pensando que jamais te veria, acordei com seu corpo na minha frente. Fechou a porta, sentou na beira da cama. Você estava indo viajar naquele dia. Por isso passou àquela hora, porque queria falar comigo antes de ir.
Eu estava sonhando? Só podia.
Mas não... Depois de puxar uns assuntos aleatórios, você deitou por cima de mim e me beijou. Rolamos na cama, eu te beijava e você me beijava de volta. Você tava gelada da rua ainda, o rosto, as mãos.
O que parou nossa hipnose foi a minha vó, chamando lá da cozinha, nossos nomes. Perguntou se estávamos bem.
Sim, estávamos muito bem.
Você se foi, para a viagem. E eu fiquei, pensando em tudo que eu ainda queria descobrir de ti. Sonhando com teus cabelos, teus olhos, tudo que sempre me fascinara e que não sabia o porquê.
Era porque eu te desejava desde sempre, mesmo que lá no fundo, mesmo sem ter nome, mesmo sem saber a referência, mesmo sem nada... Aqueles choques de leve que teu toque causava em mim...
Ou será que ainda causam?
Fim do capítulo
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CristinneB
Em: 28/07/2021
Eu estou sem palavras diante da riqueza de detalhes e sentimentos que essa história me trouxe, o medo, o desejo, a descoberta e outros diversos momentos que senti. Que incrível, puro, simples e grandioso!
Rosa Maria
Em: 07/03/2021
Angellina...
Que belo conto parabéns...li com o coração acelerado principalmente com a riqueza de detalhes do belo momento e também dos sentimentos. Já pensou que essa história merece uma continuação?
Por mais histórias assim...ok?
Beijão
Rosa
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kasvattaja Forty-Nine
Em: 22/02/2021
Olá! Tudo bem?
Belo conto, belas palavras. Parabéns.
Bem que poderia ter mais umas mil palavras, mas foi perfeito do tamanho que ficou. Você foi precisa e direta.
Mais como esse? Pode postar! Adoraremos ler.
É isso!
Post Scriptum:
''Penso em você principalmente como a minha possibilidade de paz — a única que pintou até agora, “nesta minha vida de retinas fatigadas”. E te espero. E te curto todos os dias. E te gosto. Muito.''
Caio Fernando Abreu
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