CapÃtulo 10 - Advertências
Capítulo 10 — Advertências
— Denise foi advertida ontem por ter quebrado dez grampos. — Adriana comentou com a amiga naquela tarde de sexta-feira.
— Eu já quebrei seis hoje, Adri. Não posso tomar advertência, muito menos suspensão, isso arruinaria minhas chances de pedir futuramente a mudança para o regime aberto ou a condicional. — Flávia respondeu temerosa.
— Você tem direito a pedir o aberto?
— Tenho, meu advogado me confirmou essa semana, posso pedir cumprindo um sexto da pena, porque minha pena foi menor que quatro anos. Mas só tenho chances se tiver bom comportamento, qualquer coisinha na minha ficha arruína tudo.
— Eu tenho já coisinhas na ficha. — Adriana riu. — E peguei cinco anos, então...
— Quanto mais manchas na ficha, pior.
— Eu sei, eu sei...
***
Flávia trabalhava de segunda a sexta e sábado pela manhã, domingo era seu único dia de folga, que era aproveitado para lavar suas roupas e ler na cela no período da tarde, habituara-se a pegar livros emprestados na precária biblioteca do presídio.
— Quando você terminar esse, me empresta? — Camila pediu, a tirando de sua leitura concentrada.
— Mas não pode perder, viu? Senão queima meu filme na biblioteca.
— Você já tá terminando, né?
— Estou...
O barulho da pesada porta de ferro sendo aberta interrompeu a conversa, a carcereira chamou dois nomes.
— Fátima da Silveira e Flávia Andrade, visita!
As duas seguiram pelo corredor logo à frente da agente, por mais que ela tivesse um imenso apreço por seu primo Maurício, ela rezou para que não fosse ele. “Tem que ser ela...”
Só não saiu correndo porque era contra as normas do local.
Entrou no pátio e começou a procurar por sua visita, enfim encontrou o rosto que ela desejava ver, Juliana estava sentada num banco de concreto, olhando para a porta errada, esperando ansiosa. Flávia exasperou de felicidade e sorriu. Se aproximou e colocou a mão em seu ombro.
— Procura por mim?
Juliana se levantou rapidamente, o coração mais que disparado, Flávia hesitou em abraçá-la, não tinha certeza se tinha tamanha liberdade. A jovem a abraçou desajeitada e sussurrou em seu ouvido:
— Finalmente...
— Quem bom que você veio, Juliana.
Flávia sentiu um arrepio daqueles que fazem a gente comprimir os ombros, todos os tipos de insetos dançavam balé em seu estômago naquele momento. Aquele perfume... Mal podia acreditar que estava novamente cara a cara com a garota que mudou sua vida, queria ficar ali abraçada para sempre, mas sabia que os abraços deveriam ser curtos ali.
Corpos separados, não sabiam o que falar, tinham medo de estragar aquele momento, estavam extasiadas.
— Quer sentar aqui ou prefere ir lá fora? — Convidou Flávia.
— Eu... Desculpe, não consegui chegar antes, o ônibus atrasou, e a rodoviária é um pouco longe... — Juliana sentou e tentou balbuciar palavras na tentativa de fazer sentido.
— Você está aqui na minha frente agora, Juliana, isso é o que importa, esperei tanto por esse momento... Bom, desculpe se estou te assustando, eu realmente estava fazendo risquinhos na parede.
Juliana constatou o que ela já supunha: Flávia tinha o sorriso mais lindo que ela já vira em sua vida.
— Ju ou Juli.
— O que?
— Pode me chamar de Ju ou Juli, se quiser.
— Ah tá... Vou tentar me acostumar, acho teu nome tão bonito.
— Então eu deixo você me chamar de Juliana.
— E você lembra meu nome?
“Será que estou sendo patética?” — Temia Flávia.
— Claro, é Rita.
— Que??
Juliana riu de forma descontraída, derretendo o coração da prisioneira.
— Já faz algum tempo que o nome Flávia se tornou conhecido para mim. — A tranquilizou.
— Ah bom. Como foi a viagem? — Flávia virava seu rosto na direção de Juliana sempre que a jovem falava, mas preferia olhar para baixo quando era ela quem tinha a palavra.
— Mais longa do que eu gostaria, parece que levou duas semanas.
— Tá com fome? Posso comprar algo na cantina. — Flávia contemplava seu semblante tímido, quase não acreditando que ela realmente estava ali.
— Não. Quer dizer, acho que sim, comi tão cedo. Mas eu trouxe sanduíches para nós, eles já revistaram, não tem armas entre os pães. Trouxe também algumas coisas para você usar aqui, conforme as especificações do documento que Doutor Afrânio me passou, mesmo assim vetaram alguns biscoitos, mesmo sendo sem recheio.
— Eles são bem chatos... Obrigada por trazer coisas para mim, não precisa gastar mais dinheiro comigo do que você já está gastando com o deslocamento.
— Não esquenta com isso. Você já deve ter almoçado, né?
— Já, mas a comida aqui não costuma cair bem no meu estômago.
— Então aceita dividir comigo? Trouxe quatro. — Juliana ergueu o pote com os sanduíches.
— Aceito sim.
— Você ainda vai trabalhar com os ganchos hoje? — Disse já repassando um dos sanduíches de frango.
— Não, domingo é meu dia de folga.
— O que você costuma fazer aos domingos?
— Leio, estou brincando de escrever umas coisas também. — Disse com timidez.
— Escrever o que?
— Acho que se encaixa em crônicas, mas é só besteira.
— Vai me deixar ler?
— Não, claro que não.
— Sério?
— Sim.
— Você pode mandar cartas?
— Posso.
— Me manda uma?
— Com alguma crônica?
— Sim, com a sua crônica, deve ser mais fácil, não? Narrar sua rotina.
— Vou pensar no assunto. — A olhou com dúvidas e finalizou seu sanduíche.
— Vou deixar meu endereço para você.
— Não tem medo?
— Do que?
— De passar seu endereço para uma condenada que te assaltou?
— Não tenho medo de você. Você levou um tiro aqui? — Perguntou Juliana, percebendo a cicatriz no pescoço.
— Sim, de raspão, mas sangrou muito, foi difícil esconder o sangue para chegar até em casa aquela noite.
— Me conta o que aconteceu naquela noite?
— Ih, é uma longa história, posso contar outra hora?
— Claro, é que imaginei tantas possibilidades.
— Acabei me virando sozinha, tive sorte que a bala passou de raspão, nem fui ao hospital por medo de me descobrirem.
— Ninguém cuidou de você?
— Fui a um posto de saúde no dia seguinte, mas fiquei limpando e fazendo os curativos depois.
— Nossa, isso deve ter incomodado, né?
— Bastante. Mas agora tá cicatrizado, já passou... E desculpe pelo seu braço.
— Ah não, tá tudo bem agora também, a bala não atingiu nada demais, dei sorte também.
— Sinto muito mesmo, eu não tinha intenção de machucar você, foi por reflexo, eu estava mais em pânico que você...
Juliana levantou a manga da camisa e mostrou a cicatriz, a interrompendo.
— Viu? Ficou uma marquinha, ainda está cicatrizando.
— É maior do que eu imaginava. — Flávia constatou e passou um dedo por cima. — Me culpei tanto por ter machucado você, com certeza a última coisa que quero é te fazer mal, quero compensar o mal que te fiz.
— Como?
— A única coisa que posso te oferecer no momento é minha amizade, mesmo que com limitações.
— Negócio fechado. – Juliana estendeu a mão, ainda mastigando.
— Seus pais sabem que você está aqui?
— Não, nem sonham, meu amigo Everton me ajudou a bolar o plano.
— Eles ficariam furiosos se descobrissem, não é?
— Com certeza. — Guardou o pote dentro da sacola, respondia aos questionamentos com tranquilidade.
— Por que você está correndo esse risco? E fazendo uma viagem horrível dessas?
Juliana largou a sacola ao lado do banco, que tinha um encosto curvado, ajeitou-se.
— Porque eu prometi a você.
— Então você é uma garota de palavra? — Brincou.
— Pode apostar.
Flávia passara dias e mais dias imaginando como seria ter Juliana em sua presença e tudo que gostaria de perguntar, agora parecia não saber sequer o que fazer com as mãos nervosas.
As duas começaram a falar ao mesmo tempo, Flávia desculpou-se e concedeu a palavra.
— Quando você acha que vai sair daqui? Ou se transferir para Santa Catarina?
— A transferência Doutor Afrânio disse que já pediu duas vezes, mas não obteve retorno. Sobre sair... Com bom comportamento posso tentar a progressão para o regime aberto depois de seis meses, mas pelo que já constatei aqui, é difícil se manter com a ficha limpa, tem um pessoal que trabalha aqui que parece que quer ver o circo pegando fogo...
— Como seria o regime aberto? Você tem que morar aqui?
— Posso morar numa casa de albergado em Florianópolis, se tiver vagas por lá.
— O que é isso?
— É como se fosse uma prisão de segurança mínima onde você pode passar o dia fora trabalhando ou estudando, mas tem regras e horários rígidos.
— No regime aberto você não pode ir para casa?
— Não, mas posso visitar a família nas horas de folga. De qualquer forma eu nem tenho mais casa, Juliana. A imobiliária já me despejou, Maurício levou minhas coisas para a casa dele.
— Quanto tempo dura esse regime?
— Um sexto da pena, seis meses. Depois tenho que alugar um lugar para morar. Ou voltar para a casa do meu pai em Minas.
— Maurício me disse que você não se dá muito bem com seu pai.
— É... — Flávia esfregou as mãos na calça cinza. — Nunca tivemos um bom relacionamento, ele abandonou minha mãe quando eu tinha três anos. Mas nos falamos normalmente, quando vou pra Minas costumo visitá-lo, jantar com a esposa dele e minhas duas meias-irmãs.
— Ele sabe que você está presa?
— Sabe, eu pedi para Maurício avisá-lo, ele disse que tentaria vir me visitar, mas duvido que o faça. Mandou um pouco de dinheiro para mim semana passada.
— Viçosa é longe daqui.
Flávia sorriu de lado.
— Já sabe até o nome da cidade?
— Gosto de conversar com Maurício, me sinto mais próxima de você.
— Como eu faço para me sentir mais próxima de você?
— Posso te mandar cartas semanalmente.
— Eu adoraria recebê-las. — Flávia animou-se. — Se importa de me mandar uma foto?
— De quem?
A interna deu um riso aberto.
— Sua, é claro.
— Mando sim, quer autografada?
— Por gentileza.
— Posso te fazer uma pergunta íntima? Não precisa responder se não quiser.
Flávia sentiu a espinha congelando.
— Pode sim.
— Quantos anos você tem?
— Essa é a pergunta íntima?
— É.
— Ok. Tenho trinta, completei em maio numa cela de triagem na cadeia em Florianópolis.
— Teve festa?
— Claro, convidei todas as companheiras de cela.
— Eu vou fazer 24 anos em janeiro.
— Que dia?
— Dia dez.
— Capricórnio? Eu gosto de capricornianas e seu espírito livre.
— Eu não entendo nada de horóscopo.
— Eu também não.
— Já namorou capricornianas?
A pergunta sem rodeios deixou Flávia sem palavras.
— Ou capricornianos. — Completou Juliana, ao perceber a hesitação dela.
— Não, nunca. Namorei duas taurinas. E você?
— Meu ex é de touro também.
— Qual o nome dele? — Flávia já sabia tudo sobre o ex-namorado e seu nome, mas queria ouvir dela.
— Anderson. E tenho certeza que Maurício já te falou sobre ele. — Juliana disse e deixou Flávia corada.
— Já mencionou alguma coisa. Você vai voltar com ele?
— Não, ele sabe que não.
— Você tá namorando alguém?
— Não. Você quer chocolate? Eu trouxe duas barrinhas.
— Aceito, faz muito tempo que não vejo um chocolate.
— É seu doce favorito? — Juliana disse já entregando uma das barrinhas para ela.
— Não, meu doce favorito é pudim, eu amo pudim de leite, acho que amo mais do que... — Interrompeu-se.
— Mais do que o que?
— Chocolate.
Juliana a encarou pensativa por alguns segundos, até finalmente se dar conta.
— Você não ia falar chocolate. — Riu.
— Não, não ia.
— O que você quer comer quando sair daqui?
— Frango com quiabo.
Flávia riu do semblante desgostoso de Juliana.
— Tanta coisa gostosa nesse mundo e você quer quiabo?
— Mas eu gosto de outras coisas, só que frango com quiabo eu cresci comendo lá em Minas, minha mãe era uma cozinheira de mão cheia, trabalhou mais de vinte anos fazendo comida para festas e casamentos.
— Cozinheira profissional?
— Mas tudo que ela fazia parecia aquelas comidinhas caseiras de casa de vó.
— Gosto da carne assada de panela que vó Marieta faz.
— Sempre tem algum prato especial, não é?
— É, agora te entendo. Você herdou os dotes culinários da sua mãe?
— Só um pouco, eu gosto de cozinhar, mas sei que não chego aos pés dela.
— Você cozinharia para mim algum dia?
— Com todo prazer, Ju.
Juliana não segurou o sorriso ao ouvir o apelido. As duas horas de conversa voaram.
Fim do capítulo
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mtereza
Em: 21/04/2018
Gostei da forma como vc desenvolveu o capítulo a primeira visita da Juliana os sentimentos as duvidas os medos foram descritas mesmo de forma sutil e ao mesmo tempo latente . Curiosa pelo pov da Juliana sobre esse processo que esta coincidindo com a saída do armário dela ou sendo a causa disso .
PS: Cris esse seu conto sempre me remete a uma música de Lenine chamada Aquilo que dar no Coração fico lendo cantarolando trechos da música.
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Mille
Em: 15/04/2018
Adorei a maratona
Flávia teve muita sorte mais acho que o responsável pelo setor de trabalho vai complicar a vida dela a fazendo levar advertências.
Um bom reencontro delas e com conversa agradável delas.
Bjus e até o próximo capítulo
Resposta do autor:
Flávia ganhou na loteria quando Juliana entrou na vida dela, foi como se o destino falasse "vou te dar uma segunda chance, vê se não estraga tudo" XD
Uhum, vai ser complicado se manter sem advertências.
Obrigadinha, um beijo!
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Donaria
Em: 15/04/2018
Olá autora... to me deliciando com essas duas! Eu to numa fase bem romantica, e essa historia veio exatamente a calhar, mostra que o amor dá as caras onde você menos espera. O bom dessa historia Cris, é que mostra a sua versatilidade na escrita, quando leio o texto sinto detalhes que são inerentes a sua escrita, mas mesmo assim tá diferente, tá leve... Já li todos os seus textos, e tenho que dizer que gostei de cada um, o sofrimento é que foi diferente né.....rsrsrssr. O bom é que descobri que você sabe escrever sem nos fazer sofrer, pelo menos por enquanto, e juro que não tó te dando idéia! Agora sobre a historia, eu acho que o interesse da Flavia pela Juliana a está salvando, porque imagino o quão dificil deve ser ficar aprisionada. Gostei também da maneira que você descreveu o ambiente na prisão, sei que a vida na prisão não é mamata, mas que bom que você escolheu uma mais leve, pra combinar com o inicio de amor dessas duas. beijos
Resposta do autor:
Oie Donaria! Eu também ando numa fase mais leve, mesmo com a tentação de pesar a mão em alguns momentos, tenho tentado deixar essa história mais tranquila.
Esse pequeno romance tem um gostinho especial para mim, foi com ele que comecei a escrever, a ideia surgiu de um sonho que tive, que ficou dias e dias martelando na minha cabeça pedindo para ir para o "papel", mas eu não acreditava que poderia escrever. Um dia criei coragem e resolvi abrir o Word e despejar a historia que já estava formulada na cabeça. Daí criei um blog e comecei a postar lá, divulguei no finado Orkut e ganhei algumas leitoras, que deixaram comentários no blog, isso me incentivou muito, porém naquele ano minha vida virou de ponta cabeça e interrompi. Só voltei a escrever uns dois anos depois, e foi com A Lince e a Raposa, deixei essa aqui abandonada. Mas agora peguei firme e tô quase finalizando.
Quando retomei esse, achei minha escrita meio bobinha e a história estava meio irreal, então eu conversei com uma leitora que já visitou presídios e li um livro-reportagem sobre o sistema carcerário feminino no Brasil para me embasar e tentei colocar um pouquinho mais de realidade nessa fase no presídio, mas sem entrar no lado violento da coisa. Entrando na trama, realmente o alento de Flávia é a existência de Juliana, ela vinha seguindo uma vida sem alegrias onde o desânimo estava dominando, estava perdendo a fé nela própria e acabou entrando nessa roubada, agora ela tem alguém que desperta tudo de bom que existe dentro dela, coisas que ela nem sabia que existia, principalmente força de vontade que ela desconhecia. Desculpe o textão, eu amei seu comentário e me senti confortável em contar um pouquinho sobre "a história da história"... rs Bjos!
Obrigada por me acompanhar e me ler, por ter lido tudo, e por esse comentário tão agradável.
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Kim_vilhena
Em: 15/04/2018
Foi tão bom enquanto durou essa maratona de caps heueheu
Resposta do autor:
Acho que essa parte era melhor ler assim tudo de vez mesmo, até entrar na fase das visitas.
Obrigada por comentar <3
Bjos!
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