CapÃtulo 8
CATATONIA!
Ao acordar na manhã seguinte, sentiu falta de Constance chamando-a com a voz doce e melodiosa. Odiou-se por isso!
Chegando à sala de refeições deparou com Emma preparando uma bandeja com alimentos, comentou curiosa...
- Se for para mim pode deixar que já estou aqui!
Emma a olhou com um semblante extremamente triste, mal conseguindo esboçar um sorriso amarelo...
- Não filha, é para Constance. Vamos ver se ela come!
Com ar arrogante Iara disse...
- Então diga a ela que mais tarde quero conversar! Não pretendo deixar pendência alguma entre nós! Quero tudo às claras!
- Duvido que consiga tirar qualquer coisa dela nos próximos dias!
E subiu as escadas com ar cansado e triste.
Minutos depois desceu as escadas aflita e chorando copiosamente, correu gritando o nome do marido...
- Gigio...Gigioooo...o doutor Giani...traga o doutor Giani!
Iara se assustou e Jordi que vinha logo atrás perguntou agitado...
- O que houve? Por que ela tá assim tão nervosa?
- Não sei! Deve ser algo com Constance, vamos lá em cima ver o que se passa!
Subiram apressados em alcançar o quarto de Constance. Abriram a porta de supetão e viram Constance sentada numa poltrona de costas para a porta e de frente para a enorme janela do quarto! Não dava para ver seu rosto ainda, mas os braços estavam largados ao longo da cadeira como se estivesse sem sentidos. Iara se aproximou com o coração aos pulos! O medo tomou conta de todo seu corpo e não conseguia completar os poucos metros que a separavam daquela mulher!
Ofegante Jordi deu a volta e ficou de frente para Constance. Mudo, olhou para todos os detalhes do rosto dela com ar severo. Iara sentiu as pernas fraquejarem e perguntou com a voz quase inaudível...
- Ela morreu?
Jordi apenas balançou a cabeça em negativa, como se falar pudesse causar algum impacto no ambiente.
Iara contornou a poltrona e olhou para Constance. Viu um rosto extremamente pálido, enrijecido, de olhos abertos fitando o vazio através da janela. Não movia um músculo sequer e a respiração era tão fraca que parecia estar morta!
Instintivamente colocou a palma da mão quase colada à boca de Constance, precisava saber se de fato respirava! Sentiu o ar fraco que saia de suas narinas!
Olhou firmemente nos olhos dela e com o rosto bem próximo gritou: “Buuuuu” - para assustá-la e fazer se mover pela surpresa do susto, mas nada aconteceu! O olhar continuou parado e nem ao menos piscou, o que seria a reação instintiva num caso como aquele!
Iara sentia uma fraqueza enorme nas pernas, e com medo de cair, sentou-se na cama de Constance ao lado de onde ela estava. Respirou profundamente por algumas vezes pra acalmar-se do susto de minutos atrás e com irritação e ironia falou...
- Esse truque é bom viu Constance! Muito bom mesmo! Estou impressionada, pois nem piscou! Isso que é técnica!
Jordi estupefato repreendeu a amiga...
- Iara, não acredito que tá achando isso dela! Por favor, será que você é tão insensível assim?! Olha só o rosto dela como tá sem cor...lívido...parece de cera!
- Ah, Jordi...me poupe dessa pieguice toda! Não tá vendo que ela tá de chantagem com a gente?!
E com um misto de irritação e descontrole Iara se levantou e postou-se novamente cara a cara com Constance. Apoiada nos braços da cadeira, olhou profundamente nos olhos dela à espera de um cisco que fosse de reação e entredentes disse...
- Você pode enganar todo esse povo tonto aí que endeusa o chão que você pisa, com essa sua pose de mocinha frágil e delicada, mas a mim não! Se você é maluca mesmo, então como sua madrasta eu posso muito bem te interditar e mandar para o hospício que é lugar de sociopatas como você, sabia disso?!
E perdendo o controle dos seus atos, começou a sacudir Constance xingando-a de chantagista e fingida. Jordi puxou Iara e a impediu de continuar chacoalhando a mulher...reprimiu indignado a amiga...
- Você é louca!!! Não tá vendo que vai machucar a mulher?! Iara, você nunca foi tão cruel com alguém! Implicar com uma pessoa que saiba se defender, tudo bem, mas com ela?! Não tá vendo que isso não é fingimento?!
Neste instante Emma entra afobada pela porta e vê o final da cena. A cabeça de Constance pendia para o lado e o olhar continuava no mesmo lugar....no nada...no vazio...parado em algum ponto de sua dor!
Ela olha aturdida e pergunta nervosa...
- O que fizeram com ela? Mexeram nela? Tocaram na minha Conca? O que fizeram?
Jordi tenta acalmar a mulher...
- Calma Emma, Iara pensou que pudesse tentar fazer Constance responder a estímulos, mas acho que não foi boa idéia!
- Não toquem nela! Isso só piora tudo! Agora não tem mais jeito a não ser chamar o médico e seguir as instruções. Nada vai fazer ela voltar a não ser ela mesma!
Nesse instante Iara volta a olhar pro rosto de Constance e o que vê a atinge como um atropelamento! As sacudidas que havia dado nela tinham feito sua cabeça pender para o lado, a boca estava ligeiramente entreaberta e fios de saliva escorriam pelo canto até o queixo. O olhar continuava imutável, estático, fitando um ponto inexistente, mas uma lágrima havia rolado pela lateral do rosto até molhar o ombro!
Ela não se movia, mas sabia o que se passava ali!
Um desespero tomou conta de Iara! O remorso começou a invadir suas entranhas e naquele instante teve certeza que havia se enganado...ela não fingia!!!
Virou-se para Jordi como que pedindo ajuda, mas antes que pudesse dizer algo, a ânsia que sentia subiu mais rápido que sua razão e uma golfada de culpa saiu pela boca, deixando um cheiro ocre no ar!
Emma e Jordi a ampararam. Emma correu para trazer água e toalhas. Iara começou a tremer e sem tirar os olhos de Constance, pensou alto...
- O que eu fiz?! Não sei o que aconteceu comigo! Eu fui horrível com ela! Por que fiz isso?!
- Calma! Você também está passando por um momento muito difícil! É muita pressão, podia mesmo explodir a qualquer momento! Pena que foi agora, na pior hora!
Ao longo de sua vida, Iara aprendera a não chorar nunca, segurava suas emoções ruins e acabava as revertendo em benefício próprio! Conseguia transformar o medo em agressividade, a dor em ironia, a angústia e a incerteza em deboche! Não se deixava abater e piedade era um sentimento raro, que poucas vezes conseguiu distinguir. O abandono e a vida dura no abrigo tinham obrigado Iara a criar suas próprias defesas e uma delas foi enrijecer o coração. Jordi era o único que conseguia ter os mais nobres sentimentos de Iara. Sabia que ela tinha sensibilidade, que tinha sentimentos bons também, só que eles pareciam adormecidos.
Porém, naquele momento reconheceu na amiga o arrependimento sincero pela estupidez praticada. Os olhos de Iara estavam marejados e ela tremia toda cada vez que fitava Constance naquele estado lamentável.
Emma trouxe toalhas para limpar Iara e água gelada com açúcar. Enquanto se acalmava, Gigio e o médico Dr. Giani entram apressadamente no quarto. Todos estavam apreensivos esperando que ele pudesse, como por milagre, fazer algo que a tirasse daquele torpor.
Dr. Giani começa a examinar Constance. Primeiro acende uma luz bem forte muito próxima aos olhos dela...nenhuma reação...nem uma piscada...nada!
Tira a pressão, ouve os batimentos, faz exames para ver o estado geral do corpo.
Depois fez algo que deixou Iara e Jordi boquiabertos! Levantou um dos braços de Constance até a altura da cabeça e soltou. O braço permaneceu estático da mesma forma que o médico havia posto, como uma escultura modelada naquela pose!
A figura grotesca de Constance impressionava Iara! Era como uma boneca daquelas de plástico com a qual podemos fazer o que quisermos, inclusive colocar braços e pernas em qualquer posição que lá eles ficarão imóveis, até que alguém os mova. A cabeça pendendo para o lado do ombro, a boca escorrendo saliva pelo canto e os olhos completamente vidrados! Uma dor aguda tomou o peito de Iara e teve vontade de chorar tudo o que não conseguiu até então, mas mais uma vez engoliu o choro que desceu formando um nó de angustia! Pensou que aquela não era hora para mais um momento de descontrole, tinha que colocar as emoções em ordem para poder ajudar se fosse preciso.
De repente Dr. Giani indagou os presentes com o rosto fechado de preocupação...
- Pegaram com força nos braços dela, olhem como ficaram marcas roxas de dedos! Alguém tentou levantá-la ou algo parecido?
Todos negaram veementemente, menos Iara que tentou se justificar...
- Fui eu, Doutor! Eu a peguei pelos braços pra tentar reanimá-la, achei que com isso ela pudesse me ouvir ou sair desse torpor, mas vi que foi um erro da minha parte e peço desculpas pela minha estupidez!
- Não me deve desculpas de nada, Senhora, e sim à Constance! Quero que todos saiam, por favor, para que eu possa terminar os exames de estímulos nervosos e aplicar a medicação na minha paciente. Mas depois eu quero falar com a Senhora e o seu amigo, preciso explicar a vocês como lidar com alguém que sofre deste distúrbio, para que não cometam erros como esse e venham a prejudicar minha paciente!
Todos obedeceram ao médico se retirando do quarto, porém se postaram do lado de fora da porta para, assim que fossem autorizados, pudessem novamente entrar. Iara estava muito nervosa e era amparada por Jordi o tempo todo. Nunca tinha visto a amiga tão abalada emocionalmente e imaginou o quanto ela devia estar se sentindo culpada por ter agido tão cruelmente com Constance momentos antes.
Após cerca de 20 minutos o médico permitiu que entrassem novamente no quarto. Iara se aproximou da cadeira onde Constance estava na esperança de que alguma coisa na expressão dela tivesse mudado, mas tudo estava da mesma maneira.
Dr. Giani então chamou os dois novatos da casa e pediu que ouvissem com atenção o que ia explicar...
- Constance sofreu um grave acidente de carro há alguns anos, como vocês já devem saber. Esse acidente deixou seqüelas graves na saúde dela e uma dessas seqüelas é bem visível, a perna que foi esmagada. Já fizemos diversas cirurgias e obtivemos uma boa melhora dos movimentos da perna e penso que se Constance não se recusar a seguir o tratamento, ela poderá voltar a andar normalmente sem a ajuda da bengala. O outro problema físico foi uma forte pancada na cabeça que lhe rendeu um edema cerebral.
O médico respirou profundamente, demonstrando certo cansaço, em seguida continuou sua explanação...
- Mas a pior das seqüelas não foi a física, mas a emocional! Constance sofreu não somente um traumatismo craniano, mas também um enorme trauma na alma. E aqui está uma das conseqüências deste trauma...a CATATONIA e a CATALEPSIA...vou explicar melhor...
E aproximando-se de Constance o médico começou a demonstrar na prática o que significavam aqueles distúrbios.
- Olhem bem o rosto dela...há uma rigidez muscular semelhante a dos cadáveres que foram a óbito há poucas horas! Viram quando eu levantei o braço dela e lá ele ficou? Pois isso é conseqüência da Catalepsia, esse distúrbio faz a pessoa parecer estar morta, a diferença é que Constance mantém os olhos bem abertos, mas não há resposta a estímulos, sejam de dor ou de prazer! Os sinais vitais dela ficam muito baixos, a pressão cai bastante e se nada for feito pode até mesmo parar de respirar! Somente com a medicação imediata é que esses sintomas vão sendo aliviados. A Catalepsia impede a pessoa de se movimentar, apesar de continuarem funcionando perfeitamente os demais sentidos. Portanto, ela ouve o que falamos, ela sente cheiros, ela pode até mesmo ver o que puserem na frente dela, mas não tem como reagir a esses estímulos porque o distúrbio não deixa! O cérebro não manda as informações para os músculos e tudo fica paralisado!
E virando-se diretamente para Iara emendou...
- Por isso, Senhora, ela sabe o que se passa aqui, apenas não tem como reagir a nada. Ela ouve, vê, sente, mas não pode comunicar-se, o que torna esse distúrbio muito sofrido para o paciente! Por isso os cuidados devem ser não apenas medicamentoso, mas também de paciência, carinho e afeto por parte de quem convive com ela!
Iara meneou a cabeça concordando. Percebeu que naquelas palavras estava inserida uma bronca pela postura arrogante que vinha tendo. E decidiu que devia saber mais do médico...
- Doutor, me explique mais sobre essa doença, quero saber o que devo fazer e o que não devo...
- A Catalepsia pode ter sido provocada pelo traumatismo craniano que ela sofreu no acidente ou pelo choque emocional que veio depois ou até mesmo um conjunto dos dois! Antigamente achavam que era um distúrbio típico de esquizofrênicos, mas depois se descobriu que não! Ela está também muito associada a fatores emocionais extremos, em geral um trauma forte! Ao invés da pessoa ficar histérica com o choque, ela fica catatônica! A Catatonia que Constance sofre por dias seguidos provavelmente tem as mesmas origens da sua Catalepsia, o forte impacto que sofreu na cabeça juntamente com a doença afetiva que desestruturou suas emoções!
- Mas então Catatonia e Catalepsia são coisas diferentes?
- Sim, ela ficará catatônica muito mais tempo que cataléptica! Deixe que eu explique melhor...a Catatonia é a ausência emocional da pessoa, ela não reage a ninguém porque se recolhe em um mundo só seu, bem particular. Em geral, quando volta à consciência, Constance não costuma lembrar-se de muitos detalhes do que se passou durante o tempo que estava ausente. Quando ela está apenas catatônica, ela costuma agir como um autômato: come, anda, toma banho, faz suas necessidades como se fosse um robô, sem questionar, mas não interage com ninguém, não fala e não expressa reação alguma!
- E a Catalepsia, que diferença tem desse estado?
- Ela foi acometida pelos dois distúrbios em conjunto, mas a catalepsia pode acabar em algumas horas ou alguns dias, depende muito do organismo dela em reagir! A catalepsia é diferente porque paralisa os músculos, é um distúrbio muito mais físico e grave que a catatonia! Constance podia até mesmo não estar catatônica e estar com a catalepsia. Como disse antes, é como se ela estivesse morta-viva, mesmo que tenha consciência, ela não consegue reagir a estímulo algum. Nessas ocasiões ela precisa de ajuda para as atividades mais simples, como comer, ir ao banheiro e até mesmo usar lágrimas artificiais para lubrificar os olhos que ficam parados sem piscar! Por isso, até que os sintomas da catalepsia desapareçam, Constance terá que se alimentar por meio intravenoso e usar fraldas geriátricas.
Iara e Jordi estavam chocados! Nunca imaginaram que esses distúrbios existissem e pudessem deixar alguém, aparentemente normal e com a consciência perfeita, parecendo uma planta! Sem conseguir conter sua preocupação, Iara pergunta...
- E quanto tempo ela vai ficar assim, Doutor?
- Na primeira vez que Constance teve isso ficou por quase três meses catatônica e uns 2 dias com os músculos rígidos. Depois, das outras vezes, ela ficou entre 30 e 40 dias neste estado e o período de catalepsia se repete, em geral não mais que dois dias.
Jordi pela primeira vez, resolveu perguntar...
- E quantas vezes ela já teve esse problema?
- Essa é a quinta vez desde o acidente!
Emma chorava baixinho ao lado de Constance segurando a mão dela e fazendo-lhe carinhos nos cabelos, sabia que um período difícil estava pra começar. Falou com a voz embargada...
- Gigio você já sabe o que comprar pros próximos dias, fraldas, seringas, preparo para a alimentação intravenosa. Traga também todos os remédios que o Doutor pediu, vou lá em baixo preparar a lista completa e tire a cadeira de rodas do depósito, veja se ela está em ordem e limpa!
Gigio desceu para atender a esposa. Emma e o médico já estavam na porta de saída quando o Doutor voltou-se e arrematou...
- Espero que tenham entendido a gravidade da doença de Constance! Espero também que a Senhora acate os meus conselhos e permaneça nesta casa até que dê a luz e tenha condições de viajar com segurança. Não a estou repreendendo, mas peço que tenha paciência e cuidado com Constance, ela não teria como fingir esses sintomas, eles são verdadeiros e graves, podendo até levá-la à morte se não tratados corretamente!
- O Senhor acha que esse problema surge a qualquer tempo ou...
Antes que Iara pudesse terminar sua pergunta o médico a interrompeu respondendo...
- No caso de Constance, esses distúrbios costumam aparecer depois de um forte estresse emocional! Por essa razão, eu volto a lhe pedir que reflita sobre sua decisão de partir e, caso decida ficar, que tenha muita paciência para ajudá-la a retornar sem maiores consequências. Ela costuma ficar muito debilitada quando volta da catatonia!
Jordi resolveu responder pela amiga...
- Pode deixar, doutor. Sei que Iara já refletiu bastante sobre tudo o que se passou aqui e vai tomar a decisão correta! Daremos todo o apoio que Constance precisar e fique certo que não a deixaremos sem os cuidados necessários. Agora, além de Emma e sua família, nós também somos a família de Constance!
Iara não conseguindo mais conter as emoções que represava há dias, deixou cair um pranto cheio de sentimentos turbulentos: angústia, frustração, culpa, medo! Deixou rolar as lágrimas reprimidas durante uma vida!
Sentiu uma mão grande envolver a sua...
- Sei que em seu estado todas as emoções ficam à flor da pele, tudo é sentido com mais intensidade! Não se culpe tanto assim, compreenda que cada um tem um jeito de extravasar suas dores e a de Constance é essa! Ela não expõe, ela engole e acaba devorando, consumindo desastrosamente o próprio corpo e mente! Se quiser ajudar, quanto mais cuidado e afeto ela tiver, mas rápido e eficiente pode responder ao tratamento e ir se livrando dessas sequelas!
E pegando na mão de Emma a pôs sobre a de Iara e finalizou...
- Ela precisa de vocês duas! Emma é como uma mãe para Constance, sei o quanto a ama e cuida dela com a mesma devoção que dedica aos seus filhos. Já você é alguém novo na vida dela, que traz a esperança de continuidade da família, do legado e de tudo que foi construído. Você tem aí dentro a semente dessa esperança...pense nisso!
Emma abraçou Iara e choraram juntas. Jordi se aproximou e levou a amiga pra repousar um pouco até que conseguisse recuperar o autocontrole.
Dr. Giani se despediu depois de medicar Iara e ficou de ir à vinícola todos os dias até que Constance estivesse livre da Catalepsia e Iara aprendesse a se aplicar as injeções de ferro.
Quando chegaram ao quarto Iara ainda soluçava um pouco. Não se lembrava de ter chorando tanto nem quando era criança. Era como se as emoções de uma vida inteira tivessem sido expurgadas naquele pranto!
Ela recostou na cama e com o olhar aflito indagou o amigo...
- E agora, Jordi? O que faço da minha vida?
- Você já sabe muito bem o que acho que tem que fazer, tem que ficar aqui e ter Beatriz neste lugar! Além disso, tem que estar ao lado de Constance! Eu sei que você acha que não tem nada a ver com essa história, mas ainda pensa assim mesmo depois de conhecê-la melhor? Mesmo depois de saber a pessoa maravilhosa que ela é?
Iara meneou a cabeça como se Jordi não a estivesse entendendo...
- Você não entendeu minha pergunta, eu quero saber depois disso tudo o que eu faço?
- Como assim?
- Antes de acontecer tudo isso com Constance, a minha única vontade era de sumir desse lugar e não aparecer mais, me teletransportar para algum ponto do planeta que não fosse essa vinícola! Mas depois que a conheci melhor, os dias que passamos juntas após o funeral, realmente ela é um ser humano ímpar! Poucos tem o coração puro e generoso como o dela e, mesmo quando eu negava isso pra mim mesma como um modo de poder ir embora sem remorso, no fundo eu sabia que ela era daquele jeito mesmo...boa, gentil, desprendida de coisas materiais! Eu cheguei a pensar seriamente em ficar e aceitar a proposta de Constance, mas senti um medo de me apegar a esse lugar, a essas pessoas e depois não conseguir mais ir embora quando quisesse. Você não imagina o quanto ela sabe persuadir a gente com aquele jeitinho meigo!
- Oh, minha querida, eu sabia que era medo mesmo que tava sentindo! Medo de viver algo novo...de experimentar novas emoções...
- Sim, mas agora eu não posso sair daqui! Primeiro porque o médico não quer, depois porque não tenho como deixar Constance nesse estado, seria muita covardia da minha parte! Eu estaria fazendo o que o pai dela fez a vida toda, seria mais uma pessoa a deixá-la no momento em que ela mais precisa!
- Isso mesmo, tem que ficar!
- Mas aí é que tá, Jordi, o que eu faço quando ela voltar desse estado?! O médico disse que ela ouve e vê tudo o que se passa, então ela ouviu muito bem aqueles absurdos que disse a ela quando entramos no quarto! Ela sentiu as sacudidas que dei nela, as marcas que deixei no braço, ela sabe muito bem tudo o que aconteceu! Eu fui uma bruxa! Lembra da lágrima que caiu quando a soltei?! Eu vi, Jordi...ela chorou!
- Sim, meu bem...eu vi! Mas lembra também que o médico disse que ela pode esquecer parte do que aconteceu durante esse período? Além do mais, você terá muito tempo para se redimir. Porque não cuida dela um pouco como ela vinha cuidando de você? Quem sabe quando ela voltar lembre somente das coisas boas que você fez!
- Mas eu ainda me sinto muito fraca! Não sei se terei energia pra cuidar dela!
- Não digo cuidar dando banho, levando ela ao banheiro, trocando de roupa...nada que tenha que fazer esforço físico! Falo de você passar um tempo com ela, conversar como se ela não estivesse ausente...ela pode ouvir! Acho que só em estar ali ao lado já é uma grande ajuda!
Iara abraçou o amigo e pediu:
- Eu não queria que você fosse embora, fica comigo aqui, Jordi!
Ele soltou o ar pesadamente e respondeu:
- Minha querida, não vou poder ficar por muito tempo, sabe que tenho que voltar ao meu trabalho!
- Mas e se eu tiver que ficar aqui? Se decidir aceitar a proposta de Constance? Eu sou rica, Jordi, esqueceu?! Podemos arrumar algo para que você faça aqui na Itália ou em qualquer outra parte do mundo. Além disso, o que pretende fazer com sua paixão pelo Dr. Corelli?
Jordi ficou pensativo e Iara completou...
- Não há nada nem ninguém no Brasil que te prenda, eu sou sua família e agora você tem alguém pra investir, você mesmo me disse que é especial com ele! E não esqueça que Beatriz está chegando!
Iara apelava com todas as suas armas. Jordi sabia que era verdade e sabia mais ainda que não seria feliz vivendo longe da amiga.
- Tá bom minha Bruxa! Você sabe que não tinha como resistir a esses argumentos. Só que de qualquer forma vou ter que ir ao Brasil resolver essas questões do emprego, alugar o apartamento, regularizar minha documentação, não tenho passaporte europeu como você né? Talvez demore algumas semanas, mas vou fazer o possível para estar aqui antes da Beatriz nascer!
– Obrigada! Seria mais difícil ainda passar por todas essas mudanças sozinha! Do dia pra noite minha vida deu um salto! Eu não conhecia esse lugar, nem imaginava em vir pra cá, menos ainda em morar por aqui! E de repente Lorenzo sai da minha vida e surge alguém novo que muda tudo!
– Ela foi uma grande surpresa pra nós dois! A gente até fazia piada achando que ela era uma doida que correria atrás da gente com uma machadinha na mão quando nos encontrasse! E aí surge essa mulher culta, suave, generosa e tão desprendida de todas essas coisas que a maioria das pessoas dão tanto valor, inclusive você né amiga?!
Iara dá um longo suspiro e concorda…
– Sim, Constance foi uma enorme surpresa! Talvez por isso eu ainda sinta dificuldades em entendê-la, ela me traz sentimentos tão conflitantes!
– Como assim conflitantes?
Jordi questionou querendo que Iara dissesse mais do que estava disposta a falar…
– Não sei definir com certeza, eu achava que ela usava o jeito doce que tem pra de alguma forma manipular todos aqui que acabam sempre fazendo o que ela deseja, mas aí, no momento seguinte, me assalta uma certeza de que ela não faz a menor força pra nada disso, as pessoas simplesmente fazem tudo pra agradá-la porque ela é tudo aquilo que você falou e…
– E…
Iara olhou para o amigo e abaixou o tom como que confidenciando um enorme segredo…
– E muito mais, Jordi…ela é muito especial! Nunca conheci alguém como ela e meu maior medo é que não sei como lidar com uma pessoa assim! Ela é tão melhor de sentimentos, tão mais nobre do que eu em tudo, que acabo me sentindo ridicula, ordinária! Me sinto tão pequena, mesquinha, vil! Acho que por isso eu insisti tanto em ir embora daqui, eu queria sumir por me sentir assim diante dessa mulher sensível, de valores tão diferentes dos meus!
Jordi abraçou a amiga, agora entendia exatamente o pânico de Iara com a idéia de ficar ali e aceitar a proposta de Constance. Ela estava diante de sentimentos que não eram somente novos, mas sobretudo, que a confrontavam com tudo o que ela conhecia como verdade, com suas experiências, com seus valores distorcidos, com a estrutura emocional e o jeito de ver o mundo que havia criado para si. Constance mostrava a ela a generosidade, a renúncia, o afeto que ela pouco conhecia e isso a apavorava!
Acariciando seus cabelos Jordi ponderou…
– Minha querida, porque não deixa que as coisas sigam seu curso?! Já pensou que talvez seja muito menos doloroso simplesmente aceitar as novidades que o destino põe no nosso caminho?! Lutar pra que linda?! O que tem de tão terrível aceitar essa experiência aqui com Constance se você mesma admite o quanto ela é especial?! Não acredito que pense que sua vida será um martírio aqui porque nós dois sabemos que não é verdade. Do que tem medo de fato?
Iara se afastou do amigo e de costas disse num fio de voz…
– Tenho medo de não conseguir ir embora depois…de me apegar…de querer ficar…e se isso acontecer, já não serei mais livre como sempre fui!
Jordi sorriu pra si mesmo! Iara jamais seria a mesma depois da Toscana!
– Liberdade é justamente poder escolher onde e com quem quer estar…se você estiver presa a algum lugar ou a alguém por vontade própria porque se sente bem e feliz…então estará exercendo plenamente a sua liberdade!
Iara deu um fraco sorriso de cansaço…
– Ser livre pra poder se prender ao que quiser! Tão paradoxal isso tudo!
E sentindo-se exausta completou…
– Preciso descansar agora, mais tarde quero ficar um pouco com ela. Tô me sentindo tão estúpida por tudo que fiz antes do médico chegar!
Jordi tentou amenizar…
– Pare de se culpar, chega! Já está feito e agora você tem é que tentar se redimir! Acho que só em ficar por aqui até tudo voltar ao normal já estará fazendo um enorme bem pra ela. Não quero que fique se martirizando, você também tem que se cuidar! Agora vou deixar que descanse.
Iara deitou e tentou relaxar, as palavras de Jordi martelavam em sua mente e se confundiam com seus próprios sentimentos que se agitavam num turbilhão dentro de si! O cansaço emocional a venceu, mas o cochilo veio entremeado de flashes das imagens dos últimos dias: o funeral, a casa, sua barriga cada vez maior, as vinhas, os girassóis, Constance…
Fim do capítulo
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